sábado, 22 de outubro de 2011

Sexta-feira



Ele viu-se ao espelho. Estava a envelhecer. Via-o sobretudo pelas fotografias. Afastava-se sempre das câmaras fotográficas, mas em almoços ou festas na escola, não podia levantar-se e fugir. O cabelo estava grisalho, mas não o queria pintar, mas não queria que os miúdos o achassem velho.

Felizmente ouvia bem, conservava o sentido de humor, encontrava, quase sempre, a palavra certa para certos momentos. Organizava visitas de estudo, participava em diferentes actividades… Em suma, era ativo. Os pais e os miúdos gostavam dele. Era experiente, simpático, competente e inspirava confiança.

Olhando à sua volta, quase só via colegas bem mais jovens do que ele. De ténis. De mochila. De tee-shirt. De ar descontraído.

Ele, ele continuava a usar a sua velha pasta, embora nela transportasse um computador que manipulava com frequência e com agilidade. Os amigos diziam que tinha talento para escrever e pintar.

Sentia-se bem na escola. Era até o seu lugar de eleição de quase todos os dias.

E nesses momentos, esquecia-se da imagem que via refletida no espelho. Sentia a Vida e a vida na escola com a mesma força e entusiasmo de há muitos anos atrás. Não se sentia velho, por isso não poderia ser velho.

Na 6ª f, veio mais cedo para a escola. Era diretor de turma e precisava de falar com dois alunos que tinham tido uma falta disciplinar no dia anterior. O diálogo ocorreu no Centro de Recursos. Esperavam-no os dois infratores e dois acompanhantes. Um deles– sempre bem humorado – dizia com voz assertiva e macia: Professor, foi hilariante.

O professor ouviu, neste caso, as defesas em relação à ocorrência: terem colocado um pioné na cadeira de uma colega que andava sempre de calças muito justas e que gostava de se rir das fraquezas alheias.

E o aluno bem humorado repetia: foi mesmo hilariante, setor.

E o professor queria manter-se sério, mas, ao mesmo tempo, sentia o cómico da situação.

Gostava daqueles miúdos. Estava próximo do discurso deles, compreendia as suas inquietações.

Quando ouvia queixas, procurava defender os colegas, mas compreendia muitas das inquietações que lhe eram apresentadas.

Sentia-se bem. Era professor e amava a sua profissão com a pujança da entrega. Parecia, serenamente, colher frutos que havia semeado ao longo de toda a sua vida, mas que exigiam sempre novos cuidados.

Com o habitual ar sereno e sorridente, o professor saiu do Centro de Recursos, depois de ter resolvido o problema do pioné. Outros já tinha tratado e bem mais graves.

No corredor, passava a Joana, uma menina que tinha vindo para a escola para frequentar um curso que agrupava miúdos com grandes dificuldades. Ou intelectuais. Ou afetivas. Ou cognitivas. Ou outras que se iam gerando. Eram miúdos que não podiam, não sabiam, não queriam estudar. Para os pais, o curso apresentava uma boa alternativa.

Joana era uma menina dócil, de olhos cinzentos, muito risonha e que abraçava todos os que a mimavam. Abria os braços com a mesma facilidade com que abria a alma e o sorriso. Joana não tinha segredos. Era espontânea, sincera e singela.

Joana, vendo o professor no corredor, logo se lhe dirigiu, abrindo os braços para o abraçar, e disse efusivamente: avozinho! Avozinho.

Era a primeira vez que ouvia alguém chamar-lhe avozinho. Logo vindo da Joana com voz de quem não engana.

Ao fundo do corredor, encontrou uma colega: tinha acabado de entregar os papéis para a reforma. Estava cansada. E logo veio a pergunta: e tu, de que estás à espera?

O dia foi seguindo o seu rumo. A tarde encheu a sala de professores de novos rostos. Em idade e em permanência na escola. Uma colega – que já tinha sido sua aluna – aproxima-se dele. Falam um pouco antes do toque da campainha. Ela fala-lhe do tempo em que o tinha tido como professor. Diz até que a mãe lhe havia falado da família dele. E tinha sabido que era filho de um velho conhecido da mãe. E não sabia que ele tinha um filho assim tão… tão… - parecia escolher a palavra mais simpática – crescido! E o professor ia dizendo para os seus botões: tão velho!

Entrou na sala de aula. A turma ia abordar o poema «O menino de sua mãe» de Fernando Pessoa, cantado por Mafalda Veiga.

Enquanto os alunos ouviam a música e seguiam os versos pessoanos, o professor olhava os rostos e o poema. O soldado tinha abandonado a vida sem ter feito a legítima despedida. Ele, o professor, entrava no plaino da despedida.

Os seus olhos caíram e demoraram nos últimos versos de um outro poema: …"sinto mais longe o passado/ sinto a saudade tão perto!"


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