domingo, 3 de março de 2024

'Passos e braços' de Clementina de Sousa

 

Ontem à tarde, na bonita e luminosa Biblioteca Municipal de Gondomar, Clementina de Sousa apresentou o livro


O desenho da capa é da sua neta Mafalda.

Somos amigas há muitos muitos anos e conheço bem o seu amor pelas palavras ditas e escritas. E também o conhecem a família, os amigos e os que com ela trabalham ou trabalharam. Para além de escritora, é uma boa comunicadora. Que o digam também os ex-alunos a quem contava histórias. Uma delas era a Branca-Flor, que há uns anos reescreveu e publicou.

Professora aposentada, tem dedicado agora mais tempo à escrita, à leitura, etc.

Manuel Maria - professor também durante longos anos e autor de vários livros - fez a apresentação: uma bela análise e bela aula de Literatura (texto que generosamente já partilhou) à volta do novo livro da Clementina, agora publicado e que considerou uma novela.

O editor - Lugar da Palavra - na sua intervenção, comparou a escrita profunda da autora a Virgílio Ferreira. Merecido elogio.

A autora, na sua intervenção, referiu palavras/questões partilhadas - citadas por Lídia Jorge e vindas do poeta Ramos Rosa - nas Correntes d'Escritas, que decorreram há dias na Póvoa de Varzim: 'Se tanta gente escreve, para que devo escrever também?' E a resposta surgiu inspiradora: 'Mas faltam os meus passos e os meus braços'. 

Este livro - que refere vidas diferentes, nomeadamente de dois irmãos - apresentado numa tarde de chuva mas de muito calor humano, motivará, com certeza, outras leituras e escritas. 

Que não parem 'passos e braços' para expandirem a maravilha da criação e comunicação.

 







sábado, 2 de março de 2024

E se as televisões começassem a falar de um pequeno partido que quase ninguém conhece?

 

Julgo não estar enganada ter ouvido o comentador da SIC José Miguel Júdice, na passada terça-feira, a louvar a prática de países, também considerados democráticos, que defendem o seu próprio candidato às eleições.  Discordo completamente, na minha modestíssima opinião.  No entanto, se estivermos atentos, vemos facilmente a tendência de certos canais no meio tão poderoso como é a televisão. E nem é preciso explicitá-la, basta ver como são constituídos os painéis de opinião - com a grande maioria de jornalistas e comentadores ligados, de uma forma ou de outra, a um determinado partido político. 

Ainda tenho a visão - talvez ingénua nos tempos que correm - que as televisões devem tentar ser imparciais, chamando  comentadores com diferentes visões e pareceres para que cada um forme a sua opinião. Sabemos que muitos jovens nem sequer ouvem ou veem a televisão, mas, para a grande maioria das pessoas, ainda continua a ser o meio de comunicação privilegiado e que exerce uma grande influência.

E pergunto agora:  E se as televisões começassem a falar de um pequeno partido que quase ninguém conhece? Acompanhando-o. Mostrando imagens. Falando dele. Repetindo o que disse, o que não disse, o que podia ter dito. Iniciando o telejornal com notícias sobre ele. Prolongando ou repetindo um pequeno acontecimento, etc.

Desculpem se é parvoíce, mas não duvido que, se assim fosse, esse pequeno partido que ninguém conhece subiria nas sondagens.

De facto, há canais de televisão portuguesa que exercem o seu poder de fazerem crescer votações de candidatos, embora não o digam explicitamente. Ainda. 

 

sexta-feira, 1 de março de 2024

Hoje está bom para estar em casa e ler e escrever...

 

Bom dia!

Está a chover, embora os pingos da chuva se vejam mais nas folhas das árvores onde caem do que a tombar das nuvens. O vento sopra, mas perdeu a força de ontem. Se calhar, o vento também se cansa. Como nós.

E os dias vão sendo do nós e eles na campanha eleitoral. Seja qual for a cor, a tendência, o programa, a visão do mundo, todos os partidos usam esses pronomes. No nós, está o bem; no eles, está o mal. E disso dão conta os comentadores que, com mais ou menos subjetividade, avaliam quem anda nas arruadas, nos comícios, nos mercados, nos cafés, etc.

E, a propósito do partido mais ruidoso, andei zangada com o Expresso Curto que recebo todos os dias online e que, há uns tempos, começava muitas vezes com notícias do Chega em letras bem gordas. Vi uma vez, vi outra vez, e mais alguma vez ainda, começou a irritar-me e mandei um mail pedindo que me retirassem da lista dos envios, uma vez que não estava interessada em ver logo à cabeça do jornal coisas que até fazem mal à cabeça. E sugeri que não levassem tanto ao colo esse partido, porque poderia tornar-se demasiado pesado. Responderam-me, muito delicadamente, que teria de dirigir o pedido a outra secção. Não encontrei o endereço certo e continuo a receber o expresso curto diário. Não tenho visto, porém, esse partido logo no título das primeiras notícias. Não foi por mim, de certeza, mas pode ter havido outras pessoas que também o tenham feito. Oxalá.

