sábado, 31 de julho de 2021

Tirar o dia para si. Leia-se para mim

 

Hoje resolvi tirar o dia para mim, sem tirar o carro da garagem. Levantei-me cedo e o pequeno almoço foi o do costume, mas talvez mais devagar. Reforcei a caneca do café várias vezes e a minha compota de framboesa no pão escuro soube-me bem.

Fui regar o jardim e o quintal. Já não o fazia há uns dias. À hora em que o sol aquece menos, tenho tido outras coisas para fazer. Não sei se mais importantes, mas que, para mim, tinham de ser feitas. Neste momento, as plantas estarão a saborear a frescura da água que lhes dei a beber pela fresca.

Depois a mangueira deu sinais de o precioso líquido ter esgotado por umas horas. Desliguei o interrutor. Descansa, recupera o fresco alento, pensei eu. Hoje não te canso mais. Mereces o descanso. Sei que amanhã voltarás, água do meu poço tão antigo e tão presente. E cada vez mais necessário.

Agora escrevo as minhas coisas, que serão pequenas, mas que sem elas a minha vida não seria a mesma coisa. E não me posso queixar. Isso seria uma afronta e desrespeito para tanta gente com tanta carência e tanto sofrimento. 

E também quero ler. Avançar nas páginas do livro que ando a ler de Afonso Cruz - um escritor-poeta-ilustrador-músico... De corpo grande e largo. E também o sorriso. Parece quase ingénuo, mas não é de certeza. Deve é conhecer verdades que muitos desconhecem.

Também a mim - eu que não sou nada disso (a não ser no corpo) - já me chamaram lírica várias vezes. E também ingénua. Se calhar, até sou, embora ache que não sou, mas, neste momento, não estou preocupada em pensar se o sou ou não sou.

Pronto, estou a tirar o dia para mim. Tirar um dia para si também pode saber bem.

Bom sábado e que seja um sábado que a todos saiba bem. 

 

 

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Dunas


        de azur

                           ar

                                     Azurara - Vila do Conde



 

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Olga de seu nome

 

Às vezes, passava aqui à minha porta na caminhada que fazia diariamente. Sempre apressada em andar quase nervoso no seu corpo grande e ossudo. Também o rosto era magro e os olhos pareciam mais negros e fundos. Um dia, eu ia a sair e perguntei-lhe como estava. Mal, respondeu, e foi dizendo: antes da pandemia, chegava à noite cansada de trabalhar, agora chego à noite cansada e desanimada de não ter trabalho. O que me vale são as caminhadas para arejar a cabeça. 

E a cena repetiu-se mais duas ou três vezes. Depois, achei que o melhor era dizer só olá, sorrir-lhe e deixá-la seguir no seu passo largo e decidido. Também nunca tido sido de muitas falas, para além do essencial.

Hoje, reencontrei-a na empresa onde sempre trabalhou e que, durante largos meses, quase deixou de laborar por falta de encomendas. Sorriu-me. Vejo que agora anda mais contente. Ai não, disse ela, continuando apressada, agora para a banca de trabalho onde os seus dedos traquejados 'enchiam' as peças de filigrana, desenhando e cortando os finos fios de prata.

 

terça-feira, 27 de julho de 2021

'Diz o avô' - Luísa Ducla Soares

 

Gosto muito da escrita de Luísa Ducla Soares - uma escritora para crianças, como é conhecida. Haverá, porém, barreiras na escrita? Julgo que não, apesar de necessárias diferenças.

 Por estes dias, tem-se falado mais dos avós. Bem merecem. E que a atenção continue, é claro. 

 

'Tens cabelos brancos.
Mas porquê, avô?
Caiu muita neve
na estrada onde vou.

Tens rugas na face.
Mas porquê, avô?
Bateu muito sol
na estrada onde vou.

Tens olhos baços.
Mas porquê, avô?
Pousou nevoeiro
na estrada onde vou.

