Penélope era o nome que lhe ficava bem, mas podia perfeitamente chamar-se de outra forma. Também lhe assentava na perfeição o nome de Lídia: "Vem sentar-te, Lídia..." Julgo, porém, que ela não conhecia o verso do heterónimo pessoano.
O nome fora-lhe dado já muito longe do tempo da infância em que, normalmente, se atribuem os nomes. Vinha-lhe do hábito e do gosto que tinha em bordar uma grande toalha com desenhos do fundo do mar.
Penélope bordava sobretudo peixes, muitos deles em diferentes tonalidades de azul. As horas noturnas de insónia ocupava-as a bordar. O marido - que outrora tinha tido um belo ar heroico como Ulisses - sentindo a falta do calor da sua amada, levantava-se e já sabia onde podia encontrá-la: junto à janela, numa pequena sala, onde havia caixas com linhas de todas as cores. Curvada para o seu bordado, uma mão segurava o tecido e a outra ia pintando, com a linha e a agulha, a vida do fundo do mar, onde proliferavam algas, rochas e peixes.
Há quinze anos que Penélope bordava a toalha. Não se podia dizer que vinham admiradores e admiradoras do reino ver o trabalho, mas o marido, que parecia Ulisses, saudoso da sua Penélope, contava aos amigos e estes às suas mulheres e filhos e todos gostariam de ver a toalha de Penélope, por ser tão perfeita e tão bem retratar o fundo do mar. O marido, que ia perdendo o ar de Ulisses, mas não para Penélope, afagava-lhe os cabelos e ia deitar-se de novo. Muitas vezes lhe havia dito para que se deitasse e o sono viria, mas desistira do pedido, nunca do seu amor.
Penélope não bordava a toalha enquanto esperava Ulisses, porque este estava sempre por perto. Penélope gostava de bordar - e bordava - a qualquer hora do dia e da noite. Tinha uma luz pequenina que deixava ver, com toda a nitidez, o espaço que preenchia com o seu paciente bordado a cheio, ponto pé de flor, cadeia, matiz, crivo...
A toalha havia sido começada há quinze anos e seria, finalmente, posta na mesa do Natal. Depois de concluída, analisada do avesso e do direito, Penélope lavou-a com delicadeza, com as suas próprias mãos, passou-a a ferro com esmero e paciência, dobrou-a com todo o cuidado, colocou-a em cima de uma outra toalha alvíssima, para ser usada na noite de Natal.
O trabalho de alisar a toalha demorou um bom par de horas. Depois de estar tudo pronto, sentou-se bem próxima da toalha, reclinou a cabeça e quase adormeceu de cansaço. Nem ouviu o vento que lá fora soprava. Parecia vindo do mar ao qual Penélope tanto queria. Seguiu-se um trovão, logo acompanhado de uma rajada de vento. Penélope, quase adormecida, parecia estar a sonhar e até se imaginou com o seu forte e amado Ulisses a navegar em mar de vagas alterosas, empurradas pela fúria de Éolo poderoso.
De repente, abre-se uma porta e entra uma cadela de belo pelo castanho em busca de refúgio e companhia. Salta para o lado de Penélope que continua a dormitar. Penélope parece sossegada no seu dormir, mas a cadela nenhuma calma tem. Salta para a mesa mais próxima e aninha-se no fofo monte de toalha dobrada. Agita-se e quer brincar, puxando as pontas da toalha. Lá fora, continua a tempestade. O chão da sala parece o fundo do mar. Desdobrada e estendida a toalha, a cadela quer brincar com os peixes, cravando-lhes as patas e puxando-os com o focinho. Daí a nada, saltam pedaços como se fossem peixes a nadar.
Penélope acorda do seu sono mais profundo do que pesado. Não quer acreditar no que os seus olhos veem. Chama Ulisses, mas ele não está.
Há quinze anos que Penélope bordava a toalha. Não se podia dizer que vinham admiradores e admiradoras do reino ver o trabalho, mas o marido, que parecia Ulisses, saudoso da sua Penélope, contava aos amigos e estes às suas mulheres e filhos e todos gostariam de ver a toalha de Penélope, por ser tão perfeita e tão bem retratar o fundo do mar. O marido, que ia perdendo o ar de Ulisses, mas não para Penélope, afagava-lhe os cabelos e ia deitar-se de novo. Muitas vezes lhe havia dito para que se deitasse e o sono viria, mas desistira do pedido, nunca do seu amor.
