quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O Natal em que fiquei rica

Imagem da net

Havia uma árvore naquele Natal. Não tão grande e frondosa como outras, mas estava pejada de enfeites e tesouros e resplandecia de luzes. Havia presentes, também. Alegremente embrulhados em papel vermelho ou verde, com etiquetas coloridas e fitas. Mas não tantos presentes como de costume. Eu já tinha reparado que a minha pilha de presentes era muito pequena.
Nós não éramos pobres. Mas os tempos eram difíceis, os empregos escassos, o dinheiro à justa. A minha mãe e eu partilhávamos uma casa com a minha avó e com os meus tios. Naquele ano da Depressão, toda a gente espaçava refeições, levava sanduíches para o trabalho e ia a pé para poupar nos bilhetes de autocarro. Anos antes da Segunda Guerra Mundial, já vivíamos no dia a dia, como muitas outras famílias, o que então se iria ouvir como slogan: “Usa-o, aproveita-o ao máximo; faz com que funcione, ou passa sem ele.”
Havia poucas escolhas. Compreendia pois porque era tão pequeno o meu monte de presentes. Compreendia, mas sentia, ainda assim, uma ponta de pesar à mistura com um complexo de culpa. Sabia que não poderia haver surpresas empolgantes naquelas poucas caixas vistosamente embrulhadas. E sabia que uma delas tinha um livro. A minha mãe arranjava sempre um livro para mim. Mas nada de vestidos novos, camisolas ou um roupão acolchoado e quentinho. Nenhum dos miminhos tão desejados na altura do Natal…
Havia uma caixa com o meu nome da parte da minha avó. Guardei-a para o fim. Talvez fosse uma camisola nova, talvez um vestido — um vestido azul. A minha avó e eu gostávamos ambas de lindos vestidos e de todas as tonalidades de azul. Soltando os devidos “Ohs” e “Ahs” ao ver a aromática barra de sabonete feito de mel, as luvas vermelhas, o já esperado livro (um novo da Nancy Drew!), rapidamente cheguei àquele último embrulho. Dei por mim a sentir uma centelha do entusiasmo do Natal… Era uma caixa bastante grande. Com vergonha de mim mesma por ser tão gananciosa, por esperar receber um vestido ou uma camisola (mas esperando na mesma!), abri a caixa.
Meias! Só meias! Soquetes, meias altas, até mesmo um par daquelas meias horrorosas de algodão branco que estavam sempre a escorregar e se enrodilhavam em volta dos joelhos.
Esperando que ninguém tivesse dado conta do desapontamento, peguei num dos quatro pares e agradeci à minha avó, com um grande sorriso. Ela também sorria. Não com o seu sorriso educado e distraído de “Sim, querida,” mas com o seu sorriso feliz e radiante, de “Isto são coisas importantes para uma mulher!” Será que me esquecera de alguma coisa? Olhei de novo para a caixa no chão — nada, a não ser as meias. Só que agora eu conseguia ver que havia outro par por debaixo do que eu tinha pegado. Duas camadas de meias. E mais uma! Três camadas de meias!
A sorrir de verdade, comecei a retirá-las da caixa. Meias cor-de-rosa, meias brancas, meias verdes, meias de todos os tons inimagináveis de azul. Toda a gente estava a olhar, rindo comigo, enquanto eu atirava as meias ao ar e as contava. Doze pares de meias!
Levantei-me e dei um abraço tão apertado à minha avó que até nos doeu às duas. “Feliz Natal, menina Joan!” disse ela. “Agora, todos os dias, terás muitas escolhas a fazer. Estás rica, minha querida! E era verdade. Naquele Natal e durante todo o ano, todas as manhãs, eu escolhia do meu elegante armário da roupa interior qual o par de meias a usar. E sentia-me rica. E ainda sinto!
Mais tarde, a minha mãe disse-me que a minha avó tinha andado a esconder aquelas meias durante quase um ano — poupando todas as moedinhas, comprando um par de cada vez. Um dia, tendo visto um lindo par de meias azuis com as beiras elásticas bordadas à mão, ela pedira mesmo ao compreensivo vendedor para deixar um sinal a reservá-las durante três semanas.
Dentro daquela caixa estava embrulhado um ano de amor.
Foi um Natal que eu nunca esquecerei.
A prenda da minha avó mostrou-me como as pequenas coisas podem ser importantes.
E como o amor nos faz a todos imensamente ricos.
Joan Cinelli

