sábado, 30 de julho de 2022

Dias de Londres - o parque com realidade e ficção dentro

 

Depois da escola, a minha neta pediu-me que fôssemos ao parque. Como o pedido foi surpresa e pensei que vínhamos para casa, não lhe levei o reforço do lanche, embora saiba que vem sempre esfomeada. Fomos e, chegada ao pequeno parque (playground), deparei com um grupo de mães, muito divertidas, umas usando o hijab, outras vestidas à ocidental, mães de meninos da turma da minha neta que partilhavam gelados bem apetitosos em dia quente. Uma delas disse-me simpaticamente que já sabia pela filha que eu chegara de Portugal. Enquanto eu ia respondendo, sentia o desconforto de não ter nada para repartir e, a partir desse dia, passei a levar o lanche e alguns frutos para partilhar. 

Como o grupo de mães era extrovertido e o grau de compreensão do meu inglês é reduzido, sentei-me num banco ao lado que estava vazio. Fi-lo não só por saber que era a única avó, mas por não as conhecer como todas se conheciam, o que me impedia de ter um diálogo assim divertido e hilariante. Se é que consigo tê-lo mesmo em língua materna!

No parque estavam duas meninas também dos primeiros anos da primária. Uma acreditava que era fada - a fada arco-íris - a outra queria ter sucesso nos estudos porque só assim conseguiria entrar na escola do Harry Potter. Eram as duas boas alunas, gostavam de ir ao parque depois das aulas, de correr, de cantar e de fazer tudo o que achavam divertido. 

Com o decorrer do tempo, iam-se transformando, mas a convicção de que uma era fada e a outra iria para a escola de Harry Potter é que não mudava.

Um dia, numa aula, a professora referiu a distinção entre realidade e ficção, dizendo que, por exemplo, o mundo de Harry Potter era imaginário. Não existia na realidade. A menina que fazia o melhor que podia para um dia poder frequentar a escola do seu ídolo não podia crer no que ouvia. Foi como se o coração lhe caísse aos pés. Ficou séria e triste e teve de conter as lágrimas para não começar a chorar.

No recreio, desabafou logo com a amiguinha que se julgava fada, convencida de que a professora se enganara. A escola de Harry Potter existia, sim. Não tinha dúvidas. Achava que os adultos, apesar de conhecerem muita coisa, desconheciam muitas mais. A outra menina - a menina fada - segurou-lhe na mão e disse baixinho porque seria o segredo de ambas:

- Deixa lá, como sou fada, se a escola do Harry Potter for imaginária como disse a professora, vou torná-la real e assim já podes ir para lá.

    Passados uns segundos, ouviu-se mais uma gargalhada de uma das mães, mas não era sobre a conversa das meninas, porque ninguém a ouviu e, nessa altura, já andavam, felizes, de baloiço com outros meninos.

 

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Dias de Londres - os arredores também podem estar no centro

 

Aqui em Londres, o tempo permite-me boas paragens. Mesmo que nós, adultos, estejamos em casa, o almoço é rápido e às vezes arranjado por cada um, consoante o trabalho no computador.

Respeito a necessária concentração e procuro não a perturbar para que o trabalho deles renda. É desse modo que leio, escrevo uma página do meu diário, vou às compras para a casa, para além das tarefas domésticas para que as coisas estejam organizadas e a vida deles mais facilitada enquanto cá estou. A meio da tarde, vou buscar a Clarinha à escola. O percurso  serve de caminhada e vou vendo os jardins floridos. Há um em que reparo sempre e às vezes até paro para me deliciar com a variedade e com as cores de flores. Quem trata dele é a dona da casa, uma senhora idosa e muito simpática. 

Há dias, num dos jardins de rosas de várias tonalidades, vi outra velha senhora sentada numa cadeira e a regar as plantas com a mangueira. Quase me chegava a água, sorri-lhe e ela desviou a mangueira, sorrindo-me também. Nesse mesmo dia, passei por um homem de muita idade que levava um jornal debaixo do braço que devia ter acabado de comprar. Imaginei-o a ler as notícias, o que será bem mais interessante do que estar a dormitar em frente à televisão com longos e impertinentes anúncios a calcitrins milagrosos.

