quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

A mala de Noé

 

 

'O que fazia ali Victoria? Como podia o seu caminho passar por ali?

Ele não se enganava, era ela e, possivelmente, também tinha sido ela que passara na tarde anterior, quando ele olhava pela janela'.

Knut Hamsun, Victoria

 

A mala de Noé

 

Enquanto eu vivia em Portugal, recebia, com bastante regularidade, artigos de jornal em norueguês que Noé teimava em enviar-me. Após a minha mudança para West Hampstead, em Londres, continuou a fazê-lo, embora lhe repetisse que era inútil porque eu desconhecia essa língua por completo. Dizia-me que há sempre maneira de se conseguir o que se deseja, bastando arriscar e persistir. Desgastante insistência, no contexto em que me encontrava.
       Decidi ir para Londres porque queria mudar de vida. Emigrei numa idade em que já pouca gente o faz. No início, tive muitas dificuldades linguísticas que fui superando a pulso. Muitas vezes, esperava pela noite para chegar a casa e chorar. Ficava mais aliviada e as lágrimas limpavam-me a alma para o dia seguinte.
       No fim de contas, arrependi-me de lhe ter mandado a minha nova morada. Tentava ser compreensiva e generosa, mas a teimosia dele para passar comigo uma temporada em Londres deixava-me irritada. Tinha decidido viver sozinha e assim queria continuar. A experiência do meu casamento tinha sido desastrosa. Daí o desejo de mudança de país e de vida. Noé era meu primo e tinha idade para ser meu pai. Contudo, não era por isso que eu não queria recebê-lo, mas porque seria um estorvo na minha vida. Ele não compreenderia, por certo, alguns dos meus hábitos e a minha necessidade de cumprir horários sem quaisquer fantasias. Como não tinha outra fonte de rendimento, não podia falhar nas casas onde trabalhava, porque não faltava quem quisesse o lugar, sendo facilmente substituída, o que seria fatal para mim.

Noé era impertinente e egocêntrico. Era cansativa a insistência dele para que eu aprendesse aquela língua. Para mim, era exibicionismo  egoísta. Apesar de eu desconhecer por completo o norueguês, chegou a sugerir-me que me aventurasse na tradução de pequenos textos porque seria uma forma excelente de passar os meus tempos livres. Comuniquei-lhe logo que esses eram escassos e, quando tal acontecia, aproveitava-os para ler livros que há muito esperavam por vez, para caminhar no parque, para descansar ou para me encontrar com os meus poucos amigos, num pub ou no cinema. E que, nesse momento da minha vida, não me interessava aprender uma nova língua, sobretudo de um país que eu não conhecia nem teria, com certeza, possibilidades de visitar. Continuou a insistir. Chegava a ser provocador e incómodo.

 

(I)

 

 

10 comentários:

  1. Texto sobre a mala de Noé que muito gostei de ler. Gostei mesmo muito.
    .
    Saudações poéticas.
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

    ResponderEliminar
  2. Obrigada, Ricardo. A história vai continuar. Veremos se a teimosia de Noé consegue levá-lo a bom porto!
    Uma noite bem descansada para si e família.

    ResponderEliminar
  3. Respostas
    1. Que bom, então.
      Oxalá não fique desiludido.
      Uma boa noite, Joaquim

      Eliminar
  4. Que bom.
    Amanhã, a mala de Noé abre-se mais um bocadinho.
    Uma noite boa e descansada.

    ResponderEliminar
  5. Era teimoso, o Noé... Espero para ler o próximo!
    -
    A força da mente não me deixará ter frio
    *
    Beijos, e um boa noite!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, muito teimoso. Se calhar, para conseguir obter um sim, quando na vida já tinha ouvido muitos nãos.
      Um beijinho e bom fim de semana

      Eliminar
  6. Para começo de história, está muito bem. Aguardo continuação:).
    Bom Dia.

    ResponderEliminar
  7. Que bom, Bea. Tal como disse ao Joaquim Rosário, espero que não fique desiludida. O final, pelo menos - julgo eu - é inesperado.
    Uma noite bem descansada, Bea

    ResponderEliminar
  8. Gostei do começo.
    Vou para o seguinte
    Abraço, saúde e boa semana

    ResponderEliminar