Jack Canfield & Mark Victor Hansen
Chicken Soup for the Soul – Christmas Cheer
Chicken Soup for the Soul Publishing, LLC, 2008
(Tradução e adaptação)

Caros leitores,
O Projeto intitulado Clube de Contadores de Histórias, nascido em 2006 na Escola Secundária Daniel Faria – Baltar, tem vindo, ao longo dos anos, a difundir-se de uma forma significativa, não só em Portugal, mas também no Brasil e nos países africanos de língua portuguesa. No sentido de assegurar a continuidade de referido clube, foi constituída uma equipa pedagógica, formada por professores de vários grupos disciplinares e provenientes de diversos estabelecimentos de ensino, que tomarão a seu cargo a seleção, preparação e envio de uma história semanal por correio eletrónico, tal como habitualmente tem vindo a ser feito.
Esperando que o projecto continue a merecer a melhor atenção por parte do público leitor, despede-se com os melhores cumprimentos,
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias

terça-feira, 27 de novembro de 2012

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Elas eram quatro

Elas eram quatro. A rua Santa Catarina estava cinzenta e outonal. O homem das castanhas mantinha o fogo e o fumo quente dos frutos do outono, que ia amontoando na esperança de os vender.
Que cheirinho. Dá gosto. Há tanto tempo. Dantes, vinha mais vezes ao Porto, agora só de vez em quando.

Era quase Natal, mas as luzes da época apenas brilhavam nas montras das lojas. Na Praça da Liberdade, acendiam-se só as luzes habituais. Nas outras ruas, apenas as névoas, as pessoas que passavam, as lojas que esperavam clientes. 
E comentou-se: quando éramos crianças, vínhamos ao Porto pelo Natal, para vermos a iluminação das ruas. E comprar as prendas prometidas há muito. Só seriam dadas se merecidas.

Elas eram quatro e há muito que não falavam tanto tempo. O trabalho, a família... o tempo torna-se pouco. Na mesa do café, havia quatro chávenas e pão torrado. Em fatias, quentinho. Lá fora chovia. Olha, está a chover. E o guarda-chuva ficou no carro. Os assuntos surgiam encadeados, já com as chávenas vazias.

E começou a ouvir-se o som do piano. Ao vivo. A música juntava-se à bruma, às castanhas, ao ar um pouco sombrio de uma cidade sem as luzes do Natal. As pessoas continuavam a falar, as quatro amigas também. E mais tempo ficariam se não houvesse compromissos.

Quando é a próxima? O melhor é marcar já a data senão o tempo vai passando.
Percorreram a rua até ao parque de estacionamento. Já não chovia. Porém, se chovesse, a rua continuaria a ser bela. Aquecida pelas palavras e sorrisos da amizade.

Elas eram quatro e, na próxima, querem ser cinco. Ou seis.

domingo, 25 de novembro de 2012

Magia




Em diferentes momentos,
encontramos histórias sobre a palavra Amor,
mesmo que esta não seja escrita nem pronunciada.


Nos seus nove anos felizes e suaves, Catarina sorri e aparecem as covinhas nas maçãzinhas do rosto. Na festa de anos da madrinha, Catarina mostra, como habitualmente, a sua doçura e alegria. Dizem: é tão parecida com a mãe. É tal e qual. E logo o sorriso dela se abre e as covinhas das maçãzinhas do rosto aparecem. Aconchega-se à mãe e sorriem as duas.

Catarina estava à espera do dia da festa de aniversário para rever amigos da madrinha e mostrar truques de magia. Tinha aprendido vários num livro e num DVD que aquela lhe tinha oferecido. Um dos truques era o de a outra pessoa escolher uma carta de um baralho e a mágica adivinhar qual a carta tinha sido escolhida. Noutro, alguém segurava num fio esticado, onde estava presa uma argola, com os dedos polegares e, depois de vários laços, a mágica puxava o fio e, de repente, a argola saía.