A manhã continua cinzenta, colorindo-se com as camélias que vejo da janela. Hoje está um bom dia para estar em casa e ler e escrever. 'Para quem pode' - pensar-se-á. E com razão.

 

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Tenho de trabalhar!

 

Ela tinha três filhos. Três rapazes. Lindos e saudáveis. Foram crescendo, estudaram, saíram de casa  e fizeram-se à vida. Eram o orgulho da mãe. 

O tempo foi passando, eles tornaram-se homens, ela foi envelhecendo, mas sem percalços de maior, e fazendo coisas de que gostava, sempre incluindo os filhos - do que precisavam, do que gostavam, no que poderia ajudar, etc.

Sendo de uma geração em que os mimos não abundavam, ela foi compreendendo e aceitando o seu lado lunar, embora tivesse provas de que o lado solar também nela existia. 

Sempre que havia disponibilidade, ela gostava de contar aos filhos o que se ia passando com ela. Por coincidência ou por natureza, os três filhos, embora tivessem cada vez menos tempo, achavam graça às coisas que tinham graça ou que ela dizia com graça. Mas, como a graça raramente vem só, às vezes, o lado lunar da mãe era lembrado ou metia-se na conversa. E, também por coincidência ou natureza, nesses momentos, cada um dos três filhos dizia: Mãe, tenho de trabalhar! 

 


 

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O cabide

 

Havia uma homem que vivia numa aldeia. Trabalhava de manhã à noite e raramente sorria. Só quando recebia visitas em casa, mas isso era raro. Nesses dias em que vinha algum amigo jogar cartas - quase sempre ao sábado à noite -, parecia um homem diferente: falava, ria, tinha sentido de humor e a casa ficava mais alegre. Os filhos olhavam para ele e, como ainda eram crianças, acreditavam que o pai se tinha transformado e também para eles sorriria.

Porém, quando as pessoas iam embora, voltava a ficar muito sério, as palavras esgotavam-se e todos ficavam mais sós.

Passavam os dias e o homem continuava a trabalhar, a trabalhar, mas sempre de rosto fechado e assim era em casa.

Nos domingos em que havia festa na aldeia, a família vestia a roupa melhor e ia até lá. Enquanto se dirigiam à festa, onde se encontravam com pessoas conhecidas e comiam doces - todos pareciam contentes.

Só que os filhos já tinham aprendido uma coisa: quando regressassem a casa, as palavras do pai ficariam penduradas no cabide do casaco domingueiro. E, por isso, já na festa entristeciam.


 

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Dizem que não há domingo sem sol, mas há sem programa!

 

Que o poeta Fernando Pessoa me perdoe, mas ocorre-me parafraseá-lo: Ai que prazer ter um domingo para viver e sem nada marcado para fazer!

Não sei se é preguiça, algum cansaço acumulado, a idade que não perdoa, etc, mas gosto muito dos domingos em que posso gerir o meu tempo, quase sempre ficando em casa e fazendo o que quero e o que o momento me vai pedindo.

Teria bastante dificuldade em sair de casa de manhã todos os dias para o trabalho, chegar à noite e não parar um pouco, pelo menos, no fim de semana, embora saiba que não temos de ser todos iguais nem gostar das mesmas coisas. Deus me livre. Porém, para mim, trabalhar fora as horas normais e continuar a trabalhar em casa ao fim do dia pode ser muito duro. E a dureza aumenta se houver indiferença, desamor ou não reconhecimento.

No tempo em que as minhas filhas eram pequenas, poucos homens faziam trabalhos de casa e o que era feito pela maioria era encarado como ajuda, quase favor e não obrigação, ainda que as mulheres também trabalhassem fora.  Muitas zangas e momentos infelizes esta prática provocou. Felizmente, as coisas vão mudando. Para melhor, neste caso.

E, neste domingo por minha conta sem ter de pensar até no que vou fazer para o almoço, tenho a portada da janela aberta e vejo algumas camélias que caem empurradas pelo vento. Muitas outras mantêm-se nas suas hastes, ainda que frágeis.

De vez em quando, o vento sopra mais forte. Oh, fechou até uma portada e a luz natural da sala diminuiu. Porém, como estamos a meio do dia, pode ainda vir sol. Espero é que o meu domingo continue sem programa.

Bom domingo para todos!

 

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Pequenos diálogos improváveis ou, se calhar, não!

 

1. O melhor será ir pela positiva

- Meu amor, come, não deites fora a comida. Estás a ficar todo sujo. 

- Eu não quero comer.

- Assim a avó fica triste.

- T(r)iste, não, avó, (f)eliz! 


2. O telemóvel com rede

- Mãe, quando posso ter telemóvel com net?

