sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

A mala de Noé

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Numa das cartas, contou-me que as discussões com a mulher, norueguesa, continuavam e que, alguns dias atrás, depois do trabalho e antes de regressar a casa, tinha tomado comprimidos para dormir, para que, logo que chegasse, pudesse deitar-se e adormecer profundamente, sem nada dizer e sem nada ouvir. Não previra, contudo, que o trânsito pudesse atrasar. Adormeceu a conduzir, quase provocou um grave acidente, sendo levado pela polícia e, dias mais tarde, internado numa clínica psiquiátrica. Para além do trágico da situação, pensei, com certo alívio, que, enquanto lá estivesse, seria de certeza bem tratado e não me importunaria.
         Após algumas semanas, recebi nova carta de Noé. Pousei-a em cima da mesa, sem vontade de a abrir, com receio de encontrar mais páginas de jornais noruegueses que eu não entendia e que já me enervavam. O destino seria o de sempre: contentor de reciclagem. Acabei por abrir. A folha era grande mas o espaço de escrita bem curto. Noé dizia que estava melhor, que no internamento tinha aprendido a fazer umas peças de artesanato e que mas queria oferecer. Poderia trazê-las quando viesse passar uns dias comigo porque continuava à espera que eu aceitasse o seu pedido. As peças, uns pequenos quadros de parede, tinham frases que me eram dedicadas, mas que não me preocupasse porque as tinha escrito em português.

Às vezes, à noite, em casa, eu chorava por não ter percebido bem as indicações da patroa, das clientes ou das colegas e, por isso, tinha errado no meu trabalho, sentindo, nesses momentos, mais pesada a solidão. Agora, por outro lado, não continha as lágrimas de algum desespero porque queria viver só e não com aquele familiar que me azedaria os dias, que exibia ostensivamente os seus conhecimentos de uma língua que eu desconhecia, para mostrar erudição e apoucar-me. Falava com frequência e com paixão de Knut Hamsun e de um livro que o escritor, prémio Nobel da Literatura de 1920, escreveu: Victoria. Quando falávamos sobre essa obra, perguntava-me sempre se eu conhecia a história.  Como lhe dizia que não,  concluía:

- Não sabes quem foi Victoria? Então, se a menina não leu, acabou-se a história!

Em relação às minhas leituras, ele dizia sempre que nenhuma tradução era fiável. "Traduttore, traditore", repetia sublinhando a expressão italiana. Voltava a falar de Victoria, que lera no original, e do tremendo desencontro amoroso que na obra é abordado.

 

Eu tinha sido infeliz no casamento durante anos a fio, mas estava a encontrar algum equilíbrio, como pretendia. Às vezes, pensava que a minha vida não era a que tinha desejado, mas tinha saúde e o dinheiro que ganhava permitia-me pagar as minhas contas, e, sobretudo, ter a paz que me faltara durante largos anos. Porém, se recebesse Noé no meu pequeno apartamento, deixaria de ter acesso a essa  tranquilidade, sobretudo de final do dia, a que me tinha habituado e de que tinha necessidade. Conhecia-o bem. Instalava-se e prolongava a sua estada até à exaustão. Seria preciso avisá-lo inúmeras vezes de que o prazo de permanência na casa tinha expirado, sem garantia de sucesso. Acontecia sempre assim quando tinha problemas graves com a companheira. No entanto, mesmo na sua ausência, não se cansava de dizer que era a mulher da sua vida e que por ela iria até ao fim do mundo - por ar, por terra ou por mar.

  Estava decidido: dir-lhe-ia que não me era possível recebê-lo. 

 (II)

9 comentários:

  1. Respostas
    1. Sim, um grande incómodo. Tão grande como a sua solidão.
      Uma tarde boa de quase fim de semana.

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  2. Quadros com mensagens escritas parece-me ser uma ideia muito bonita..
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    Feliz fim-de-semana
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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  3. Também acho. São mimos que ficam gravados. E fazem sempre bem a quem os oferece e a quem os recebe.
    Uma tarde feliz.

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  4. Gostei da leitura. Obrigada pela partilha!
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    Sonhos moribundos
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    Beijos, e um excelente fim de semana!

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  5. Eu é que agradeço, Cidália.
    Um beijinho e uma noite bem tranquila.

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  6. Forte melga, esse Noé. Começo a ficar do lado da narradora:). Ou é a forma de narrar que assim nos faz sentir. Avante.

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  7. Não queria estar na pele dela. A insistência dele seria sufocante. Cada vez gosto menos de pressões, embora haja situações humanas que mereçam ser repensadas.

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  8. Noé parece sofrer de uma obsessão. Será que na clínica psiquiatra não deram por isso?
    Abraço, saúde e boa semana

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