Muito bem, Catarina, e Catarina sorria nas covinhas das maçãzinhas do rosto.

Depois, fez o truque com o Rodrigo, um menino também com nove anos e que tinha sido convidado para a festa de aniversário. Estava com uma prima, muito amiga da aniversariante. O Rodrigo esticou o fio com os polegares, deixou a Catarina fazer os laços habituais, mas a menina-mágica, ao puxar o fio, a argola ficou presa e não se soltou, como era previsto. Num segundo, Catarina ficou preocupada porque o truque não resultava, mas não desistiu. Rodrigo, que é um menino muito responsável e atento, até corou. Mas tudo isto durou apenas o tempo de o diabo esfregar um olho, porque logo o truque resultou bem, embora, durante uns segundos, parecesse difícil.
No final do jantar, Catarina voltou a pegar no fio mágico e ia repetindo os truques. Rodrigo observava. Não sei se estava a fazer rimas, porque, antes do jantar, tinha participado de um jogo: encontrar palavras que terminassem com o mesmo som. E, partindo de “pão”, vieram as palavras coração, avaliação, oração, emoção, televisão...

Se calhar, para a palavra “magia”, Rodrigo encontraria dia, tia, alegria, aletria, ria… e muitas mais de certeza absoluta, posso eu dizer, eu que raramente tenho certezas absolutas.

Outra certeza tenho: a Catarina é mágica e até já entrou, pelo menos, numa história escrita em livro, porque, para além da magia, da serena alegria das covinhas das maçãzinhas do rosto, também traduz muito bem, por palavras, coisas engraçadas que observa.

Quanto ao Rodrigo, tenho outra certeza: é um menino que sabe rimar com escutar, pensar, falar, questionar, observar…

E tudo simples com(o) um toque de magia.

Aristides Sousa Mendes

Imagem retirada do blogue Carruagem 23

Se puderem, não deixem de ver o filme sobre este grande homem português que ajudou a salvar inúmeros Judeus, durante a Segunda Guerra Mundial.

Chamo a atenção para o post de Vítor Oliveira, colocado no seu blogue, sobre o papel desse Homem, muito visível no filme que passa atualmente nas salas de cinema.
 carruagem23.blogspot.com/  

sábado, 24 de novembro de 2012

Retrato de mulher com ateliê de escrita ao fundo


Esta semana, vai iniciar-se, em Serralves, 
um novo curso/ateliê de escrita: 
 "Literatura e Música: um diálogo eterno".
                              
O dinamizador é o escritor Mário Cláudio.

Por acaso, encontrei este pequeno 
texto que escrevi num ateliê de escrita anterior.

Mulher que gosta do mar, que ouve e vê, no barulho das ondas, outros elementos da natureza, que se sobressalta com o equilíbrio azul das palavras límpidas de Sophia ou  com os versos ensolarados de Eugénio, poeta que também iluminou quadros de pintores como Júlio Resende. Mulher que sente a amorosa errância ardente de Florbela ao olhar as árvores solitárias e esquentadas do Alentejo.
Mulher que teme o frio e o vazio das grutas mas que delas se aproxima em busca de luz e de silêncio. Que gosta de passear mas que o faz muitas vezes olhando a janela, vendo as camélias a florir lá fora. De tão próximas, parecem abrir cá dentro.
Mulher que gosta de escutar e ler os textos de Mestres da Literatura, mas também de ouvir os dos colegas de ateliê que, em poucos minutos, escrevem uma história com todos os sentidos, fazendo emergir a pluralidade das vozes. De si próprios ou de seres com quem se cruzam.
Mulher que vai escolhendo e combinando palavras que apanha na beira dos caminhos que conhece, embora gostasse de as colher mais fundo.
Mulher que gosta de ouvir música que irrompe também da combinação de palavras e de sílabas. Que se deixa embalar com a música de Jacques Brel à qual gostaria de repetir: Ne me quitte pas.
Mulher que gosta de escrever pequenos textos e de os ler em voz alta. Tal como qualquer artesão que partilha as suas pequenas peças. Ou um adolescente que envia uma mensagem que o deixa insatisfeito mas mais tranquilo.
Mulher que, no ateliê, toma notas sobre Literatura e sobre o Mundo, sentindo este mais habitável e mais visível, graças a todos que o reescrevem.
Mulher que acha quase tão reais os Pescadores de Raul Brandão como os pescadores que vê junto ao Douro.
Mulher que gosta de escrever, pondo-se na pele de outrem, embora não possa fugir de si própria como permitia a genialidade de Fernando Pessoa.
Mulher que se confronta, como qualquer ser humano, com o seu destino, com o seu papel no mundo, que se interroga sobre as marcas que vamos deixando com o passar dos dias.
Mulher que vê o Atelier de Escrita como uma orquestra, onde cabem diferentes músicos, diferentes instrumentos, trabalhando todos sob a batuta de um Maestro que, para além de orientar o grupo, tem vasta obra produzida e vai ajudando a que cada um, à sua maneira, vá compondo novas peças.
Mulher que vai acrescentando novos elementos para ir compondo um possível retrato. Também com o Ateliê de Escrita ao Fundo.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Miloko