Tens calos nas mãos.
Mas porquê, avô?
Parti muita pedra
na estrada onde vou.

Tens coração grande.
Mas porquê, avô?
Nele mora a gente
que por mim passou'.

 

Luísa Ducla Soares in A Cavalo no Tempo


 

segunda-feira, 26 de julho de 2021

A língua francesa, os gatos e je t'aime.

 

Todos estranhámos. Uns mais do que outros, é verdade. Ela entrou na reunião a falar francês e assim continuou até ao fim. No início, as pessoas entreolharam-se, sorriram, e alguém perguntou até por que não falava português como toda a gente. Ela respondeu, convicta, que naquele dia preferia usar a língua francesa e assim continuámos. Todos nós que estamos aqui sabemos francês, acrescentou, para pôr ponto final ao assunto.

Toda a gente sabia que ela era excêntrica, que vivia só e rodeada de gatos. Tinha-os às dezenas no quintal e como a porta da cozinha estava sempre aberta, os bichanos circulavam pela casa toda à vontade. Dormiam onde queriam, saltavam onde podiam e brincavam com tudo o que encontravam que era quase tudo porque tudo estava à mão, ou melhor, ao alcance da patita. Era assim que se sentia bem. Já feliz, não sabia bem se era, porque preferia tratar dos gatos a pensar nisso. O pensamento ficava para o trabalho.

Pois bem, os assuntos agendados para a reunião foram tratados e no final ela despediu-se, usando sempre a língua francesa: au revoir, je vous aime.

Como se afastou logo, não ouviu um comentário: 

Gostava de saber se alguma vez esta mulher ouviu um 'Je t'aime'. 

                   Sabia, no entanto, que ela nunca lho diria.

 

domingo, 25 de julho de 2021

O tanque, a água e as gotas do oceano

 

Era eu adolescente quando nos mudámos para a casa onde a minha mãe continua a viver. É aldeia, mas onde nós morávamos era mais aldeia ainda, apesar de ser a mesma aldeia. Havia muitos campos à volta e os lavradores deslocavam-se com os seus carros de bois que passavam ronceiros.

Ora, alguns desses campos tinham nascentes que eram aproveitadas para tanques onde as mulheres iam lavar a roupa e, tantas vezes, limpar a alma do pó duro das suas vidas, enquanto ensaboavam, esfregavam, espremiam, torciam a roupa.

Como não havia máquinas de lavar, também a minha mãe lá ia. E muitas vezes eu ou a minha irmã. O meu irmão não, porque era mais novo e esses sítios eram como o chorar, isto é, não eram para homens.

Como a nova casa ficava um pouco mais distante, foi feito um tanque para lavarmos a roupa. A minha mãe queria-o grande, porque estava habituada a larguezas de água. Com o tempo, foi vendo que havia muito desperdício do líquido que viria a fazer muita falta - dizia ela, mesmo sem se ouvir ainda falar do assunto. Por isso, algum tempo depois, mandou fazer uma parede, reduzindo o tanque em mais de metade. Quando agora o uso para lavar algumas peças de roupa mais sujas ou mais delicadas, recordo essa mudança e os alertas da minha mãe, tão atuais e necessários agora.

E sempre a vi a aproveitar água da chuva para regar as plantas ou para lavagem de alguns espaços. Também as águas de lavar legumes não iam pelo cano abaixo. Louvo-lhe esses cuidados que mais pareciam nascer dela, porque nunca foi de passar muito tempo a ouvir rádio ou a ver televisão.

Não sei como estará esse lavadouro da minha infância, agora que já ninguém lá vai. Deus queira que a nascente não tenha secado. Parece que não tem nada a ver, mas não me posso esquecer de fechar a torneira enquanto lavo os dentes. A gente às vezes esquece-se de que o oceano é feito de muitas gotas.