- Ainda não precisas, querida. Tens net no teu ipad para usares em casa.

- Não é a mesma coisa, mamã. 

- Para além de não precisares, o telemóvel com net pode trazer muitos perigos às crianças. Podemos até falar sobre isso.

- Eu sei, mamã, e já me estou preparar para esta conversa há anos!



sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Já sei em quem vou votar, mas...

 

Tenho visto quase todos os debates para as eleições de 10 de março. Já me têm dito que é preciso ter paciência para tal. Sim, tenho tido. No entanto, há coisas que oiço com as quais concordo, outras com que discordo completamente, outras que não entendo sequer, como as contas que são apresentadas devagar ou a correr ou então sugeridas ou escondidas. O que detesto mesmo são as interrupções que sobretudo o candidato mais estridente põe em prática constantemente. O que faço, nestes casos, é mudar de canal ou fazer outra coisa. Penso: não tenho de aturar isto.

E, logo a seguir aos debates, e sempre que posso, oiço os comentadores que opinam sobre o que foi dito pelos candidatos ou que não foi dito e devia ter sido dito ou que não disseram porque não podiam dizer, etc. Sendo eu uma comum dos mortais, às vezes concordo com o que dizem, outras vezes irrito-me e mudo de canal, porque há comentadores que mostram demasiado a tendência política que é a sua e quase já se adivinha o que vão dizer.

Logo à noite, lá estarei, acho eu, no sofá, com o crochet em mãos, a ver o debate com os candidatos com assento parlamentar, seguido dos múltiplos debates. Só espero é que a gritaria não supere a expressão das ideias.

Seja como for, ainda que bastantes vezes insatisfeita com o partido em que conto votar, para mim, é o que me parece ser mais útil para o país e que, sobretudo, reúne pessoas com quem mais me identifico. Essa poderá continuar a ser a razão da minha escolha de há uns anos a esta parte.

Peço desculpa a quem chegou até aqui e que deve estar a pensar: então, e qual é o partido? Talvez tenham razão, porque, se me meti nelas...

O que não deixo de dizer é que quero votar, como tenho feito desde o 25 de Abril. Julgo que só uma vez não votei. Enquanto puder, manifesto-me pondo a cruzinha onde julgo que é melhor, esperando que a cruz que o país e o mundo vão carregando possa diminuir.


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Dois momentos da manhã de hoje

 

1. Atualmente, um dos meus prazeres é ouvir um podcast de que goste, enquanto me desloco de carro. Ainda hoje de manhã isso me aconteceu, na viagem até à 'minha' cidade com o mar ao fundo - Espinho.

Como não ia com pressa, ia sendo ultrapassada por outros carros, camionetas e camiões, embora tenha o cuidado de não estorvar quem não quer ou não pode perder tempo enquanto conduz.

E ia pensando que a vida com pequenos prazeres tem muito mais piada. É um direito tão importante como qualquer dever.

 

2. Na mesma manhã, soube de uma jovem mãe que anda à procura de casa porque teria de sair da atual à qual o senhorio destinara novas funções.  Procurou e, finalmente, encontrou uma casa cuja renda não excedia as suas posses. A família alegrou-se. O senhorio deu-lhe a chave. Ela fez uma limpeza ao apartamento e foi lá pondo alguns dos seus pertences. Estava feliz.

Chegou o dia combinado para a assinatura do contrato. Finalmente, poderia trazer o resto das coisas e a família ter mais descanso.

Logo de manhã, a jovem recebeu um telefonema apressado do novo senhorio. Tinha mudado de ideias. A reunião ficava sem efeito.


 

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Dê-me aí o dinheirinho, devagar, devagarinho...

 

Há mais de vinte dias, perante o espanto do comum dos mortais, que seguiam as imagens e ouviam as notícias, houve aviões da Força Aérea que levaram várias dezenas de inspetores da PJ à Madeira investigar casos de corrupção. A intervenção do Ministério Público era justificada pelos fortes indícios. Houve três detidos, um dos quais o presidente da Câmara do Funchal.

Durante a investigação e nos dias que se seguiram, as televisões da Madeira e do continente transmitiam imagens sem fim. Mostravam, explicavam, referiam branqueamento de capitais, tráfico de influências, recebimento de dinheiros não justificados, etc, etc. de que os detidos eram acusados.

Os casos deviam ser muito graves - a montanha não podia parir um rato - houve demissões e longas audições, já em Lisboa, que demoraram dias e dias.

Os casos de corrupção divulgados eram muitos e eram graves. O Ministério Público pedia a prisão preventiva dos três arguidos. Perante as notícias, era o mais certo, pensava a grande maioria.

O mesmo não deviam pensar os advogados, pagos a peso de diamante, habituados a dissecar as acusações e as leis e a mostrar, airosamente, que, de facto, só os seus  clientes têm razão.