Miró
Miloko n’est qu’un enfant. Nu et pieds nus dans la rue. Venu de loin, d’un de ces pays lointains, inscrit en lettres minuscules sur la mappemonde. Entre brouillard et pluie, il a débarqué une nuit de nulle part, les yeux pleins de sommeil et de fatigue, avec d’autres enfants, avec d’autres Miloko qui se sont aussitôt éparpillés aux quatre coins de la grande ville.
Alors il a longé le caniveau, frôlant les façades aux volets fermés. Il a suivi les lampadaires comme les marins suivent les étoiles. Il a marché longtemps, jusqu’au petit jour, puis épuisé, s’est endormi sur la plage, bercé par le ronronnement des vagues. Les cris des mouettes et des goélands l’ont réveillé. Il a regardé les bateaux flâner nonchalamment sur la mer. Il avait faim. Il a monté la grande avenue, celle des magasins. Invisible, transparent, la foule l’ignorait. Miloko n’était qu’un enfant nu et pieds nus dans la rue.
Un jour, au rond-point de l’autoroute, face à l’aéroport, près du supermarché, il a rencontré des gamins comme lui, des Miloko nus et pieds nus qui l’ont adopté. Sous le pont de l’échangeur, abrité du vent et des intempéries, Miloko, avec des cartons géants de frigos, des cartons énormes de téléviseurs, des cartons immenses d’objets futiles et dérisoires, s’est bâti une cabane fermée par un fil de fer, entre les cabanes de ses nouveaux compagnons.
Ses copains lui avaient prêté une raclette, des chiffons, une bouteille avec de la lessive qui faisait des bulles multicolores dans les reflets du soleil. Au rond-point du supermarché, Miloko attendait les voitures qui stoppaient au feu tricolore. Du vert au rouge passant par l’orange, du rouge au vert sans révérence, il levait les essuie-glaces, grattait, tirait, lavait les vitres souillées de boue et de moucherons. Dans les voitures des cris, parfois des injures ! Les conducteurs, lunettes fumées, remontaient les glaces, détournaient le regard, accéléraient dès le passage autorisé, n’osant affronter de face la vérité. Parfois, par la vitre entrebâillée, portières fermées, loquets baissés, une main négligemment tendue jetait une pièce, une menue monnaie sur le bitume.
Miloko les remerciait, un bref éclair sur son visage…
Au début du printemps, à l’aube, des camions bleus encerclèrent le village en papier. Personne n’eut le temps de fuir. Des hommes en uniformes, aux casques argentés, rassemblèrent les enfants au centre du rond-point et les comptèrent. Ils ont amené Miloko dans un grand immeuble, sur une colline, loin de la ville. Derrière les hauts murs noirs, il ne distinguait ni la mer, ni l’horizon. Des larmes inondèrent ses joues.
Alors il a pensé très fort à son village, dans ce pays lointain inscrit en lettres minuscules sur la mappemonde. Il a gribouillé à sa mère une cartepostale pleine de soleil, de ciel bleu, de promenades bordées de fleurs, de rues immenses et colorées… Il a raconté que, face à l’aéroport, près du supermarché, sous le pont, il possédait une cabane en carton…
Un matin, alors que la clarté se faufilait dans le parc, Miloko a sauté le grand mur. Nu et pieds nus, il a couru sans se retourner vers le rond-point du supermarché et s’est caché tout au fond de sa cabane. Il est resté longtemps, très longtemps, blotti dans son refuge, épiant le moindre bruit, sursautant aux tintamarres des moteurs. Puis, peu à peu, il a entrebâillé sa porte et s’est aventuré au dehors.
Depuis, chaque nuit, il compte les camions qui arrivent de nulle part. Entre brouillard et pluie, il scrute les ombres furtives qui se glissent dans l’obscurité. Il guette celle de sa mère. Il aimerait qu’elle soit là, qu’elle le serre si fort dans ses bras qu’il en perdrait le souffle…
Jean Siccardi; Joly Guth
Miloko
Draguignan, Lo Païs d’Enfance, 2004
(Adaptation)

