quarta-feira, 18 de abril de 2012

A VERDADE HISTÓRICA

 
                                           Imagem da net

A minha filha partiu uma tigela
na cozinha.
E eu que me apetecia escrever
sobre o evento,
tive que pôr de lado inspiração e lápis,
pegar numa vassoura e varrer
a cozinha.

A cozinha varrida de tigela

ficou diferente da cozinha
de tigela intacta:
local propício a escavação e estudo,
curto mapa arqueológico
num futuro remoto.

Uma tigela de louça branca

com flores,
restos de cereais tratados
em embalagem estanque
espalhados pelo chão.

Não eram grãos de trigo de Pompeia,

mas eram respeitosos cereais
de qualquer forma.
E a tigela, mesmo não sendo da dinastia Ming,
mas das Caldas,
daqui a cinco ou dez mil anos
devia ter estatuto admirativo.

Mas a hecatombe

deu-se.
E escorregada de pequeninas mãos,
ficou esquecida de famas e proveitos,
varrida de vassouras e memórias.

Por mísero e cruel balde de lixo

azul
em plástico moderno
(indestrutível)



ANA LUÍSA AMARAL, "Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999

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