quinta-feira, 13 de outubro de 2011

«A experiência da cobaia»


Confesso que não gostei de saber que fui trocada por dinheiro. Preferia – sempre fui um pouco ingénua e idealista – que me tivessem levado para casa só por amor. Fui adquirida como um bibelô, um jogo ou um boneco qualquer.

Parecia dócil e era vegetariana. Por isso, não provocaria nem atrito nem rombo na carteira de quem me adotasse. A ideia de juntar o útil ao agradável estava bem presente. Como sou fêmea, podia amamentar ninhadas de filhotes e a minha reprodução também não complicaria a vida dos meus anfitriões.

Não me recordo de ter ouvido alguém dizer que queria tornar a minha vida mais feliz ao retirar-me do mini-zoo, onde eu estava em grande exposição sob brancas luzes fluorescentes. Sobre isso nem uma palavra. Mas também fui reparando que isso era comum.


A mais pequenina da família dizia que eu era gorduchinha e fofinha. A mãe respondia com um sorriso de quem estava contente e de acordo. A alegria era partilhada pelo pai. Fui-me apercebendo de que ele fazia as vontades à filha, porque, assim, os jogos de futebol não eram interrompidos nem os telejornais.

Sem qualquer pompa, porque a circunstância também não o exige, sempre me senti próxima dos peixes do Sermão de Santo António. Tal como eles, oiço e não falo, enquanto que os homens falam mas, muitas vezes, não ouvem.


Tenho ainda bem presentes algumas palavras dos pais da minha dona: filha, olha que a cobaia não gosta de mudanças nem sequer alimentares. Mesmo sem querer, eu esmorecia, porque se reafirmava a minha rigidez, a minha inadaptação à mudança, o meu fechamento a outros mundos. Do que nunca gostei foi que me mudassem o sexo: meu porquinho da Índia! Que riquinho! Apetecia-me gritar-lhes que uma cobaia não é um mero adorno doméstico a quem se fala como se fosse apenas um ser felpudo, esquisito e estúpido. Sem ela, muitas descobertas científicas não tinham sido alcançadas.

Um outro aviso que os pais da menina faziam era que as cobaias adultas, quando zangadas, batem com os pés no chão, podendo ferir os filhotes. Quando eu ouvia este reparo, eu própria me sentia um potencial perigo. Como se o céu claro pudesse, de repente, tornar-se escuro e desabar em tempestade.


Desde muito nova habituei-me a ouvir discursos contraditórios. Às vezes, eu era uma beleza e regalo para o olhar, outras um estorvo. Na velhice, aí pelo meu quinto ano de vida, confesso que esta ambiguidade continuava a afetar-me. Criei, porém, as minhas próprias defesas.

Ao longo do tempo, ouvia convocar a minha natureza em muitas situações que eu até então desconhecia. A menina dizia arreliada: nós, os alunos, somos sempre as cobaias. A mãe referia o desconforto de fazer parte da cobaia humana. Confesso que me inspirava um certo orgulho o facto de os seres da minha espécie serem tão conhecidos e referidos, mas sabia-me quase a insulto penetrar em tantas situações. Sentia-me ordinária sem esquecer que uma parte da evolução da ciência também nos é devida.


Entretanto, a minha dona cresceu e já não olhava para mim com a mesma atenção. Quando me escolheu no mini-zoo, eu era como que um pequenino e macio cobertor de que a menina precisava para aprender a aquecer as mãos e os sorrisos. Depois, tornei-me num pequeno agasalho já gasto e habitual.

Mas uma vez que estou num tom confessional, gostava de dizer o seguinte: tenho um grande desejo: conhecer a Índia para saber por que me chamam porquinho desse país. Estou a viajar através da leitura. A minha dona gosta de ler em voz alta e, talvez por acaso, às vezes fá-lo perto de mim. Quando se levanta, costuma deixar o livro aberto. Está a ser uma boa experiência. E confesso que até me dá vontade de rir quando penso que podia ter um título esta minha pequena história: «A experiência da cobaia».

Se os humanos soubessem, alguns mudariam logo a preposição: «A experiência com cobaia».

Pelos vistos, só eu é que não mudo!



Ateliê de Escrita – Serralves (2009)

Tema sugerido pelo escritor Mário Cláudio


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