sexta-feira, 30 de setembro de 2011
Diário de Mariana
30 de setembro
Querido diário,
Ainda há bocadinho te escrevi, mas amanhã é sábado e por isso cá estou eu outra vez.
Ontem a setora de português esteve a falar sobre o Acordo Ortográfico e das letras que agora não se escrevem porque não se pronunciam. E deu exemplos: reação, ótimo, batizado, ato, direto e outros que eu escrevi no caderno mas de que já não me lembro muito bem. E disse então o César: ó setora, tive tantos castigos por dar erros em palavras como estas e agora é que se escrevem assim. Não há direito. Começámos todos a rir. Eu, por acaso, não me importo nada com as mudanças do Novo Acordo porque não gosto da cena de parar para ver se falta o pê, o cê ou não sei quê.
Eu acho que outras coisas também deviam mudar. A minha mãe comentou que um político foi preso e depois libertado. Parece que enriqueceu muito, enquanto tinha o cargo público. Não acho nada bem. Se eu tiver recebido a mesada e pedir o troco do pão à minha mãe é abuso, se “eles” ganharem tanto como se lhes saísse o euromilhões nada acontece. Não percebo nada disto.
Por acaso, eu até gostava de ser rica, tipo Madona. Assim também não envelhecia e ajudava muitas pessoas a sonhar. Ainda sou adolescente mas já dá para compreender que ter muitos fãs não está ao meu alcance. Ainda hoje, ouvi uma prof no bar a falar de um aluno e ela disse assim: ele só pensa nele. Assim, vai longe. Eu acho que era ironia, mas por acaso até concordo.
A minha mãe diz-me que eu tenho pouca ambição. E eu, para desviar o assunto, aproximo-me dela, ponho a mão por trás da orelha e digo como se fosse mouquinha: o quê, queres um xi-coração?
Muitos xis, querido diário.
Mariana
Diário de Mariana
30 de setembro
Querido diário,
Hoje foi um dia em cheio. Vem aí a festa do Rosário e não vamos ter aulas na próxima segunda-feira. E na 4ª f, vai haver outro feriado. Devia ser assim todas as semanas. Assim dava mais tempo e não havia tanta correria.
Gostava de ser organizada como as minhas irmãs, mas tenho sempre coisas atrasadas. E acredita que me esforço, mas… olho para trabalhos que tenho para fazer e apetece-me é escrever-te, querido diário. Esta semana, vou ter mais tempo para estar contigo, mas a minha mãe já me disse que ia ver os meus cadernos e se eu tinha os trabalhos todos em dia. Vou tentar surpreendê-la, mas o melhor é não prometer nada.
Como estou contente por ir à festa do Rosário com a minha turma, pus uma fita vermelha no cabelo e dei um laço. Não sou muito dessas coisas, mas acho que ficava fixe e sentia-me bem. Quando ia para a aula, veio a Bea e disse-me que uma rapariga lhe contou que a prof dela tinha lido na aula uma página do meu diário. Não acredito, disse eu. É verdade, disse ela. Não fiquei a saber mais nada, mas se calhar foi o laço vermelho no cabelo que me deu sorte. Fiquei supercontente.
Espero que eu também te dê sorte, querido diário.
Um xi-coração.
Mariana
quinta-feira, 29 de setembro de 2011
Diário de Mariana
29 de setembro
Querido diário,
Às vezes, tenho vontade de espreitar a agenda da minha mãe. A minha mãe gosta de dizer “a minha moleskine”. Fui eu que lha ofereci e fico toda orgulhosa quando vejo a minha mãe a escrever nela ou a tomar algumas notas. Um dia, não resisti e abri a agenda ao calha para ler o que estava lá escrito. Parecia mesmo curiosidade mórbida. Vi logo um texto sobre um café a que a minha mãe deu o nome de Café da Magnólia Comecei a ler e, de repente, chegou a minha mãe e disse-me com ar de quem está mesmo zangada: Mariana, não posso acreditar; Mariana, tu tens o teu diário e eu nunca o abri e tens coragem de espreitar a minha moleskine? (Senti-me como se estivesse com um olho no buraco da fechadura). Ó mãe, disse eu, quando abri a tua moleskiiine (prolonguei a palavra como faz sempre a minha mãe), o Café da Magnólia chamou por mim e eu entrei. Mariana, ainda me disse a minha mãe, não te ponhas com ironias tolas.
Depois de jantar, a minha mãe chamou-me para junto dela e disse-me: Mariana, vou ler-te o que escrevi sobre o Café da Magnólia numa das viagens mais bonitas que fiz na minha vida a uma cidade americana. Via-se mesmo que tinha tanta vontade de falar da viagem que esqueceu a cena da moleskine. Fixe.
Enquanto eu ouvia ler o texto, as minhas irmãs estavam no computador. Têm sempre trabalhos para entregar, assuntos a estudar, mails para responder, artigos para ler… A minha mãe disse-me que no café da Magnólia toda a gente estava a estudar. Um dia, gostava de lá ir, mas se for, levo só o meu diário e já chega. Fogo.
Muitos xis, querido diário.
Mariana
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
Os chapéus de Mrs Longshire
Antes do casamento, ela quis que todas as divisões ficassem impecavelmente decoradas. O hall de entrada e a sala eram a menina dos seus olhos: com vista para o jardim de relva bem cortada e flores dispostas em pequenos canteiros: tulipas, narcisos, amores-perfeitos… Nenhuma planta seca podia existir. Nenhuma erva daninha podia ser vista. Nem folha amarelada sequer. Só no outono. A casa e o jardim tinham de ser perfeitos.
No hall de entrada, sobre uma mesa redonda, um bule e chávenas muito finas repousavam em tabuleiro com paisagem de corrida de cavalos e damas usando fantasiosos chapéus.
Na sala contígua, havia um piano no recanto preferido, bancos de veludo, canapé, chaise longue, estante com livros, reposteiros em mousseline… Uma tapeçaria cobria quase toda a parede e uma carpete da Índia acolhia o velho e sonolento labrador. No móvel envidraçado, brilhavam cristais ao lado da antiga loiça inglesa.
Instalados na casa, Mrs Longhsire exigia o máximo de ordem e repetia que o seu desejo seria sempre o querer do seu amado esposo. Por isso, ele partilharia do rigor na organização da casa. Seria interdito o ruído de vozes ou gargalhadas estridentes. Todo o cuidado deveria ser mantido com os objetos para preservar a silenciosa harmonia da mansão.
Ao lado do seu quarto, com cama de dossel, outro compartimento havia onde se arrumavam os chapéus. Em caixas redondas e aveludadas. Cada caixa tinha uma legenda e a ordem não podia ser alterada.
Logo pela manhã, Mrs Longshire dava um passeio a pé através do longo jardim, enquanto o marido ficava deitado a repousar mais um pouco. Mal a sua figura se ia tornando pequenina com a distância, Mr Longshire recebia as criadas do quarto com alegres gargalhadas. O seu momento preferido era quando experimentavam, histriónicas e teatrais, os chapéus de Mrs Longshire e se voltavam para ele, como se se vissem a um animado espelho.
Quando regressava do passeio, Mrs Longshire pedia um chá na sua chávena de biscuit. Sem antes se aproximar do quarto e dizer com voz suave: bom dia, meu amor. Já não estás só. Vem saborear a manhã e ajudar-me a escolher o chapéu que vou usar contigo logo à tarde.
Tema sugerido em Ateliê de escrita em Serralves, a partir de retrato de mulher.