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Diário de Mariana



 22 de novembro de 2012
Querido diário,

Hoje, disseram-me que já não escrevo há algum tempo e que já sentiam a falta. Fiquei toda contente, porque acho muito fixe quando gostam de nós.

Por falar nisso, o Silva disse-me que pensava que o Gi não era meu namorado, mas apenas meu amigo. Disse até que tratava a namorada por “minha fofinha” e nunca ouviu o Gi tratar-me assim. E disse também que há tempos, eu e o Gi andávamos um bocado zangados. Deve andar distraído e, se calhar, nunca se zanga, eu acredito mesmo! Também não sou daquelas que anda a dizer aos gritos de quem gosto. E tenho os meus segredos, como toda a gente. 

Não vem muito a propósito, mas acho mal andarem nos corredores, no intervalo, a dizer palavrões para toda a gente olhar. Por acaso, nunca ouvi o Silva a dizer palavrões. Ele é fixe, mas às vezes é um teimoso de primeira e resmungão. Põe uma pergunta e quer logo que os setores venham ao pé dele para lhe explicarem tim-tim por tim-tim.

Hoje na aula de inglês até me ri. Tínhamos que dar a definição da palavra segredo e apareciam coisas cómicas, como, por exemplo, que o segredo deve ser contado apenas a uma pessoa. Se fosse assim, de repente, toda a escola sabia. Uma pessoa contava a outra… Devia ser engraçado. Ainda começava outra grande guerra.

Nessa aula, também vimos a definição de amigo e eu disse que era uma pessoa a quem falamos de coisas boas e de coisas más. A Bia – é verdade, há muito tempo que não falo dela, mas é a minha melhor amiga – acrescentou: “como a Mariana”. Achei altamente e até fiquei com mais vontade de ser mesmo amiga. 

Pensando bem, acho que gosto de mimos. Será que mais tarde, se for professora, vou gostar de graxa? Espero que não, livra!

Hoje vou ficar por aqui, querido diário. Estou com frio e ainda tenho de ver umas coisas para amanhã. Ai ai!

Muitos abracinhos
Mariana

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O rio que mudou de lugar



Aos meus alunos do 11º 1

Atenção, esta é uma "história (simples) sobre a palavra Amor”!
Não se iludam muito, mas também não se desiludam demasiado.
Pelo menos, enquanto houver um qualquer rio que prenda o nosso olhar.