 

sábado, 24 de julho de 2021

'BEMBOM'

Bem Bom (2021)


Vi o filme BEMBOM, estreado recentemente, sobre as DOCE, a famosa girlband portuguesa dos anos oitenta. Dentro do género, achei engraçado, vivo. Contando a história da formação da banda, levanta problemas como  questões de género, mentiras sensacionalistas, entre outros.

E estão lá canções que estão no ouvido de muitos de nós, em gravações das vozes originais das DOCE, com interpretação de quatro atrizes que, na minha modesta opinião, vestiram muito bem o seu papel, não lhes faltando alegre energia. São elas: Bárbara Branco, Lia Carvalho, Ana Marta Ferreira e Carolina Carvalho.

Também aparecem no filme figuras do espetáculo muito conhecidas naquela época: Tó Zé Brito, Mike Sergeant, o costureiro Zé Carlos, etc.

Talvez não seja um filme para voltar a ver. Permite, no entanto, (re)conhecer hábitos dos idos anos oitenta, compreender a vida daquele grupo - tão ousado e tão popular - e relembrar músicas que podem trazer boas memórias para muitos, o que também não deixa de ser doce. E bem bom.

Realização: Patrícia Sequeira

Argumento: Cucha Carvalheiro e Filipa Martins. 

 

Passou, no início desta tarde, uma entrevista de Inês Maria Menezes, no programa 'Fala com ela', da Antena 1, com a realizadora do filme: Patrícia Sequeira. Vale a pena ouvir na RTP play.

As DOCE no original:

 

As atrizes que as interpretam:

sexta-feira, 23 de julho de 2021

À volta das rotundas

 

De há uns anos a esta parte, não faltam rotundas. Quando começaram a aparecer, foram criticadas, tal como acontece com muita coisa que é novidade. Mas, pensando bem, dão jeito e organizam melhor o trânsito. Pelo menos, as que conheço melhor.

Só não gosto é quando têm erva daninha alta, arbustos secos, pedaços de terra ressequidos. ou plantas grandes que não deixam ver bem para o outro lado. Como acontece às vezes em espaços separadores de estradas. Podendo-se mudar de sentido, não se consegue ver bem os carros que vêm em sentido contrário, de tão altas que as plantas são.

Pois bem, tenho reparado ultimamente que muitas rotundas se estão a alindar. E de que maneira. Ele são flores, ele são cores e formas combinadas. O resultado dá gosto e os olhos gostam de espaços bonitos. Se gostam. Eu diria que também os corações.

Oxalá que assim continue depois das eleições autárquicas. Os olhos gostariam e os corações também. Ah, assim como a crença nas instituições.

 

quinta-feira, 22 de julho de 2021

O homem da gasolina

  

Vou com frequência a uma bomba de gasolina onde há um funcionário que põe o combustível, recebe o dinheiro, tem máquina multibanco à mão, passa o recibo, enquanto o cliente fica sentadinho no carro a fazer essas operações. 

Ora, nessa bomba de gasolina, há sempre alguns carros em fila de espera, como esteve o meu nesse dia.

Como estava parada à espera, fui observando que o funcionário não parecia muito satisfeito com o que estava a fazer. Ou com a vida, não sei. Era a primeira vez que o via naquele posto de abastecimento. Punha o combustível a correr na garganta do carro e entrava na loja para logo depois sair.  Eu não podia ouvir o que dizia aos clientes, mas parecia-me ser parco em palavras. Deve ser antipático ou estar de mau humor, pensei eu.

Bom, chegou à minha vez. Logo que ouvi aquela voz das bombas de gasolina: 'você pediu gasolina simples', chegou uma rapariga com um café, dizendo-lhe que ia pô-lo na loja com o pires por cima para não arrefecer.

Compreendi, então, que, coitado, o funcionário ia almoçando ao mesmo tempo que vendia o combustível. Daí as constantes entradas e saídas. Ah, parecia discreto e foi muito simpático. 