Hoje, ainda sem a decisão se há ou não eleições na Madeira, depois de muitos dias e noites, passado o Carnaval, o juiz decidiu que as portas se abrissem e os três detidos saíssem em liberdade. Para ele, nada havia a declarar contra os arguidos. Tudo explicaram, tudo justificaram. Estava tudo clarinho.

Nem sei se até acrescentou: desculpem qualquer coisinha!

Tudo isto é estranho. Muito estranho. Inquietante até. 

Pronto, o juiz decide, está decidido, mas o povo, no qual me incluo, ficou ainda mais confuso e nada, mesmo nada, convencido.

 

Quarta-feira de cinzas e Dia dos Namorados

Bom dia!

Comecemos pela Quarta-feira de Cinzas. Já aqui tenho dito que a minha mãe era muito religiosa. Tinha até desgosto de os filhos não serem praticantes como ela achava que deviam ser. Vem isto a propósito do dia de hoje que dá início à Quaresma. Quando eu era muito nova, ia sozinha ou com a minha mãe à missa logo de manhã, neste dia. Recordo que sentir a imposição da cinza na testa e ouvir as palavras 'Lembra-te que em pó te hás de tornar' faziam-me uma certa impressão e não alegravam o meu dia. Ainda faltava muito para eu compreender o alcance da mensagem.

Talvez o ritual se cumpra ainda, embora muitas igrejas estejam mais vazias em qualquer dia do ano e da semana. No entanto, quando vejo uma igreja aberta e tenho tempo, entro por uns minutos. Gosto daquele silêncio. Nesses momentos, não sei se penso no 'pó em que me hei de tornar', mas no que posso fazer - ainda que pouco - enquanto isso não acontece.

E hoje, por contraste, também é dia dos namorados. 

Um dia destes, ouvi alguém dizer: Enquanto namorava, nunca houve este dia e tenho pena. Referia-se ao tempo antes de casar. E logo ouviu uma resposta-sugestão: então, conta esses anos e festeja-os agora. És nova e ainda tens tempo. Houve sorrisos animados que também são uma forma de amor.

E, já que comecei com uma recordação, sobre o namoro também as há. Como o namoro que começava ou acabava no dia da festa anual da terra. Era engraçado ver as raparigas em grupo, com as suas roupas novas e sorrisos de meninas-mulheres, com os primeiros saltos altos e meias de vidro, a passar por grupos de rapazes que, sem o dizer, também se tinham esmerado na fatiota. Todas e todos com ar namoradeiro, ainda que tímido.

Agora é tudo diferente. E, em muitos casos, para melhor, acho eu, apesar de todas as balbúrdias e desamores atuais.

E viva o Amor, e quem o vive, também através de tantas coisas belas que fazem e partilham, embora a vida mostre que quase nada é eterno.

 

 

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

É Carnaval e fui lembrar-me do Natal!

 

Embora o Natal já tenha sido há muito tempo, partilho hoje um texto que escrevi e foi publicado na coletânea Lugares e Palavras de Natal, da Editora Lugar da Palavra. Dei-lhe o título 'O brinde'. Já agora, um brinde para todos. E bom Carnaval.



 

O brinde

 

Quando leu  'Com Amor, Feliz Natal’, sorriu e fechou devagar a porta larga com a chave antiga e pesada. Dando passos ligeiros através do alpendre, voltou à cozinha, onde as irmãs a esperavam para a ceia de Natal.

 

Era a primeira consoada sem a mãe, que partira quando janeiro escurecia e gelava os ramos despidos das árvores. A custo, as três irmãs foram preenchendo os vazios deixados pela mãe. Tinham saudades, até das suas lamentações constantes: as pernas doíam, a cabeça pesava, o receio de perder o juízo aumentava...

Em resposta a este lamento constante, as filhas diziam-lhe, com alguma graça e paciência:

- Mãe, se não perdeu o juízo até agora, não é agora que o vai perder!

Tudo fizeram para que a mãe vivesse bem e feliz. E foi longa a sua vida.

 

 Vista de fora, a vida das três irmãs continuava harmoniosa, apesar do visível envelhecimento que, devagarinho e sem tréguas, a todos vai dando rugas e retirando forças. Contudo, a esperança de viver com alegria não abandonava sobretudo Lucília:  que ficara viúva muito nova. Com a morte do marido e sem filhos, regressara à velha casa por insistência da mãe e das irmãs. Inicialmente, seria por pouco tempo, depois, o limite estendeu-se à reforma, mas, como as raízes a prendiam à família e à casa materna, foi-se juntando à cepa que se divide apenas por morte de alguma das partes.