Maria acordou e foi à janela. Via sempre a mesma paisagem, ou melhor, parecia sempre a mesma paisagem, mas, vista com atenção, não era sempre a mesma paisagem.
Ela disse devagar a palavra paisagem. A professora de Português dizia muitas vezes para não repetir as palavras, mas que sinónimo poderia usar?
Hoje, pela manhã, a paisagem era tão diferente que lhe chamou a atenção. No vale, entre o aglomerado de casas e a serra de Valongo, havia um rio. Parecia mais denso do que um rio verdadeiro. Generoso, calmo e sossegado, deixava ver o verde frio e alto da serra.
A jovem olhou de novo. Naquele sítio, só costumava ver campos ou o serpenteado da autoestrada, mas o que via agora era um rio, largo, grosso, macio. Como era possível um rio passar ali? Tinha chovido, mas não o suficiente para formar semelhante massa de água. Por acaso, parecia uma massa gasosa, mas tinha a forma de rio, porque o via em silêncio e pela janela, o que não costuma enganar.
Àquela hora, Maria estava sozinha em casa, porque os pais tinham ido trabalhar e o irmão mais novo saía sempre mais cedo. Ao olhar aquele rio, que se estendia tão próximo, pensou ficar em casa e dizer depois que o despertador não tinha tocado. Não, os pais não iriam acreditar na história e haveria, de certeza, problemas. E se dissesse que ficava a estudar para o teste? É que queria mesmo continuar a olhar para aquele rio improvável. Não, se dissesse aos pais que tinha faltado para ficar a estudar, haveria chatice pela certa, porque sobretudo a mãe não admitia tal coisa. Imaginava-a a franzir o sobrolho, a ficar muito séria, a olhá-la muito fixamente. Nem seriam precisas palavras. Via-se logo que a mãe não concordava e que estava zangada. Não, tinha mesmo de ir para a escola e nem podia atrasar-se muito. Entrava às nove e dez e já passava das oito e trinta.
Oh, agora só faltava esta. O telefone fixo a tocar. E para mais estava na sala. Está bem, vou já. Estou! Sim, mãe, estou quase pronta. O despertador tocou, só estou um bocadinho atrasada. Não te aflijas que chego à hora. Vou já tomar o pequeno-almoço. Não, ainda não vi o pão fresco, mas vou já à cozinha. Ó mãe, ainda não pude aquecer o leite. Não, mãe, não fiquei na cama, estive a olhar pela janela. Ó mãe, achas assim tão estranho eu ficar a olhar pela janela? Eu sei que me levanto sempre em cima da hora e a correr. Achas, mãe, achas que eu vou faltar? Eu estava a olhar o rio. Não, mãe, não estou tolinha, mas parecia que um rio se tinha mudado para perto de nós e eu fiquei a ver. Eu sei, mãe, que não tens tempo para fantasias, mas tu é que me perguntaste por que é que eu tinha estado a olhar pela janela. Ó mãe, não, não estou a gozar, era mesmo um rio aqui no vale. Ó mãe, não, não rebentou nenhum cano, podes estar descansada, eu acho até que o rio não era de água. Estou bem, mãe, estou, só te estou a dizer o que estive a ver pela janela, mas agora tenho de ir, senão chego mesmo atrasada à escola. Eu sei, mãe, que não me justificas as faltas de atraso, isso também só aconteceu uma vez. Pronto, mãe, até logo. Beijinhos.
Maria olhou o relógio. Já eram nove menos um quarto. Tinha de ir a passo acelerado para a escola. Se a professora já estivesse a escrever o sumário, quando ela entrasse, diria logo: pois, Maria, desculpo o atraso, mas não tiro a falta.
Às nove e cinco, estava a fechar a porta de casa. Ainda entrou de novo, para ver se o fogão tinha ficado aceso. Caminhava tão depressa que nem reparava nas pessoas com quem se cruzava. Às vezes, ainda olhava para as nuvens que pareciam coroar a serra, mas hoje nem isso. E o relógio a andar tão depressa. Às vezes, as horas não passam, outras são um cavalo em liberdade, sempre a correr.
Quando estava a chegar à escola, lembrou-se do rio que tinha visto no vale, logo pela manhã. Ainda lá estaria? Entrou na sala atrás da professora. Uf! Tinha chegado a tempo.
Sabia que tinha sido o nevoeiro que tinha criado aquela ilusão, mas enquanto tirava o livro e o caderno da mochila, ia pensando: sou mesmo sortuda, hoje um rio veio visitar-me perto de casa.
De repente, viu que a professora a olhava, à espera de uma resposta para uma pergunta formulada.
-Desculpe, professora, não ouvi a pergunta. Pode repetir, por favor? Estava distraída por causa de um rio que vi no vale, perto da minha casa.
-Também reparei no fenómeno do nevoeiro quando passei lá perto. A Natureza é surpreendente. Às vezes, até um rio parece mudar de lugar. Interrogo-me se a Natureza não o faz por Amor.
Vamos lá, meninos, escrevam o sumário.

D.G. – 21 de novembro 2012