Às vezes, as lentes da distância desfocam a realidade, levando-nos a formular juízos sem juízo nenhum.


quarta-feira, 21 de julho de 2021

Desta vez, com rio ao fundo!

 

Ilusão, mas não mentira


terça-feira, 20 de julho de 2021

Neblina na cidade com mar ao fundo

 

Hoje de manhã, este pedaço de praia de Espinho era quase um deserto. Caía uma chuvinha miúda. No passadiço, havia, no entanto, quem corresse, quem caminhasse, quem olhasse as ondas quase silenciosas do mar, quem fechasse o guarda-chuva, quem procurasse um abrigo... E desejei que o sol brilhasse. E que aparecessem mais pessoas. E que as esplanadas se recheassem. E que a praia ganhasse cores. E que o mar fosse abraçado...

Talvez à tarde. Às vezes, é preciso esperar.

Marcas de dias com pés mais quentes

Cadeiras vazias e palmeiras do sol saudosas

O areal que já foi bem maior



segunda-feira, 19 de julho de 2021

Juliette Binoche - Et Si Tu N'existais Pas

 
E se a música não existisse? Ou o sorriso? Ou o amor? Ou a amizade? Ou a arte? Ou a boa comunicação? Felizmente, sim! 
Malgré tout!
BOA SEMANA!
 
 
Canção na voz de Joe Dassin 
Imagens da atriz Juliette Binoche

domingo, 18 de julho de 2021

Conversa mansa com teste dentro

 

- Por que tenho de fazer novo teste covid?

- Avó, porque esteve com o João e ele testou positivo.

- Eu já estou vacinada.

- Não é suficiente.

- Tinha de usar máscara?

- Também, avó.

- Só para falar com o João?

- Sim, avó. Ele não vive cá em casa.

- Como posso ter ficado infetada, se ele é tão querido e tão mansinho?!

 

sábado, 17 de julho de 2021

O apartamento - o consultório

 

Quando saímos do apartamento, as minhas filhas eram muito pequenas. Eu ia com elas a um pediatra que me disse ir mudar de local do consultório e deu-me a nova a morada. Que coincidência, pensei eu. Ele tinha alugado o nosso ex-apartamento, para espaço de trabalho. 

Na consulta seguinte, lá fui eu com as meninas. No que era sala de visitas e sala de jantar, funcionavam escritórios; a cozinha era a sala de espera para o médico e a casa de banho era comum. À entrada, ainda lá estava o papel que eu havia colado no armário do quadro elétrico e reconheci um autocolante engraçado na parede da cozinha (agora sala de espera), deixado pelas minhas crianças. Não podia conter alguma emoção, porque, apesar de estar tudo bastante diferente, via marcas do tempo em que lá tínhamos vivido.

Ora, o consultório era precisamente no lugar que tinha sido o quarto. Quando entrei com as minhas filhas, ainda quase de colo porque a diferença de idades é pequena, logo contei ao pediatra que tinha vivido naquele apartamento. Contudo, o que tem uma carga emotiva para uns pode não a ter para os outros, porque as vivências também diferem. Foi o que aconteceu. Para ele, seria apenas o novo espaço de trabalho. Mudámos de assunto e a consulta decorreu normalmente.

Quando saí, acho que ainda olhei para trás, sentindo, porém, que aquele espaço já se tornara para mim bem mais distante. Como vai acontecendo ao longo da vida. Embora permaneçam emoções à flor da pele.

 

sexta-feira, 16 de julho de 2021

O apartamento - o frango assado

 

Vivíamos há coisa de um ou dois anos no apartamento, quando vimos que havia obras na loja do rés do chão. Naquela altura, a palavra condomínio ainda não era usada. Pelo menos, eu não a conhecia. Em breve, apareceu um anúncio bem vistoso: uma churrascaria. Que bom, dissemos nós. Quando quisermos, temos o jantar pronto. É só descer as escadas. 

