Aqui estou em frente ao mar. Nunca pensei chegar até cá. Há setenta anos que vivo na minha aldeia de Trás-os-Montes. Lá nasci, lá vivi sempre e é lá que quero morrer.
Quando era pequena, ouvia a minha mãe dizer que, na cidade, havia um mar de gente. E também falava do mar de água que ela dizia ficar muito muito longe. Demorava tanto a dizer a palavra que parece que ainda oiço aquele eco: looooooonnnge. Falava também do grande oceano.
Senti sempre alguma curiosidade por saber como era o mar que parecia tão grande e distante assim como o mar de gente. Nunca tive tempo ou não houve oportunidade. Casei muito nova. Tinha a família, o campo, os animais… E também montanhas com neve ou calor.
Há muitos anos que os meus filhos saíram da aldeia. Foram abandonando a terra enquanto se faziam homens. Como todas as outras pessoas mais novas e com força, vieram trabalhar para longe e tudo foi morrendo aos poucos. Ficaram os velhos nas casas cada vez mais velhas e escuras. A aldeia, tal como as pessoas, envelheceu. Ficámos todos mais fracos e sós. Como as nossas casas.
Há muito tempo que os meus filhos queriam que eu conhecesse a cidade onde trabalham e que eu visse o mar. Acabei por vir, porque não gosto de dizer que não aos meus filhos. Já bastou o tempo em que não lhes podia dar os brinquedos que pediam. O que valia é que gostavam das histórias que eu lhes contava. Olhava à minha volta e logo inventava um continho como eu gostava de lhes dizer. Lembro-me da história do milho cor de rosa, da cereja-brinco-de-princesa, da castanha que gostava de apanhar sol, da geada endiabrada…
Agora aqui estou, em frente ao mar e só me apetece olhar e ficar calada. A luz é tão forte que mantenho os olhos quase fechados. Parece festa, porque estou a descansar e vejo muita gente com ar feliz. As pessoas não parecem ter pressa. A esta hora, se estivesse na minha aldeia, teria de recolher o gado. Às vezes nem reparo nas cores do pôr do sol. E, no entanto, há turistas que ficam na estalagem que há na aldeia, atraídos pela paisagem do fim do dia, como se fosse íman para os olhos.
Perto do mar parece que oiço tudo melhor. E vejo melhor também. O cheiro é fresco e azul.
O barulho das gaivotas é que é agoirento. Parece que chamam ou gritam! Fazem- me lembrar uma rapariga da aldeia que decidiu emigrar. Dizia que não sabia como as pessoas podiam viver encarceradas no meio dos montes. Algum tempo depois regressou. Deixou crescer os cabelos crespos e punha-se a cantar canções estranhas até de madrugada, à janela.
O mar é muito mais largo do que eu pensava. Faz muito barulho e as ondas, quando saltam, são mais altas do que os rochedos. A espuma parece neve no Inverno da minha aldeia.
Quando abro os olhos e vejo este mar cheio de luz, sinto-me pequenina. Parece que me cega. Lembro-me da minha terra que me parece ainda mais distante. Não me apetece regressar por enquanto. O mar não pode ser visto a correr. É como os montes. Quem os olha só da estrada não os fica a conhecer nem os guarda na memória.
Olho para o mar e parece que estou a ver e a ouvir a minha mãe. Ela, uma vez, ensinou-me uma palavra que tinha ouvido de uma senhora da aldeia que tinha livros e uma casa à beira-mar. Essa palavra era maresia. Só agora a percebi melhor.
Também entendi melhor a voz antiga de minha mãe.
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