domingo, 30 de novembro de 2014

Rua(s) de refúgio



Matisse


Era quase Natal. Dezembro ia chuvoso e frio. O vento empurrava folhas avermelhadas por ruas húmidas da cidade. Na montanha, não muito distante, os dias passavam brancos e gelados.
A Rua do Refúgio – designação que se devia a um antigo canil – estava deserta e os portões de ferro permaneciam fechados. O silêncio era tanto que, mal passava um gato, logo se ouvia e o latir de um cão lembrava um terramoto.
As camélias saltavam dos muros, como luzinhas coloridas em árvores de Natal.
Num dos jardins, vivia um ouriço-cacheiro. Arrastando-se, pachorrento, pisava as folhas que faziam crac-crac. O bicho tinha liberdade, tempo e espaço para passear nas árvores ou no terreno musgoso. Os picos, que faziam parte da sua natureza, alisavam os percursos.
Diana, uma menina de olhos meigos e azuis, morava nessa rua. Andava pensativa e triste, porque os pais pouco falavam e não a deixavam brincar fora de casa. Nem sequer no jardim. Corria perigos - diziam. Diana olhava-os boquiaberta.
Punha-se, então, a ler, a estudar, a jogar computador, a ver televisão… Também enviava sms. Muitos.
Um dia, Diana descobriu que era bom olhar vagarosamente pela janela do quarto, donde podia observar os montes; os quintais; os jardins; a chuva a cair; os gatos enroscados ao sol, ou a correr ou a trepar aos muros; o vento a bater na portada solta; um esquilo fugitivo; uma mulher passando apressada; um homem velho manquejando; um par de namorados em contínuos e desejados abraços...
Começou a desenhar e a escrever pequenos textos.
Era quase Natal e as casas da rua do Refúgio pareciam brinquedos gigantes sem ninguém dentro para brincar. Apenas silêncio, plantas e bichos. Descobria a rua despida como troncos de magnólias no Inverno e recordava o nome de flores, árvores e arbustos que o avô lhe ensinara, quando era mais pequena.
Diana olhava as montanhas ao longe que pareciam espelhos com claros reflexos. A menina contemplava-as e lembrava-se dos distantes e solitários abetos rendilhados por flocos de neve; do frio seco no rosto de quem passava; da casinha pequena, com uma lareira e uma janela e uma mesa tão boa para ler ou escrever histórias vividas ou imaginadas; o cão Dunas, afável e fiel; pessoas que olhavam os outros com tempo e atenção…
Apetecia-lhe ir até lá, mas as amigas estavam de férias com os avós; o pai, quando falava, repetia que tinha muito trabalho e pouco tempo; a mãe, quando respondia, queixava-se de cansaço e solidão.
Numa tarde de sábado, Diana foi com a mãe ao Centro Comercial das Buganvílias. De mãos dadas, caminhando sorridentes, a menina reparou que a mãe era muito bonita. Quando escrevesse uma história, ela seria uma fada.
Junto às lojas, a mãe e as amigas começaram logo a falar, ruidosamente, dos presentes, das compras já feitas, das promoções na loja dos perfumes, dos novos modelos de botas, dos vestidos brilhantes para o Ano Novo…
Regressando à rua do Refúgio, Diana e a mãe repararam que o portão de casa estava aberto. Nunca o tinha visto assim escancarado.

Entraram em casa devagar, olhando para todos os lados, com algum receio.
Teria alguém entrado em casa na sua ausência? E o pai, onde estaria? Procuraram um bilhete, uma mensagem de telemóvel… E nada nem ninguém encontraram. Diana correu até à janela. A rua, como quase sempre, estava deserta. Na casa em frente, o esquilo trepava lesto no cedro alto e largo. Perto, serpenteava, por entre as folhas moídas, o roliço ouriço-cacheiro.
Foi quando o telemóvel tocou. Era o pai.
- Pai, onde estás? Onde foste? Por que deixaste o portão aberto? E não és tu que me recomendas sempre muito cuidado?
O pai, do outro lado, recomendou-lhe que falasse devagar e fizesse uma pergunta de cada vez.
Diana assim fez. E o pai respondeu-lhe que tinha ido à casinha da montanha porque precisava de estar só. (O pai sempre dizia que morava na rua do Refúgio, mas o refúgio só o encontrava na montanha).
A necessidade era tanta de se evadir que se tinha esquecido de fechar o portão. Andava há muito com uma história a bailar-lhe na cabeça. Queria escrevê-la e partiu. Não andava com paciência.
- Diana, a história que escrevi é a tua prenda de Natal. Venham cá ter amanhã. Podemos lê-la à lareira. A mãe prefere ficar aí?
Diana não sabia bem o que fazer. Mais uma vez estava dividida entre pais divididos. Sentindo um turbilhão, Diana insistiu com a mãe para irem ter com o pai à casinha da montanha. A mãe respondeu que não. Diana disse, então, que ia telefonar à tia Luísa. Era com ela que desabafava quando os momentos eram pesados e tinha de procurar algum alívio. Era também o seu refúgio. Pedir-lhe-ia que a levasse. A mãe concordou.
Para além de ter curiosidade em ouvir a história do pai, queria saber também a sua opinião sobre o que ela própria tinha escrito e desenhado. Levaria o caderninho com os desenhos de plantas e bichos que observava da janela. Quando chegassem, queria que a mãe ouvisse as histórias – a do pai e a sua.
Quando Diana regressou com o pai, na véspera de Natal, a mãe tinha saído. Para não voltar – dizia ela num bilhete, deixado na mesinha da entrada.
A menina olhou o pai e começou a chorar.
Nos dias seguintes, passava ainda mais tempo perto da janela, sem ver as plantas e os bichos que sempre lhe haviam prendido a atenção.
Queria ver a sua fada voltar.

