terça-feira, 29 de março de 2022

"(...) e vou definitivamente ao encontro de..."

 

"(...) e vou definitivamente ao encontro de um mundo
que está dentro de mim, eu que escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma.
Em cada palavra pulsa um coração. Escrever é tal procura de íntima veracidade de vida. Vida que me perturba e deixa o meu próprio coração trémulo sofrendo a incalculável dor que parece ser necessária ao
meu amadurecimento —amadurecimento? Até agora vivi sem ele!
É. Mas parece que chegou o instante de aceitar em cheio a
misteriosa vida dos que um dia vão morrer. Tenho que começar por
aceitar-me e não sentir o horror punitivo de cada vez que eu caio, pois quando eu caio a raça humana em mim também cai. Aceitar-me plenamente? É uma violentação de minha vida. Cada mudança, cada projeto novo causa espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda a minha palavra tem um coração onde circula sangue.
(...)"

Clarice Lispector in UM SOPRO DE VIDA

C.L. foi escritora e jornalista brasileira, nascida em Chechelnyk, na Ucrânia, em 1920. Faleceu no Rio de Janeiro em 1977.


segunda-feira, 28 de março de 2022

Nem sempre se vai ao encontro de mas de encontro a

 

Muitas vezes confunde-se

Ir ao encontro de
e
Ir de encontro a
 
Então, nos meios de comunicação social, as trocas são uma farturinha.
 
Todos nós erramos e quem diz que nunca erra já estará a errar por defeito. Porém, se errarmos menos, tanto melhor, porque a língua portuguesa não é tão traiçoeira como às vezes se diz por brincadeira.
 
Vejamos então algumas diferenças entre essas duas expressões:
 
~ Ele foi ao encontro do seu amor. Como ia depressa, foi de encontro ao vidro.
~Ela gosta de partir ao encontro de novas paisagens. Um dia, foi de encontro a uma pessoa, enquanto fotografava.
 
Ir de encontro a - implica a ideia de esbarrar com, de chocar com
  • O carro não travou e foi de encontro a uma árvore.
Ir ao encontro de - implica a ideia de aproximação bem mais amigável.
  • Ele vai ao encontro das suas ideias, o que a faz feliz.
Que tenham uma semana que vá ao encontro dos vossos desejos.

sábado, 26 de março de 2022

Uma tarde de sábado com piano dentro

 

 
Liguei para o Lugar do Desenho: ainda há lugares para o concerto de piano?
Sim, há muitos lugares. 
Ontem, tinha visto e ouvido o pianista a ensaiar na sala do Lugar do Desenho/Fundação Júlio Resende, onde estão habitualmente as exposições temporárias.
Foi lá o concerto de Christopher Guzman - pianista nascido no Texas - previsto para as 16.30, mas que começou um pouco mais tarde.
Talvez houvesse a esperança, na mente dos organizadores e anfitriões, de que mais pessoas pudessem vir. Mas não, eram mais as cadeiras vazias do que as ocupadas.
O concerto tinha também por fim angariar fundos para adquirir o piano que está na Fundação Júlio Resende mas que pertence à Universidade Católica. A este concerto seguir-se-ão outros com a mesma finalidade.
Quanto ao programa, era variado: 


Apesar de gostar de música clássica, gostaria também de ter o conhecimento musical bem mais apurado para distinguir as peças, mas agradou-me o concerto e ver os dedos ágeis do músico a juntar sons do piano àquela sala, onde continuam os quadros de Manuel Casal de Aguiar aos quais o pintor deu o nome de "Paisagens na Oceania".
Enquanto via e ouvia aquelas obras de arte, eu sentia o prazer de múltiplas sensações na quietude do lugar e em liberdade de pensamento.
Quando houver o próximo concerto, não o quero perder. Grão a grão, o piano pode ir ficando para o Lugar do Desenho e ao serviço de toda a Comunidade. Pode ser que ajude a que, nestes eventos, menos cadeiras fiquem vazias. E que o conhecimento musical se vá aperfeiçoando, incluindo o meu.
 
 

quarta-feira, 23 de março de 2022

Livros interrompidos

  

 Já deixei muitos livros a meio ou fechados logo no início, sem os voltar a abrir. Ou porque não gostava. Ou porque não me me diziam nada. Ou, se calhar, por alguma preguiça ou, também, pela escassez de tempo, ou pela correria nada amiga de alguma concentração. 