Nessa mesma ida à escola, cruzei-me com outra mulher nada nova, muito magra, de passo muito rápido. Nem o rosto parecia querer mostrar. Mais abaixo, outro velho, de roupão,  estava com os cotovelos apoiados no portão, vendo quem passava. Olhei para ele e sorrimo-nos. Deve sorrir a todas as pessoas que olham para ele. 

Não poderei concluir que aqui só haja velhos, mas será possível dizer que a maioria dos velhos que vi pareciam gostar que olhassem para eles. Tal como em qualquer sítio.

Quando falo de Londres, logo me perguntam o que visitei no centro da cidade e às vezes tenho pouco a contar sobre isso, embora lá vá de todas as vezes que cá venho. Gosto muito do pulsar das cidades, de museus, de ruas de esplanadas e pequenas lojas, etc. Contudo, para mim, conhecer uma cidade também são os seus arredores, ver o que lá existe, cruzar-me com pessoas que lá vivem, etc. E, sobretudo, estar com as pessoas de quem fomos ao encontro.

Ou será que caminho para a fase da vida das pessoas com quem às vezes por estes dias me cruzei?

 

terça-feira, 26 de julho de 2022

Dias de Londres - com podcasts dentro

 

Hoje de manhã ouvi dois podcasts: A noite da má língua e Old friends.

No primeiro, foi longo o diálogo cheio de graça e ironia sobre o beijinho que o Marcelo deu na barriga de uma grávida; no segundo, os dois sábios, Sobrinho Simões e Júlio Machado Vaz, teceram muitas considerações sobre vida e obra da grande artista Paula Rego, falecida há pouco (quando puder, quero voltar à Casa das Histórias, em Cascais).

Entre imensas coisas muito interessantes, referiram o facto de a pintora-contadora de histórias ter saído de Portugal a conselho do pai, porque, na época, em Portugal, as mulheres não viviam em liberdade. A partir desse cenário, abordaram o tema do medo presente nalguns quadros da artista.

Apesar de eu não ter vivido nos primeiros anos em que ela viveu, reconheço que, mesmo depois, a educação se baseava muito em medos: sobretudo dos castigos de Deus, traduzidos em tempestades, catástrofes, etc. Havia que ter medo de tudo para que tudo se mantivesse. E palavras como submissão ainda me ferem o ouvido.

O apoio do pai corrobora uma ideia há muito cimentada em mim: a de que as pessoas que têm grande sucesso habitualmente tiveram ou têm alguém que lhes deu apoio e lhes mereceu confiança. Ou porque acredita nelas, ou porque lhes reconhece valor, ou porque está do seu lado, etc. 

Às vezes, basta um elogio sincero, um sorriso de empatia na hora certa, uma palavra para motivar para uma vida. Quando fiz a 4a classe, era necessário o exame de admissão aos liceus. A preparação era feita pela própria professora. Eu não iria prosseguir estudos, como a grande maioria das raparigas da turma, mas a insistência da professora para que não deixasse de estudar, prescindindo até da respetiva remuneração para me preparar para o exame, ficou-me para toda a vida.

 Chamava-se Gracinda e nós dizíamos D. Gracinda. Deve ter falecido há muito tempo, mas as suas palavras nunca me morrerão. Como uma old friend que, ainda que ausente e só vivendo em memória, nunca esquecerei.


 

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Dias de Londres - (des)arrumações

 

 Hoje passei a manhã e uma parte da tarde em arrumações no quarto da Clarinha. Já tinha reparado que havia coisas e caixas que precisavam de organização, mas gosto cada vez menos de ser demasiado intrometida. Ainda bem que a minha filha me falou do assunto. 

Mãe, como ficas ainda algum tempo, não queres dar ordem a esta desordem do quarto?

Claro, filha, já tinha visto que era preciso.

Depois, já sozinha no quarto, porque estas coisas gosto de as pensar em sossego e em silêncio, olhei as caixas, voltei a olhar e ia-me interrogando como podia separar e ordenar legos, loucinhas de brincar, lápis de colorir, bonecas, peluches, desenhos, travessões do cabelo, contas para colares... para reduzir espaço ou ganhar mais espaço.