À mesa, conversavam e algumas vezes sorriam. Porém, se os assuntos iam para além dos banais, do relato comentado de vidas conhecidas, das precisões da casa, das necessidades da saúde, o diálogo cessava porque a diferença de opiniões era obstáculo e acabava sempre em azedume ou silêncio com sabor a amuo. Sobretudo por parte de Teresa. Embora as três irmãs amassem a luz dos dias, pairava na casa um mal antigo de família: a solidão. Cada uma sentia-a à sua maneira, mas só falavam do assunto quando os ânimos aqueciam e as palavras saíam afiadas.

 

Eram estes os nomes das três irmãs que viviam na velha casa: Teresa, Lucília e Andresa.

Teresa, a mais velha, era fria e impaciente. Em momentos de tomar decisões, dizia, em tom amargo, que não valia a pena pronunciar-se porque ninguém lhe dava ouvidos nem importância. Em nova, tinha tido uma paixão não correspondida por um colega de trabalho, que lhe deixou desamor para toda a vida.

Andresa, a mais nova, falava baixinho, rezava em voz alta, queixava-se muito da cabeça e erguia com muita frequência os olhos para o céu. Era solteira, tal com a irmã mais velha, e nunca ninguém lhe conheceu qualquer enamoramento. A existir, seria com certeza por santos da sua devoção, cuja vida conhecia ao pormenor.

Lucília, viúva e irmã do meio, era a mais alegre e comunicativa. Porém, muitas vezes, a solidão destapava-lhe as lágrimas, ainda que só lhes desse liberdade quando estava sozinha. Calava saudades, desejos e vontades, que sabia não terem bom acolhimento familiar. O grande - apesar de demasiado breve - amor partilhado com o marido havia sido o maior consolo que a vida lhe oferecera.  

Na infância e juventude, sempre vira os familiares apressados e impacientes. As prementes tarefas não davam lugar a afagos, beijos ou abraços. Chegava a pensar que era invisível.

Assim, ao longo da sua vida, pouco tempo tivera para trocar palavras airosas que procurava nos romances, ainda que, na velha casa, fossem considerados para ociosos sem deveres nem obrigações.

 Não prescindia, contudo, do mundo que cada livro lhe abria.

 

O tempo passava e o Natal estava próximo. Era preciso arranjar os vasos, os canteiros, o alpendre para que tudo se aprimorasse antes do nascimento de Jesus.

 Na ceia, este ano sem a mãe, só as três irmãs estariam à mesa, mas viriam visitá-las as pessoas do costume com as prendinhas também do costume, para agradecer qualquer  ajuda ou gentileza ou para a visita familiar anual.

Teresa quase desesperava pela rotina que adivinhava interrompida. Não gostava do  vaivém da época natalícia. O toque mais frequente da campainha da porta irritava-a e interrompia os afazeres que para ela tinham horas certas.

Não têm noção - dizia e repetia, cerrando os lábios finos e secos.

Na véspera de Natal, para evitar enervamentos de Teresa, Lucília pôs logo de manhã a bandeja,  com o paninho de linho bordado a azul, na mesa da cozinha, foi ao armário da sala buscar os copos fininhos e juntou-os à garrafa de vinho do Porto, para oferecer às visitas. Ao lado, colocou chocolatinhos e biscoitos. E que as pessoas venham, pensava. Com calma e alegria, ainda que soubesse que a demora ou as vozes alegres e estridentes exasperavam Teresa e traziam dores de cabeça a Andresa.

Ao longo do dia, também acautelando impaciências da irmã, Andresa ia arranjando tudo na cozinha para que não houvesse desarrumações nem migalhas na mesa ou no chão, o que tornaria o ambiente cinzento, como o tempo que fazia lá fora.

- Assim, fica melhor - dizia Andresa. E acrescentava, apaziguadora:

- Gosto tanto destes copinhos verdes do enxoval da nossa mãe.

À tardinha  - expressão que sempre usavam para referir o cair do dia -, com a lareira acesa e a panela de ferro cheia de água a ferver, iam fazendo os últimos preparativos para a ceia e para que tudo estivesse no lugar certo quando se sentassem à mesa de consoada. Até um carneirinho do presépio tinha sido ajustado ao musgo  para que não voltasse a cair.

Quando tudo estava pronto, a campainha tocou. Teresa suspirou, dizendo, de mau humor, que as pessoas não têm noção nem horas para nada; Andresa disse precisar de um melhoral - nome que sempre davam ao ben-u-ron - e Lucília foi, lesta, abrir a porta.  Voltou sorridente à cozinha, com uma das mãos a aconchegar um dos bolsos. Perguntaram quem era. Disse que  era um dos novos vizinhos a desejar bom Natal.

As pessoas não têm noção nem horas para nada, repetiu Teresa, e começaram a servir-se, antes que a fumegante travessa cavalinho, com as batatas,  bacalhau e tenras hortaliças arrefecesse.

 

No final da ceia, Lucília, com sorriso aberto, sugeriu que fizessem um brinde. Não disse a razão nem nenhuma das irmãs perguntou.