 Escrevi as primeiras cinco dezenas de linhas, em 2010,
num ateliê de escrita, em Serralves.
O objetivo era escrever uma história de Natal. 
Cada participante teria de continuar o texto 
que havia sido escrito pelo colega anterior.

Nunca cheguei a ver a estória completa. E tenho pena.
Hoje dei um final à parte que eu havia iniciado.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

ESCREVER

 Irene Lisboa nasceu a 25/12/1892
 e morreu a 25/11/1958, há 56 anos.
(Imagem enviada pela Poetria)
Se eu pudesse havia de transformar as palavras em clava.
Havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressonante, sem música.
Como um gesto, uma pancada brusca e sóbria.
Para quê todo este artifício da composição sintáctica e métrica?
Para quê o arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras, pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo.
Vejo, admiro, desejo?
Ou sim ou não.
E como isto continuando.

E gostava para as infinitamente delicadas coisas do espírito…
Quais, mas quais?
Gostava, em oposição com a braveza do jogo da pedrada, do tal ataque às
coisas certas e negadas…
Gostava de escrever com um fio de água.
Um fio que nada traçasse.
Fino e sem cor, medroso.

Ó infinitamente delicadas coisas do espírito!
Amor que se não tem, se julga ter.
Desejo dispersivo.
Vagos sofrimentos.
Ideias sem contorno.
Apreços e gostos fugitivos.
Ai! o fio da água, o próprio fio da água sobre vós passaria,
transparentemente?
Ou vos seguiria humilde e tranquilo?
Irene Lisboa

domingo, 23 de novembro de 2014

Mas que as há...


Imagem enviada por AV


Hoje, ao passar numa estrada com árvores de cores outonais, pensei que gostava de saber pintar.
Os amarelos, os ocres, os castanhos, os vermelhos, os verdes estavam lá todos.
Ou então, gostaria de saber reuni-las em versos ou em frases em que tantas tonalidades não ficassem sombrias.
Agora, abro o computador e vejo esta imagem.
Afinal, há coincidências?
Não sei, mas que há cores fabulosas nas árvores há!

sábado, 22 de novembro de 2014

A mesa da cozinha



           Alguns dos seus bons momentos são passados à mesa.
Não só para comer, é claro.  Lá, está o computador, o telefone tirado do seu suportezinho escuro, uma chávena de café ou de chá…  Ao lado, em duas cadeiras vazias, estão trabalhos para corrigir, um filme à espera de ser visto, uma cestinha com novelos, agulhas, trabalhos inacabados, um livro para ler um pouco mais…
Por isso, quando chega o tempo de se sentar à mesa, vem a pausa desejada. E quando surgem ideias para um texto ou para uma estória, em vez de ser só pausa é a abertura à imaginação, ao prazer tranquilo, à reinvenção de tempos e de espaços, aos mimos às palavras que se escolhem.
E quando das mãos saem pequenos trabalhos, que são um pequeno mimo para quem os recebe, agiganta-se o gosto das coisas simples, pequenas mas originais.
E hoje, sábado sossegado e de chuva miudinha, estar à mesa da cozinha é uma das melhores opções. E há tanto para fazer!
Em frente à mesa, está a pequena televisão. Muitas vezes sem som. Hoje, as imagens, os títulos, as citações recaem sobre “Sócrates detido”. Desde o início da manhã.
Parafraseando uma frase de Vergílio Ferreira, “Da minha língua vejo o mar”, apetece dizer que também de uma mesa da cozinha se vê o mundo. Que poderia e deveria ser bem melhor!



Os casos políticos e os mais jovens



Recuando algum tempo, e mencionando casos mediáticos, os portugueses lembram-se dos privilégios concedidos a Cavaco nas ações do BPN; do caso do imbróglio de milhões na compra dos submarinos; da confusão da Proforma que o primeiro-ministro nunca chegou a explicar; dos Vistos Gold, atribuídos por mãos sujas de polvo; da detenção, ontem, de Sócrates e, infelizmente, muitas mais.
E isto acontece porque existem mentiras, traições, falsas promessas, ambição desmedida, atropelamento de deveres e direitos, abandono de valores humanos, esquecimento do serviço público, desrespeito pelos cidadãos e muito mais.
Pelo que observo, poucos jovens veem ou escutam notícias, mas ouvem falar delas, recebem ecos, muitas vezes até vagos e distorcidos.
Muitos, hoje, dirão: "é mais um, são todos assim", etc. Mas o pior, na minha opinião, é quando pensam e dizem: "se eles são assim, por que é que eu não posso dizer e fazer a mesma coisa?"
Grave é o facto de as gerações mais jovens se confrontarem com estes casos nebulosos em que cada um afirma ter razão, tantas vezes perdendo a razão, ou pensando que os outros nem razão têm.
Quem corrompe ou se deixa corromper nem terá tempo para pensar nisso, tal é a espessura da teia. E é pena não se importarem com o mal que fazem e que não se fica pelo presente, avançando rapidamente para o futuro.
O que mais se irá esconder/descobrir?
Haja justiça, mas não apenas para alguns. Esta prática é também nefasta para os jovens.