sexta-feira, 26 de março de 2021

'Que me saiba perder...'

   

Tive de ir à cidade do outro lado do rio e já não foi a primeira vez que tal me aconteceu: perdi-me. Quando preciso, costumo usar o GPS do telemóvel, mas tinha-o no banco de trás, dentro da carteira e nem pensava sequer usá-lo porque a cidade fica aqui tão perto! Porém, em vez de entrar por uma via, entrei por outra. Ao dar conta, já era tarde, porque vinham carros atrás e qualquer desvio podia dar choque.

A solução era mesmo seguir em frente. E andei às voltas nos arredores profundos até encontrar a placa salvadora, depois de ter feito uns quilómetros a mais, ter desligado o rádio que já era só ruído, ter olhado o relógio várias vezes e ter vociferado bastante. Quando encontrei o rumo certo, respirei de alívio e liguei de novo o rádio.

Há uns dois ou três anos, fui com uma filha a uma cidade do sul da Holanda. Ela ia fazer uma formação e quis que eu fosse com ela. Para mim era bom, porque lhe fazia companhia no tempo livre e conhecia um pouco de um país onde eu nunca tinha estado. Ora, durante a manhã e a tarde, enquanto a minha filha aprendia mais sobre o seu mister, eu passeava pela cidade. Visitei igrejas, museus e uma tarde resolvi andar a pé à descoberta, com a consciência de que podia perder-me, mas não me importei porque a cidade era bonita, calma, plana e pequena. Assim aconteceu, mas voltei ainda a tempo ao local de partida e com imagens bonitas no meu telemóvel que à noite, enquanto jantávamos, mostrei à minha filha.

Outra vez, no tempo em que éramos todos vivos, fomos a Paris. À noite, resolvemos passear nas imediações do hotel e a uma certa altura já não sabíamos como regressar. Uns eram de opinião que o melhor era apanhar um táxi, outros nem pensar porque estávamos perto de certeza. Continuámos a caminhar e, de facto, não estávamos longe do hotel. Como chegámos irritados, fomos para os quartos e boa noite que se faz tarde. Só no dia seguinte, ao pequeno almoço, e já relaxados, falámos do assunto e ainda nos rimos.

O título destas peripécias de perdidos e achados foi roubado a Florbela Espanca, que eu lia vezes sem conta na minha adolescência. Aprendi até vários sonetos de cor e um dia fiz um à maneira de Florbela. Para mim, era uma obra-prima que segurava ufanamente na mão numa folhinha manuscrita e arrancada de um caderno. Logo mostrei à minha irmã, que nunca dizia sim só porque sim. Traduzindo a reação dela, dá mais ou menos isto: 'deixa-te disso de imitações'. Afinal, a minha 'obra-prima' nem parente afastada devia ser! Continuei, porém, a folhear o livro (ainda o tenho), a ler os sonetos e outros poemas, mas fiquei-me por ali. Obrigada, mana, só é pena já não leres estas minhas palavras nem os livros que eram  das páginas mais importantes da tua vida.


'Amar!

(...)

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...'

Florbela Espanca

 (Vila Viçosa - 1894 / Matosinhos - 1930)


13 comentários:

  1. Um texto cheio de boas recordações.
    Gostei de ler.
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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    1. Obrigada, Elvira.
      Muita saúde também. Espero que esteja melhor!
      Beijinhos

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  2. Vejo ali ao lado a capa de O Infinito num Junco, que acabei de receber! Vou "atirar-me" a ele, estou ansiosa…

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    1. Estou a gostar muito, mas ainda só li as primeiras páginas, porque tenho tido bastantes afazeres. Vou ver se me 'atiro' a ele no fim de semana.
      Boas leituras.

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  3. Boa tarde minha querida amiga Marina, obrigado por nos trazer seu texto maravilhoso. Bom final de semana.

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  4. Não vale a pena pôr-me a citar as vezes em que me perco. A falar verdade é raro dar-me por encontrada e, sem átomo de poesia, ando na vida perdida. Bastante menos poeticamente que Florbela, sou a que na vida não tem norte. Mas pronto, já aceitei a desorientação que me guia e o facto de nunca saber verdadeiramente onde estou já que o mapeamento dos lugares não me existe, a minha mente foi concebida sem geografia.
    O Infinito num junco também me pareceu boa e bem contada história. Talvez o compre. Mas não agora.

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  5. Olá, Bea. Fico mais aliviada: não sou só eu que me perco! Tenho de passar várias vezes num sítio para não me enganar, a não ser que haja alguma coisa que me chame mesmo a atenção!
    Vou ver se este fim de semana avanço na leitura do livro. Do que já li gostei.
    Uma noite descansada.

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  6. Desculpe, mas até fico contente de ler este texto tão giro! Porque não tenho nenhum sentido de orientação. Mas NENHUM! É uma coisa que me deixa triste. Até num hospital onde vou fazer um exame, me perco e não encontro a saída. Não é triste?

    Gosto muito das fotos de flores que colocou ali ao lado, principalmente da primeira. Tão bonitas!

    Beijinhos:))

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    1. Isabel, isso também me acontece muitas vezes. Então num centro comercial nem tem conta. Para não falar de encontrar o carro que ficou no parque!!! Se não estou com pressa, penso calmamente: hei de lá chegar!!! Se tenho pouco tempo ou as compras são pesadas, já é menos divertido.
      Um beijinho, Isabel, e bom fim de semana.

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    2. As florzinhas azuis ao lado foram mandadas pela minha filha que vive em Londres.

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  7. Lendo suas palavras, me lembrei de um antigo chefe que adorava se perder. Ele olhava uma comunidade, e pensava... vamos desbravar? E lá ia ele todo feliz conhecer uma nova região.
    Por essas descobertas, ele ainda é um importante representante comercial de moda, e veste grande parte do povo catairnense. :D

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    1. Curioso. Pelo que diz, ele devia ser bem mais aventureiro do que eu. E como criativo, devia encontrar bons motivos de inspiração.
      Bom fim de semana, Calebe.

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