A lareira crepitava, com chamas rubras renascidas.

No bolso de Lucília, continuava o amoroso postal recebido à porta, que abriu e fechou com a chave antiga e pesada. E que há muito não lhe parecia tão leve.

 

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Hoje o meu neto é bombeiro

 

O meu neto adora carros de bombeiros. Por isso, neste carnaval, o pai fez-lhe um carro de bombeiros, em cartão. Preso por umas fitas nos ombros e com o seu capacete, o menino estava feliz - era um bombeiro.


Para além do sorriso amoroso de avó ao ver as fotos, pensei como os tempos vão mudando em muitas coisas. Felizmente. Ver um pai, com paciência, a fazer um brinquedo para o filho pequenino sabendo que o faz feliz é maravilhoso e permite acreditar que o mundo pode melhorar. Para além de se reciclar e embelezar.

Ainda bem que este tipo de trabalho para dar alegria a um filho deixou de ser raro, como foi durante longos e duros anos. Ver pais e filhos a dialogar normalmente, com amor e verdade, é das coisas melhores que existem, na minha opinião.

E também o é entre os casais. Julgo que, neste caso, ainda há também muito a fazer, para que haja entendimento e não haja violência doméstica. Tantas vezes escondida. 

Não escondida pelos mesmos motivos que o NCPereira - da AD - que anda bem longe das câmaras e microfones para não se ouvirem as suas frases marialvas e extemporâneas sobre as mulheres e os direitos que os cônjuges têm sobre elas, no seu entender, ditas em jeito carnavalesco.

Estava a falar de uma coisa tão bonita e passei para outra muito feia. Acredito, porém, que, no futuro, nesta área familiar (oxalá que não só neste âmbito), os direitos e deveres possam ser de todos e haja mais sorrisos felizes à imagem do que vi hoje no rosto lindo do meu neto. 

 

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Ai, coração!

  

Tenho um pouco a mania de usar emojis nas minhas mensagens de whatsapp, embora às vezes não façam falta nenhuma. 

Um dia destes, usei o coração 💓 para uma amiga de há muitos muitos anos, já não sei a que propósito. Achei que era um miminho, uma forma de dizer que a compreendia, que estava com ela. 

Ora, o emoji do coração no whatsapp parece fazer o movimento do bater desse órgão vital. Uns minutos depois de ter recebido a mensagem, essa minha amiga respondeu-me dizendo que não gosta de receber aquele emoji porque lhe lembra o bater do seu próprio coração e que lhe parece que vai parar. E que mo dizia porque sabia que eu não levava a mal.

Logo reconheci que ela tinha razão. Há coisas que parecem naturais aos outros e a nós fazem-nos impressão. E vice-versa, é claro. Moral da história, deixei de lhe mandar corações e o reparo dela mais me convenceu de que não é preciso gastar tanto emoji, para que sintamos os corações vivos e a bater como se deseja.

 

sábado, 10 de fevereiro de 2024

A cortina ou a dificuldade de dizer que estou feliz!

 

No início da minha adolescência, mudámos para uma casa maior que os meus pais tinham mandado construir, fruto de muito trabalho. Eu estava feliz. Várias coisas me encantavam na casa nova e uma delas eram as cortinas - fininhas, macias que iam quase até ao chão, ao contrário das da casa antiga que tinham apenas o tamanho dos vidros.

Um dia, com um brilhozinho ingénuo nos olhos, disse a uma pessoa de família que veio a nossa casa: estou tão contente, agora posso abrir os reposteiros logo de manhã! Ela olhou para mim e disse-me com ar sério e pesado: já pensaste que o teu pai pode ficar doente?

Foi como se visse a cortina a cair-me ao chão e a janela tivesse ficado escura de repente.

Isto já se passou há imensos anos, mas a imagem, com todas as suas dimensões, nunca deixou de morar na minha memória. Para mais, o que se passa no mundo, perto e longe de nós, muitas vezes é desanimador.

Por tudo isto, tenho alguma dificuldade em dizer que estou feliz, embora, felizmente, haja momentos em que o sinto. E, muitas vezes, por coisas simples que nem fazem história.

Se calhar, já é tempo de abrir essa cortina. Se a fechar, entra menos luz.

 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Será da chuva ou ainda fingimento?

 

Hoje, em dia bastante invernoso, as televisões passaram imagens de Ricardo Salgado a chegar a tribunal, onde irá ser ouvido (Será?). Vinha com a mulher e os advogados. Caminhando devagar, quase arrastava os pés.

Há dias, a mulher do ex-banqueiro dizia que ele já não é nada do que era e que se tornou num filho de que é cuidadora.

Claro que alegava ao estado de saúde do marido, mas a imensidão de pessoas que foram enganadas e lesadas poderão interpretar que já não é o que era, porque seria impossível continuar a enganar ao ritmo em que era considerado 'o dono disto tudo'. E, depois de tantos desvios, roubos e lucros em proveito próprio, é lícito que se pense que no estado físico atual também pode caber fingimento.