Em breve, já havia frangos a assar na brasa. Picantezinhos e bons. Só que o estado de graça dos ditos durou pouco tempo, isto é, deixámos de lhes achar graça e deixou de ser alternativa para o jantar. É que o cheiro e o fumo entravam por todo o lado. Ah, e o ruído vagabundo de um exaustor bastante mal amanhado.

Queixei-me. O melhor é arranjarem um sistema para o cheiro e o fumo não se espalharem nem haver tanto ruído. Está tudo como manda a lei, respondiam-me. Ele era cheiro a frango na casa, ele era cheiro a frango na roupa a secar, ele era cheiro a frango por todo o lado. Nos dias mais quentes, se estávamos em casa, quase virávamos assados como os frangos, porque não podíamos abrir portas nem  janelas.

Havia, porém, um dia, pouco amado habitualmente, mas que era bem-vindo: a segunda-feira - o dia de folga da churrascaria.

Já lá não vivo há muitos anos, a churrascaria existe ainda com os mesmos donos e vejo que se modernizou. Felizmente. E já lá tenho ido comprar frango de vez em quando, mas só o consegui fazer muito tempo depois de lá ter saído.

 

quinta-feira, 15 de julho de 2021

O apartamento - a gaiola

 

Quando me casei, vivi cinco anos num apartamento. Tínhamos uma varanda. Como sempre vivi com flores e plantas à minha volta, tinha vasos. Julgo que eram begónias, mas, como foi há muito tempo, já não me lembro muito bem. Do que me recordo com nitidez é da gaiola de pássaros que lá estava pendurada e onde viviam canários e periquitos. A gaiola tinha sido feita por um homem muito velho e muito habilidoso. Fizera-a com todo o esmero e carinho. Eu achava até que os pássaros, apesar de estarem presos, tinham uma boa casa, uma boa alimentação, boa sombra e podiam olhar o quintal em frente onde havia muitas camélias já muito antigas. Logo, viviam bem. E muitas crianças para verem brincar, na rua estreita das traseiras, onde quase não passavam carros. O tempo também permitia as brincadeiras e correrias fora de casa e em total liberdade.

Ora, um dia, tendo ido nós trabalhar e não havendo ninguém no apartamento, os miúdos resolveram fazer pontaria, atirando pedras à gaiola. Quando cheguei a casa e fui à varanda, deparei com a gaiola danificada e vazia. Nem queria acreditar. Os pássaros tinham fugido. Naquele momento, achei-os, estupidamente da minha parte, ingratos, porque os tinha tratado sempre bem e podiam, ao menos, ter esperado por mim. Mas, enfim, era verdura minha.

A partir daí, não mais tive pássaros. Ansiava é que tivessem saído em liberdade, mas sem ferimentos, como as que via na gaiola.

Levei a gaiola para casa da minha mãe (à casa das mães, vai parar muita coisa!) e lá ficou durante muito tempo. Se fosse agora, sem tantos horários a cumprir, se calhar, consertava-a e dava-lhe outro destino, mas não sei, porque só se sabe o que se faz; o que se faria é preciso adivinhar. De uma coisa, acho que estou certa: não seria para pássaros.

 

 

terça-feira, 13 de julho de 2021

'O meu olhar é nítido como um girassol'

Poema dito por David Fonseca



 

'O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…

Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender …

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar …
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…'

Alberto Caeiro, in O Guardador de Rebanhos

 


 

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Hoje

 

 

Hoje de manhã, reguei rosas do jardim.

Brancas.

Nos anos anteriores, as mesmas rosas

tinham cor diferente.

Amarelo alaranjado.

Será que a idade lhes confunde as cores?

Ou torna-as mais puras?

 

domingo, 11 de julho de 2021

Quente/frio

 

Somos um país pequeno, mas as variações são mais que muitas. São as sociais, são as linguísticas, são as gastronómicas, são as da paisagem, são as meteorológicas...

