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Numa das cartas, contou-me
que as discussões com a mulher, norueguesa, continuavam e que, alguns dias
atrás, depois do trabalho e antes de regressar a casa, tinha tomado comprimidos
para dormir, para que, logo que chegasse, pudesse deitar-se e adormecer
profundamente, sem nada dizer e sem nada ouvir. Não previra, contudo, que o
trânsito pudesse atrasar. Adormeceu a conduzir, quase provocou um grave
acidente, sendo levado pela polícia e, dias mais tarde, internado numa clínica
psiquiátrica. Para além do trágico da situação, pensei, com certo alívio, que,
enquanto lá estivesse, seria de certeza bem tratado e não me importunaria.
Após algumas semanas, recebi nova
carta de Noé. Pousei-a em cima da mesa, sem vontade de a abrir, com receio de
encontrar mais páginas de jornais noruegueses que eu não entendia e que já me
enervavam. O destino seria o de sempre: contentor de reciclagem. Acabei por
abrir. A folha era grande mas o espaço de escrita bem curto. Noé dizia que estava
melhor, que no internamento tinha aprendido a fazer umas peças de artesanato e
que mas queria oferecer. Poderia trazê-las quando viesse passar uns dias comigo
porque continuava à espera que eu aceitasse o seu pedido. As peças, uns pequenos
quadros de parede, tinham frases que me eram dedicadas, mas que não me preocupasse
porque as tinha escrito em português.
Às vezes, à noite, em casa, eu chorava por não ter percebido bem as indicações da patroa, das clientes ou das colegas e, por isso, tinha errado no meu trabalho, sentindo, nesses momentos, mais pesada a solidão. Agora, por outro lado, não continha as lágrimas de algum desespero porque queria viver só e não com aquele familiar que me azedaria os dias, que exibia ostensivamente os seus conhecimentos de uma língua que eu desconhecia, para mostrar erudição e apoucar-me. Falava com frequência e com paixão de Knut Hamsun e de um livro que o escritor, prémio Nobel da Literatura de 1920, escreveu: Victoria. Quando falávamos sobre essa obra, perguntava-me sempre se eu conhecia a história. Como lhe dizia que não, concluía:
- Não sabes quem foi Victoria? Então, se a menina não leu, acabou-se a história!
Em relação às minhas leituras, ele dizia sempre que nenhuma tradução era fiável. "Traduttore, traditore", repetia sublinhando a expressão italiana. Voltava a falar de Victoria, que lera no original, e do tremendo desencontro amoroso que na obra é abordado.
Eu tinha sido infeliz no casamento durante anos a fio, mas estava a encontrar algum equilíbrio, como pretendia. Às vezes, pensava que a minha vida não era a que tinha desejado, mas tinha saúde e o dinheiro que ganhava permitia-me pagar as minhas contas, e, sobretudo, ter a paz que me faltara durante largos anos. Porém, se recebesse Noé no meu pequeno apartamento, deixaria de ter acesso a essa tranquilidade, sobretudo de final do dia, a que me tinha habituado e de que tinha necessidade. Conhecia-o bem. Instalava-se e prolongava a sua estada até à exaustão. Seria preciso avisá-lo inúmeras vezes de que o prazo de permanência na casa tinha expirado, sem garantia de sucesso. Acontecia sempre assim quando tinha problemas graves com a companheira. No entanto, mesmo na sua ausência, não se cansava de dizer que era a mulher da sua vida e que por ela iria até ao fim do mundo - por ar, por terra ou por mar.
Estava decidido: dir-lhe-ia que não me era possível recebê-lo.
(II)