Pelo que se sabe, já foram feitas perícias médicas, embora não inteiramente conclusivas.

Para além da complexidade dos casos e das teias maquiavélicas que alguns seres (des)humanos tecem, a justiça continua a ser demasiado demorada. E os advogados destes ditos megaprocessos - quase sempre os mesmos e que devem ser pagos a peso de ouro - têm tempo de sobra, pelo seu traquejo, artimanhas e perspicácia, para arranjar argumentos de modo a que os seus clientes e grandes culpados nunca cheguem a ser verdadeiramente culpados.

Pode dizer-se que vem um dia em que já ninguém acredita nessas pessoas, e que arrastam os pés como qualquer ser mortal, mas, até aí, a árvore de que se apropriaram já ficou sem fruto.

 

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Desculpem o interregno - e pequeno retrato de um parque

 

Vejo agora que já não vinha cá há bastantes semanas. Confesso que já tinha saudades, mas o tempo passa a correr. Porém, a necessidade de voltar já era grande.

Não, felizmente, não me aconteceu nada de grave nem qualquer infortúnio pessoal. 

Mas estou contente por hoje reabrir esta janela. Nada mudará no mundo, mas se houver alguém com um olhar de agrado, fico feliz. Obrigada.

Também foi com bastante agrado que, sábado passado, visitei o Parque Oriental da Cidade do Porto, numa visita promovida pelo Centro de Formação Fapas e aberta a quem nela quisesse participar. O tema, desta vez, está a ser 'Aprender no campo'. 

Partilho algumas fotos que tirei. Escolhi até para cabeçalho uma imagem de um homem que, do outro lado do rio Tinto, cultivava, calmamente, a sua horta.

Gostei da visita guiada e das informações que iam sendo prestadas, tanto pelo vice-presidente da CM Porto, na parte que ao Porto pertence, como pelo Professor Rio Fernandes, da FLUP, na área pertencente ao concelho de Gondomar.

As minhas pernas é que se queixaram um bocadito porque, ao longo da tarde, percorremos uns 10 km.  Felizmente havia paragens para troca de informações e as grandes e belas pedras que o arquiteto paisagista - Sidónio Pardal - escolheu para este parque urbano, ligavam bem o útil ao agradável.

Em conversa, já no regresso, alguém disse que seria útil um pequeno bar para tomar um café, assim como faz falta, pelo menos, uma casa de banho. Logo alguém rebateu que não se pode ter tudo de uma vez. Se calhar, tinha razão. 







Até breve. Obrigada por terem voltado comigo.

 

 

domingo, 26 de novembro de 2023

A pose

 

Num dia dos que há pouco passei em Londres, encontrei-me com uma amiga que tem também um filho a viver em Inglaterra. Combinámos encontrar-nos em Covent Garden. Seria uma boa oportunidade para conversarmos e tomarmos um café. 

Pois bem, cheguei um pouco mais cedo do que a hora marcada. Olha daqui, olha dali, entrei no  mercado, parei diante de uma igreja que anunciava boas ações que a época natalícia vai inspirando, reparei nas esplanadas onde as pessoas pareciam tranquilas e felizes sob o sol daquele dia e, depois, como não sabia de que lado a minha amiga viria, fui ficando em frente ao mercado, onde havia grandes e vistosos enfeites de Natal.

E fui reparando nas poses das pessoas para selfies ou para fotos tiradas por outrem, a puxar sorrisos, abraços, mãos dadas, olhares mais ternos; a arranjar o cabelo, o cachecol porque o dia estava frio, a endireitar as costas, etc.

Nisto, vejo uma mulher ainda jovem acompanhada de dois pequenos cães e a colocá-los no lugar onde mais adereços natalícios havia para os fotografar. Ela trazia um saquinho de biscoitos que lhes ia dando para que não se mexessem e fizessem pose como ela pretendia. Ajeitava daqui, ajeitava dali, punha as patinhas bem alinhadinhas, etc.

Tenho pena de não ter sido ainda mais rápida a registar a imagem, mas, mesmo assim, ainda fixei os fotografados (ou fotografadas, não sei), com faixas vermelhas natalícias, num intervalo curto entre a pose e o prémio de um biscoito. 

Depois, a jovem mulher afastou-se, porque havia mais gente a disputar o cenário. Ela diria, com certeza, que os seus acompanhantes também eram gente. Ou seria uma forma de ela também se sentir assim ou de encontrar um prémio, seja ele qual for, que nenhum humano dispensa.

 







domingo, 19 de novembro de 2023

O brinde e pela rua fora

 

Em julho último, quando estive em Londres, como já contei, fui operada de urgência ao apêndice. A minha intenção era ajudar cá em casa e acabei por ter de ser ajudada. A vida é assim.