Penélope não bordava a toalha enquanto esperava Ulisses, porque este estava sempre por perto. Penélope gostava de bordar - e bordava - a qualquer hora do dia e da noite. Tinha uma luz pequenina que deixava ver, com toda a nitidez, o espaço que preenchia com o seu paciente bordado a cheio, ponto pé de flor, cadeia, matiz, crivo...
A toalha havia sido começada há quinze anos e seria, finalmente, posta na mesa do Natal. Depois de concluída, analisada do avesso e do direito, Penélope lavou-a com delicadeza, com as suas próprias mãos, passou-a a ferro com esmero e paciência, dobrou-a com todo o cuidado, colocou-a em cima de uma outra toalha alvíssima, para ser usada na noite de Natal.
O trabalho de alisar a toalha demorou um bom par de horas. Depois de estar tudo pronto, sentou-se bem próxima da toalha, reclinou a cabeça e quase adormeceu de cansaço. Nem ouviu o vento que lá fora soprava. Parecia vindo do mar ao qual Penélope tanto queria. Seguiu-se um trovão, logo acompanhado de uma rajada de vento. Penélope, quase adormecida, parecia estar a sonhar e até se imaginou com o seu forte e amado Ulisses a navegar em mar de vagas alterosas, empurradas pela fúria de Éolo poderoso.
De repente, abre-se uma porta e entra uma cadela de belo pelo castanho em busca de refúgio e companhia. Salta para o lado de Penélope que continua a dormitar. Penélope parece sossegada no seu dormir, mas a cadela nenhuma calma tem. Salta para a mesa mais próxima e aninha-se no fofo monte de toalha dobrada. Agita-se e quer brincar, puxando as pontas da toalha. Lá fora, continua a tempestade. O chão da sala parece o fundo do mar. Desdobrada e estendida a toalha, a cadela quer brincar com os peixes, cravando-lhes as patas e puxando-os com o focinho. Daí a nada, saltam pedaços como se fossem peixes a nadar.
Penélope acorda do seu sono mais profundo do que pesado. Não quer acreditar no que os seus olhos veem. Chama Ulisses, mas ele não está.
Ai, Dolores, esta toalha da tua Penélope tem qualquer coisa de mandala! Aquelas construções tibetanas, budistas feitas de areia de muitas cores, que pretendem recriar ciclos de existência e preparar os monges para estados de meditação superiores, para o significado da iluminação. Depois de terminadas, ou seja, no fim do ciclo, são destruidas pelo mesmo, que desenha linhas circulares com o seu dedo, espalhando a areia.
ResponderEliminarE assim se ensina/aprende o significado do desprendimento do que é terreno, do ilusório e do efémero...
Depois, há este Ulisses, presente no momento da construção, ausente aquando da libertação dos peixes multicoloridos.
Presente no mar sonhado, ausente do mar tecido pelas mãos da sua Penélope. Ausente das mãos de Penélope. Mas sempre no seu coração...
Espero que a Penélope sorria com os peixes espalhados pelo chão, porque houve uma cadela que mergulhou, feliz, as patas naquele mar colorido feito com amor. Porque a felicidade é os momentos em que nos entregamos à construção, ao bordado e não a toalha bordada!
Há uns 10 anos, esta minha mensagem seria bem diferente. Eu seria capaz de chorar a perda do fundo do mar bordado. Hoje,já não sinto assim. As minhas perdas, agora, são pessoas...
Mas, como guardo a esperança de Pandora, nunca me perco delas!
beijinho
IA
Sim, também, para mim, as perdas são essencialmente pessoas.
ResponderEliminarMas, sabes, este texto surgiu-me de forma muito simples. Lembrei-me do teu poema em que falavas de Ulisses e de Penélope. Depois, ocorreu uma coisa muito prosaica: a minha cadela mordeu e rasgou uma toalha que eu tinha bordado antes dos meus vinte anos. Uma outra pessoa que eu conheço borda, incansavelmente, peixes. Daí a junção de algumas peças.
Também acho que, há uns dez anos, eu ficaria bem mais preocupada com a perda da toalha.
Um abraço
M.