Antes de começar, tirei fotografias para registar o antes e o depois, tipo querido mudei a casa!

 Ao fim da tarde, veio a reação da dona do quarto. Foi boa e fiquei contente. E também quando aspirei o chão e recoloquei os caixotes, podendo circular-se melhor, sentir-se mais organização e até descobrir ou ter à mão coisas que há muito não se encontravam.

Foi então o momento de tirar, toda ufana, a foto do depois. Só que, ao contrário do querido mudei a casa, não tive de recorrer ao Ikea nem ao Leroy Merlin - ficando as casas intervencionadas, na minha opinião, todas brancas e muito parecidas umas com as outras, mas isso é outro assunto.

Depois do depois da arrumação, ouvi, sentindo o olhar claro e meigo (quando  não há pressa nem a pressão do trabalho):

 Mãe, tenho estes 2 caixotes ainda por abrir, desde que mudámos de casa há dois anos…

Nem a deixei terminar e logo lhe respondi: 

Sim, querida, essa será a próxima etapa. Também já tinha reparado nestes caixotes.

E acrescentei: do meu vagar - como sempre diz a avó.

 

domingo, 24 de julho de 2022

Dias de Londres - D. Vitória da Moldávia e várias claraboias

 

Hoje é dia de vir a D. Vitória, uma senhora que veio há anos da Moldávia. Faz limpezas, é simpática e tem ar triste desde que a conheço há já uns anos, mas agora mais.

O meu inglês não é forte e o dela talvez ainda menos. Perguntei-lhe como estavam as coisas no seu país devido à guerra na Ucrânia. Suspirou e disse quase soletrando e com ar cansado: - mal, muito mal. Estamos muito perto da Ucrânia, temos medo do poder militar russo e daquele louco. 

Disse também ter amigos na Ucrânia que estão passando muito mal. E que uma amiga, que fugiu de Odessa, vive agora na sua casa na Moldávia.

Nisto, o telefone dela tocou. Afastei-me da cozinha onde estávamos. Ela atendeu e ia falando em língua para mim muito estranha, mas para ela materna e familiar, a avaliar pela grande fluência.

Peguei no livro que tinha começado a ler e fui para um pequeno espaço donde se veem árvores e se ouvem os pássaros a cantar. De vez em quando, um saltita na vedação de madeira exterior e fico a olhar-lhe os movimentos e a escutar-lhe os sons.

Sento-me e reabro Claraboia de José Saramago, cujo contexto são os anos cinquenta do século XX num bairro de Lisboa - onde vive e trabalha um velho sapateiro ex-revolucionário, uma mulher que recebe visitas noturnas sempre à mesma hora, uma espanhola que nunca se adaptou ao país nem ao casamento, uma jovem empregada de escritório que anseia por salário melhor, um jovem que vai vivendo temporariamente em quartos que aluga em errância quase permanente, duas irmãs - uma delas marcada por um romance dos muitos já lidos - que vivem com a mãe e uma tia... 

Neste livro, em que o narrador olha para o pulsar do bairro como iluminado por uma claraboia, escrito em 1953 mas só publicado em 2011, um ano após a sua morte, Saramago ainda recorre à pontuação tradicional, o que causa certa estranheza a quem está mais familiarizado com a maior parte dos livros mais atuais em que evita, por exemplo, os dois pontos, o travessão, o ponto de interrogação, etc. 

Enquanto a D. Vitória ia avançando na sua manhã de limpezas cá em casa, eu avançava na leitura do livro.

De repente, lembrei-me de que nas várias vindas a Londres eu lhe trouxe um pequeno presente, quase sempre em filigrana da minha região. Desta vez, esqueci-me e tenho pena, porque, mais do que nunca, ela precisaria de mimos e alegrias. Ainda que pequenas. 

Porque as dificuldades da D. Vitória são muitas e variadas, para além do medo daquele homem tenebroso que ataca o mundo, nunca saindo da sua escura claraboia.