Ontem, enquanto que nos arredores do Porto, estavam 30 graus, a cidade com mar ao fundo - a menos de 30 km - ficava pelos 20 graus. Ter um casaquinho à mão dava bastante jeito, porque o vento norte sopra sem máscara e sem olhar a distâncias higiénicas. Enquanto isto, no Atentejo, os termómetros marcavam mais do dobro. Eu, habituada ao friozinho do Norte, confesso que me custariam dias tão quentes.

Há quem diga que nós, os portugueses, somos um povo de 'brandos costumes', mas também aí há muitas diferenças que escapam, como a todas as generalizações.

O que não será muito diferente são os assuntos ou casos dos nossos dias: o do (ex? ainda? suspenso?  afinal?) presidente do Benfica, o aumento de casos covid, o calor que se faz sentir em muitas regiões do país... Portugal já lá não está, mas a final europeia de logo à noite também percorrerá o país, faça calor ou frio. 

E é bom podermos falar sem pagar nada por isso. Mas seria bom que também  não pagássemos dívidas por quem pode pagar e não o faz só porque tem mais voz e está perto de certas vozes.

Somo um país pequeno, mas estas variações são muitas. Ainda.


sexta-feira, 9 de julho de 2021

'Aniversário'


'No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,

O que fui de coração e parentesco,

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino.

O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...

A que distância!...

(Nem o acho...)

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes...

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa.

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim...

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,

O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...'

 

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).


 

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Diz o autor: 'Uma quarentena é...'

  

Obrigada, Idalina, pela partilha de textos que lês. Este excerto,como os demais que envias, é maravilhoso. E tão atual e convoca temas tão diversos. Nem sequer falta a lavagem das mãos  ou o amor. Tanta coisa no fio destas palavras. Belas e bem ditas.

 

“Uma quarentena é uma prisão com pessoas de quem não nos podemos aproximar, é um bailado a dobrar, o ballet do demasiado perto. A distância agora é tempo. E paciência. A paciência é o tempo com pessoas dentro. Uma epidemia é o oposto do amor, essa infeção a dois, essa alegria contagiosa que não mata. O amor é o contrário da multiplicação lenta de uma doença absoluta, oferecida em silêncio a uma multidão de distraídos.

Tento uma reflexão profunda sobre o amor. Reduzo-a a uma palavra apenas, e essa palavra não é amor. A falta de sinónimos atormenta-me, decido parar. Pensar com uma palavra só não é pensar.

É o fim do mundo, mas um fim do mundo a acontecer tão lentamente que dou comigo a dizer «é o fim do mundo, é o fim do mundo», várias vezes, as palavras saem-me da boca sem necessidade de eco. Ao contrário, a boca de Mariana abre e fecha várias vezes, como uma porta, e eu imagino o coração a sair-lhe pela boca, mas não, em vez de lhe subir à boca, o coração desce-lhe aos pés e Mariana pisa o coração contra a madeira castanha do chão.

Pela primeira vez, lavo as mãos rigorosamente. Sinto-me um procurador romano na Palestina, obcecado com a lavagem das mãos. Não é uma sensação boa.

Lembro-me da nossa chegada a Chartres, à catedral. Os pilares e os arcos subiam em esqueleto à altura de doze andares, o número exato dos apóstolos. O lugar parecia uma nave medieval preparada para nos elevar às maravilhas de um paraíso espacial. Nos vitrais viam-se camponeses e imensos artesãos. Carregadores de água, padeiros. O povo erguia-se como um e a cores para esse paraíso alto, com uma felicidade de comércio. O silêncio, uma bênção; as janelas, joias; a cor dos vitrais, um sinal vindo até nós da porta de entrada do paraíso.”

