quinta-feira, 31 de julho de 2014

DOMINGOS MIRA FLOR - 3


3 – À noite, nem todos os gatos são pardos


Se se ouvisse o relógio da Igreja da Misericórdia, saber-se-ia que eram oito horas da noite quando Flor entrou em casa. Gostava de ver as notícias e habituara-se a ouvi-las sozinha. Queria prestar atenção aos pormenores. Se estivesse acompanhada, não gostaria de fazer o gesto de estender a mão, com a palma voltada para baixo, em sinal de pretendido silêncio, ou tocar no braço do interlocutor para se calar, o que, convenhamos, não é muito agradável. Mas também estar a ouvir as notícias de forma intermitente cortava-lhe a compreensão. Já bastava o que não era dito pelo Governo e por quem governa e se governa no país.
Estar com Domingos era voltar à felicidade de muitos domingos à tarde, cuja luminosidade parecia estar fechada numa das arcas que o tempo, naturalmente, vai fechando. Não falavam muito do passado. Não faziam perguntas sobre a vida de cada um. O que eram abria-se, no presente, como a porta da varanda em fins de tarde tranquilos. Mas também se fechava se o recolhimento se impunha.
Começavam a conhecer-se bem. Chegaram ao ponto de beber do mesmo copo e comer da mesma colher. Quando uma ideia menos tranquila se atravessava, sem nada dizerem um ao outro, tentavam enxotá-la, como se faz a uma mosca desavinda. Nada diziam, mas pressentiam o que ia penetrando na alma de cada um.
Desta forma, Flor entrou em casa, sabendo que Domingos estava muito preocupado com a ausência do gato. Liga-se a gente aos bichos e eles desaparecem sem mais nem porquê. Quando voltasse, iria prendê-lo por umas horas para aprender a não abusar da liberdade. Ou teria sido atropelado? Mas na rua das Flores já não há trânsito. Poderia ter sido levado por alguém Para mais, era um gato limpo e luzidio. E de olhar nítido e brilhante..
Domingos não conseguiria dormir enquanto não encontrasse o bicho. Foi à varanda e olhou, atentamente, à sua volta. Os quintais iam escurecendo, o rio ganhava os reflexos da ponte D. Luís iluminada, a rua ia-se despojando e alargando o seu espaço. Do gato nem sombra.
Saiu de casa, olhando para todos os recantos e outras varandas. Um vizinho perguntou-lhe se tinha perdido alguma coisa e se precisava de ajuda. Que não, obrigado, tinha sido o gato que fugira, mas, de certeza, que voltaria. E continuou a percorrer a rua das Flores, enquanto Flor, na sua casa, via as intermináveis notícias e assistia aos repetidos comentários, enquanto fazia saquinhos de crochet que gostava de oferecer cheiinhos de bombons.
De repente, Domingos viu um gato e a seguir logo outro, mas eram todos diferentes e nenhum era pardo, apesar da noite já instalada.
Resolveu regressar. Antes de pôr a chave na porta, olhou para a varanda de Flor. Havia apenas uma luz ténue. Antes de ir dormir, foi à varanda. Enroscado, o gato dormia. Raio de gato. Teria estado sempre ali sem ser visto? Que pena os bichos não falarem. Talvez seja melhor assim.
Antes de fechar a portada, reparou na luz acesa em casa de Flor. Agora bem mais forte do que momentos antes. Estaria a ler, com certeza. A luz continuou bem viva por umas duas horas.
Como combinado, iriam tomar um pingo e uma nata ao café Porta do Olival. Imaginava Flor a tirar um livro pequeno da carteira e a ler-lhe passagens que tinha sublinhado para ele. Ouvindo-a, pôr-lhe-ia a mão sobre o ombro e também lhe faria festas no cabelo e no rosto. Aproveitaria para lhe dar um beijo.
Mas nem sempre acontece o que se julga acontecer.
(Continua, com Domingos a voltar a uma gaveta há muito fechada).

quarta-feira, 30 de julho de 2014

DOMINGOS MIRA FLOR


2 – Na varanda - com a porta aberta de par em par



Domingos andava radiante. Encontrava-se com Flor todos os dias. Alguns estendiam-se até à passagem para um outro. Não queria, porém, sair de casa de Flor mais tarde do que a meia-noite, porque poderia haver pessoas a espreitar à janela para espantar solitária insónia. Estenderiam demasiado o olhar e as congeminações. A vida era sua até esta maravilha ter ponto final.
Domingos estava apaixonado por Mira Flor. Numa das últimas tardes, sentaram-se junto à varanda. Abriram a porta de par em par, voltando-se para a luz errante do rio. Domingos perguntou a Flor se podia pôr uma música de Rui Veloso. “Claro, Domingos, sabes que gosto muito das músicas dele e das letras de Carlos Tê”. “Pode ser Porto sentido, Flor?” Sim, que melhor escolha poderia haver num fim de tarde sentidamente calmo e tranquilo?
Antes de ouvirem a música, Domingos levantou-se e foi à cozinha. Chegou com dois copos de vinho branco bem fresco. “Bonitos copos”, disse Flor. “Vêm do casamento da minha mãe”, respondeu Domingos, com um sorriso meigo de quem aprendeu a acarinhar pessoas e coisas simples mas importantes da vida.
Brindaram. Domingos, aproximando-se ainda mais de Flor, exclamou: “Sou tão feliz, Flor”. Ela respondeu com um sorriso e com um beijo. Há muitos anos que não faziam tal confissão.
O gato, esse tinha desaparecido durante toda a tarde e, à noite, ainda não tinha regressado.

(Continua, possivelmente noutro lugar, mas sempre com Domingos e Flor por perto. Não sei se o gato também).

terça-feira, 29 de julho de 2014

Uma história no Porto

DOMINGOS MIRA FLOR
- umas notas breves sobre o que poderá escrever-se em breve

Imagem da net





Esta história está incluída na coletânea Lugares e palavras do Porto da editora Lugar da Palavra.
Dei o conto a ler ao meu pai. Após a leitura, o seu comentário foi mais ou menos este:
- O início prometia, mas a história acabou de repente. Se fosse o Camilo, quantos enredos encontraria!
Disse-lhe eu:
- Pai, eu não sou Camilo e a narrativa tinha um número limite de palavras.

Depois disto, pensei que o melhor seria continuar a história. Com a consciência plena de que não sou Camilo, é claro.
Dedicarei a continuação da história ao meu pai, tentando manter o interesse na leitura.
Se encontrarem o Domingos e Flor pelo Porto, será bom sinal!