  Agora, porém, já não o faço. Se começo um livro, tenho vontade de o ler até ao fim. Não sei se é a idade que vai instalando mais paciência, novos interesses, respeito pelas obras de arte como pode ser um livro. Entro no livro como se entrasse num espaço e num tempo com personagens que acompanho e que me fazem pensar, sorrir, conhecer realidades com as quais, às vezes, me identifico ou com outras das quais me distancio. Não para fugir do meu espaço e do meu tempo ou de quem me rodeia, mas para, através das palavras, que me dão muito prazer, chegar a outras histórias que me fazem reparar melhor - julgo eu - no que se passa à minha volta e no mundo.

  E já há tantas coisas e vidas interrompidas que é um privilégio começar a ler um livro e levar a leitura até ao fim.


segunda-feira, 21 de março de 2022

Notas breves de hoje - um dia que dizem ser de Poesia!

 

 - Recebo uma mensagem de Londres: uma aluna de 19 anos, do primeiro ano da  faculdade, foi  morta pelo namorado. Fico sem palavras e só me ocorre dizer: Meu Deus!

- Abro uma carta com um convite para um lançamento de um livro para crianças. O convite vem manuscrito  (ainda há quem o faça!) acompanhado de um origami. Há muito tempo que não recebo nem escrevo cartas à mão. Vou responder de igual forma: em papel manuscrito e com selo do correio.

- No whatsapp, recebo um poema de José Tolentino de Mendonça, com necessidades cada vez mais atuais: coisas que não se compram mas que vão sendo difíceis de encontrar. Obrigada, C.

"A estrela

 Precisamos de uma estrela que desarme a noite

Precisamos de uma palavra transparente

que  nos ofereça a possibilidade de um começo

Precisamos de uma esperança que se propague

Precisamos de lugares límpidos

fora e dentro de nós

Precisamos de reencontrar uma vida onde a prece

e o louvor voltem a ser possíveis

Precisamos de um gesto para dizer uma alegria

maior do que a alegria

Precisamos de  acolher o dom

e o seu equilíbrio difícil e leve

Precisamos de alguém que em pleno inverno

nos ensine a trazer no coração

a primavera a arder “

 

 - Uma amiga faz anos e, tal como costumo fazer para os mais próximos, escrevo-lhe uma quadra na hora e não deixo de juntar uns emojis. Como ela gosta de flores e de poesia, ponho essas palavras a rimar. Não é difícil porque há uma grande amizade e é o início da primavera.

- O meu neto dorme e desvio a luz do écran para que não acorde. Amo-o de todo o coração mas estes bocadinhos de sossego em que só oiço o seu respirar são como se eu também fechasse os olhos e a vida tivesse só candura.

- Leio que estamos no 26º dia da guerra na Ucrânia. Há quem lhe chame guerra na Europa, outros vaticinam uma nova guerra mundial. O que estarão as crianças ucranianas a ver e a ouvir neste momento?

- Faço novo teste anti-covid. Felizmente hoje já foi negativo. Bastaram-me os dias que passei fora de casa para não apanhar o bicho que aqui tinha entrado e, afinal, já levei o bicho comigo. Durante esses dias, não tinha computador, mas li um livro quase todo: Os teus passos nas escadas, de Antonio Munoz Molina, Relógio de Água.

- Leio num jornal online (Expresso Curto) que J.S. Bach nasceu num dia 21 de março (1685-1750). O jornalista sugere "Missa em Si Menor". Sigo-lhe a sugestão.

- O meu neto começa a acordar. Precisávamos que as estrelas da vida despertassem assim!

 

quinta-feira, 10 de março de 2022

"Menina dos olhos tristes"

  

Obrigada, Manel, pela partilha desta canção - tão bem cantada por ti - que, como disseste e eu concordo,  se enquadra no tempo atual. 

Tal como durante a guerra colonial,  milhares de soldados, também sem saberem bem porquê, combatem e não voltam.

 

  

 

"Há mar e mar..."

 


quarta-feira, 2 de março de 2022

'O MENINO DA SUA MÃE


No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas traspassado

— Duas, de lado a lado —,

Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!

(Agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

Um nome e o mantivera:

«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lha a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira.

Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embainhada

De um lenço... Deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:

«Que volte cedo, e bem!»

(Malhas que o Império tece!)

Jaz morto, e apodrece,

O menino da sua mãe.'

s. d.

Fernando Pessoa, Poesias, Ática, 1942