José Gardeazabal, Quarentena, Uma História de Amor, Companhia das Letras, 2021 

 

 (José Gardeazabal nasceu em Lisboa, onde vive, em 1966)

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Foi como se

 

Foi como se entrasse de novo naquela casa. De paredes velhas mas retocadas com paciência durante longuíssimos anos. De telhado com ninhos vigiados, para que não deteriorassem as telhas nem entupissem os canos.

Foi como se parasse no telheiro da casa e revisse os molhos de redondas cebolas penduradas e prateleiras cheias de batatas e alfaias antigas no chão térreo. Ah! E como se olhasse a coluna de granito, como um esteio, com vasos viçosos à sua volta, a segurar os barrotes grossos mas fragilizados do palheiro.

Foi como se encontrasse as habitantes da casa a regar as plantas pela fresca das manhãs, a descansar nas tardes de estio, em recolhimento dos dias invernosos.

Foi como se visse perto a cadela da casa que, a correr, amedrontava. Ou pressentisse o agitado pato brincalhão a querer roubar-me o pão, quando eu era criança. Ou os fofos coelhos. Ou as ninhadas amarelinhas de pintos seguindo a segura mãe galinha...

Foi como se sentisse de novo o cheiro dos vegetais acabados de colher e logo saboreasse alguns, mesmo crus.

Foi como se cada coisa daquela casa me trouxesse as mesmas emoções e sensações boas e diferentes.

Foi como se aquele sonho fosse uma visita feliz àquela casa. Ainda que breve.

 

domingo, 4 de julho de 2021

Leitura quente

 

Ultimamente tenho lido alguns livros e é um prazer para mim poder fazê-lo. Assim como lê-los do princípio ao fim. Às vezes, deixava-os a meio, mas agora tento não o fazer. Assim, fica mais completa a história que é contada, e também o modo como está escrito, o que também considero muito importante.



Pois bem, acabei de ler O processo Violeta de Inês Pedrosa. Não posso dizer que o romance me encantou, mas gostei de muitas das suas 230 páginas. Nelas, é contada a história de Ildo e Violeta, um par amoroso, mas não convencional. Paralelamente, cruzam-se diferentes realidades: vícios frequentes no jornalismo, mães solteiras que vivem para os filhos, relação pais-filhos, desamor no casamento, bulying, racismo, amor entre pessoas com idades muito diferentes, etc.

Talvez a autora/narradora tenha tido o desejo de concentrar e explicar muitos factos atuais, o que nem sempre se integra no texto da forma mais natural, embora acrescente informação face à história narrada e que decorre nos anos oitenta do século XX.

 

Deixo um pequeno excerto de uma das páginas finais do livro.  Ildo fora criado com a mãe. O pai, um toureiro famoso de quem herdou a mesma paixão, abandonara-o para viver a sua vida de prazer e glória. No excerto, Ildo já atingiu a maioridade e o diálogo com o pai era mais frequente.

 


Boas leituras e bom domingo!

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Na cidade com mar ao fundo

 

Fui à cidade com mar ao fundo

Onde se ouvem pregões:

'Sardinha do nosso mari',

grita-se a plenos pulmões.


E a voz da peixeira

apregoava o seu cabaz;

eu invejava aquela força

de que gostava  ser capaz!


Estava eu a pensar nisto

e então que vejo eu?

No carro, havia uma multa

e um furo no pneu.


Eu ouvia a apregoar

a frescura do belo pescado,

mas, como ia eu mudar

aquele pneu furado?

 

Uma cidade em obras

que gosta bem de multar!

Podiam compreender

como é difícil estacionar.

 

Mas se pago o seguro

que dele tire vantagem.

Por isso pedi ajuda

à assistência em viagem.

 

Logo hoje que queria 

ir ao fundo ver o mar,

tive de estar à espera

que o pneu viessem mudar.

 

E enquanto esperava,

eu ia pra mim pensando:

a gente pensa uma coisa

mas faz outra mais urgente

porque assim é o nosso mundo;

o que vale é que o mar,

mesmo sem apregoar,

continua lá ao fundo!