3 – À noite, nem todos os gatos são pardos
Se se ouvisse o relógio da Igreja da
Misericórdia, saber-se-ia que eram oito horas da noite quando Flor entrou em
casa. Gostava de ver as notícias e habituara-se a ouvi-las sozinha. Queria
prestar atenção aos pormenores. Se estivesse acompanhada, não gostaria de fazer
o gesto de estender a mão, com a palma voltada para baixo, em sinal de
pretendido silêncio, ou tocar no braço do interlocutor para se calar, o que,
convenhamos, não é muito agradável. Mas também estar a ouvir as notícias de
forma intermitente cortava-lhe a compreensão. Já bastava o que não era dito
pelo Governo e por quem governa e se governa no país.
Estar com Domingos era voltar à
felicidade de muitos domingos à tarde, cuja luminosidade parecia estar fechada
numa das arcas que o tempo, naturalmente, vai fechando. Não falavam muito do
passado. Não faziam perguntas sobre a vida de cada um. O que eram abria-se, no
presente, como a porta da varanda em fins de tarde tranquilos. Mas também se
fechava se o recolhimento se impunha.
Começavam a conhecer-se bem. Chegaram
ao ponto de beber do mesmo copo e comer da mesma colher. Quando uma ideia menos
tranquila se atravessava, sem nada dizerem um ao outro, tentavam enxotá-la,
como se faz a uma mosca desavinda. Nada diziam, mas pressentiam o que ia
penetrando na alma de cada um.
Desta forma, Flor entrou em casa,
sabendo que Domingos estava muito preocupado com a ausência do gato. Liga-se a
gente aos bichos e eles desaparecem sem mais nem porquê. Quando voltasse, iria
prendê-lo por umas horas para aprender a não abusar da liberdade. Ou teria sido
atropelado? Mas na rua das Flores já não há trânsito. Poderia ter sido levado
por alguém Para mais, era um gato limpo e luzidio. E de olhar nítido e
brilhante..
Domingos não conseguiria dormir
enquanto não encontrasse o bicho. Foi à varanda e olhou, atentamente, à sua
volta. Os quintais iam escurecendo, o rio ganhava os reflexos da ponte D. Luís
iluminada, a rua ia-se despojando e alargando o seu espaço. Do gato nem sombra.
Saiu de casa, olhando para todos os
recantos e outras varandas. Um vizinho perguntou-lhe se tinha perdido alguma coisa
e se precisava de ajuda. Que não, obrigado, tinha sido o gato que fugira, mas,
de certeza, que voltaria. E continuou a percorrer a rua das Flores, enquanto
Flor, na sua casa, via as intermináveis notícias e assistia aos repetidos
comentários, enquanto fazia saquinhos de crochet que gostava de oferecer
cheiinhos de bombons.
De repente, Domingos viu um gato e a
seguir logo outro, mas eram todos diferentes e nenhum era pardo, apesar da
noite já instalada.
Resolveu regressar. Antes de pôr a
chave na porta, olhou para a varanda de Flor. Havia apenas uma luz ténue. Antes
de ir dormir, foi à varanda. Enroscado, o gato dormia. Raio de gato. Teria
estado sempre ali sem ser visto? Que pena os bichos não falarem. Talvez seja
melhor assim.
Antes de fechar a portada, reparou na
luz acesa em casa de Flor. Agora bem mais forte do que momentos antes. Estaria
a ler, com certeza. A luz continuou bem viva por umas duas horas.
Como combinado, iriam tomar um pingo
e uma nata ao café Porta do Olival. Imaginava Flor a tirar um livro pequeno da
carteira e a ler-lhe passagens que tinha sublinhado para ele. Ouvindo-a,
pôr-lhe-ia a mão sobre o ombro e também lhe faria festas no cabelo e no rosto.
Aproveitaria para lhe dar um beijo.
Mas nem sempre acontece o que se
julga acontecer.
(Continua, com Domingos a voltar a
uma gaveta há muito fechada).
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