Desta vez, tenho podido, felizmente, colaborar no que é preciso. Até já brindámos pela estadia estar a correr bem melhor do que a do verão. 

Pois bem, durante esta semana, já senti muita emoção a assistir  a um concerto de piano, em que a minha neta interveio com saber e muito foco (como agora se diz); fui a Kew Gardens, um belíssimo parque de múltiplas cores, atividades, cuidados e ensinamentos práticos sobre a natureza; entrei quase diariamente no supermercado e na escola primária, onde espero, tal como muitos pais (mais mães) e avós que o portão se abra à hora certa e nós possamos ir buscar as nossas crianças, já li As primas de Aurora Venturini quase todo e tenho andado muito a pé porque não há carro.

E já conheço bastante bem o perímetro, não muito alargado, onde vou circulando no meu dia a dia, bem diferente das minhas ruas natais.

Tenho passado, caminhando, pelas ruas sossegadas cheias de folhas húmidas e amareladas das árvores. E pelo carteiro que diz bom dia e empurra um carrinho com vários sacos vermelhos. E pelo distribuidor da Amazon com a carrinha cheia de  pacotes. E por vendedores risonhos de promessas de vida para eles mais justa na terra e mais feliz no céu. E por velhos a passear os cães dando-lhes tempo e calma para que nem nas necessidades não precisem de pressas. E por jovens de passo rápido e de fones nos ouvidos. E por mães a empurrarem carrinhos de bebé segurando o telemóvel falador. E por pessoas a passarem rápidas como o tempo. E por   Idosas simpáticas  a varrerem as folhas dos canteiros antes de irem andar de bicicleta. E por muitas crianças a dar a mão a familiares, a falar e a sorrir.

E por ruas mais frenéticas de trânsito e comércio sem árvores nem canteiros, onde há pessoas que vivem na rua, que falam alto na rua, que se inclinam para a rua pela magreza e desnorte como o cigarro que quase lhes cai das mãos magras, que falam sozinhas em desatino, uma mulher de olheiras e boca escura em busca de  alguém que a oiça e fale inglês, homens velhos de garrafa de vinho ou cerveja na mão e que caminham como se só soubessem caminhar na contra-mão…

Por lojas aonde só entra gente chique e por lojas onde se pode comprar tudo que faz falta em casas que nunca serão chiques e nas que sempre foram chiques.

Sinto uma grande simpatia por esta cidade tão multicultural também nos sabores, mas não gosto de ver pessoas que de sobra só têm pobreza e solidão. O meu conhecimento da cidade é superficial, porque aqui só venho de vez em quando, e para conhecer é preciso viver e permanecer. Porém, ver, por exemplo, uma escola primária pública com muito bons resultados e cheia de crianças vindas dos diversos continentes é um sinal animador e uma boa lição que é dada sem ser de propósito ou lida em qualquer púlpito mediático.

Está quase a terminar, desta vez, a minha estada nesta cidade tão cosmopolita. Se assim não fosse, talvez a minha filha não a tivesse escolhido para estudar e trabalhar, há já longos anos. Como tantos e tantos e tantos. 


sábado, 18 de novembro de 2023

O homem cheio de pele


Ele entrou no comboio e sentou-se no banco do lado oposto ao meu. Impossível não olhar. Era um homenzarrão. Vestia um casaco de pele, calças de pele, botas de pele e uma carteira de pele. 

Tanta pele, meu Deus, disse eu para os meus botões.

Sei que olhei para aquela pele toda, mas, curioso, não me lembro de lhe ter olhado o rosto.

Se calhar, porque tudo aquilo lhe tinha custado os olhos da cara. Para não falar dos olhos de tanto animal.



terça-feira, 7 de novembro de 2023

Marcas do outono ...

 ... em Kew Gardens, em Londres.

 





segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Silêncios

 O corpo modifica, a voz segue outras planícies; a beleza mantém-se infinita.

  
A música caminha e seduz em qualquer lugar. Tal como o silêncio.


"Quero a Fome de Calar-me

Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único
Recado que repito para que me não esqueça. Pedra
Que trago para sentar-me no banquete

A única glória no mundo — ouvir-te. Ver
Quando plantas a vinha, como abres
A fonte, o curso caudaloso
Da vergôntea — a sombra com que jorras do rochedo

Quero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa
Chaga do pastor
Que abriu o redil no próprio corpo e sai
Ao encontro da ovelha separada. Cerco

Os sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes
A flor — várias árvores cortadas
Continuam a altear os pássaros. Os caminhos
Seguem a linha do canivete nos troncos

As mãos acima da cabeça adornam
As águas nocturnas — pequenos
Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadas

Caem — quero fechar-me e cair. O silêncio
Alveolar expira — e eu
Estendo-as sobre a mesa da aliança"

Daniel Faria, in "Dos Líquidos"

Daniel Faria - 1971-1999