sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Era uma vez uma casa...


 Armanda Passos

Há dias, convidando os meus alunos para participarem
no Concurso "Vamos escrever um conto sobre a palavra Amor,"
disse-lhes que escreveria pequenas histórias - apenas de motivação.
Aqui está uma - muito simples e despretensiosa. 
Boas escritas!

Era uma vez uma casa. E a casa tinha um jardim. E o jardim tinha flores. E as flores tinham cores, perfumes, borboletas, abelhas, joaninhas…
Fora da casa, havia uns bancos para as pessoas se sentarem nas noites quentes de verão, nos fins de tarde de outono, depois do almoço de domingo… E havia  fotografias espalhadas pela casa. Algumas delas tinham sido tiradas nas escadas junto aos canteiros. Todos gostavam de flores. Até uma cadela muito alegre e brincalhona tinha o nome Flor.
E todas as pessoas que viviam na casa eram mais novas do que aquela construção. Mesmo a avó, a pessoa mais velha da família, tinha nascido já quando a casa existia.
Toda a família gostava muito da casa, mas quase todos saíam cedo para trabalhar e, quando chegavam, vinham tão cansados que só queriam jantar e descansar. Ao fim de semana, tinham compromissos com os amigos, queriam andar a pé, ir ao cinema... e pouco tempo tinham para ficar em casa. Porém, para a pessoa mais velha da família, a casa era um grande amor que nunca esmorecia nem nunca se arreliava.
Quando saía, nem que fosse só por umas horas, estava mortinha por regressar para descansar um bocadinho no sossego silencioso do sofá, para se sentar à mesa no sítio do costume, para pôr tudo no seu lugar, para dormir com as suas almofadas muito fofinhas… E também para ver as flores, porque só ao olhá-las com atenção é que via se precisavam de ser regadas, estacadas, mudadas para um lugar mais ao seu gosto… Sim, porque as flores também manifestam as suas vontades. O que é preciso é conhecê-las.
A casa era, assim, um abrigo, um aconchego, um abraço quentinho e continuado. Para ser sincera, era uma paixão. Só que, ao contrário deste sentimento ainda mais arrebatado do que o amor, nunca perdia a intensidade.
Gostava de todas as divisões da casa, mas tinha uma grande preferência pelo quarto da costura. Era onde havia uma máquina antiga. Uma Singer velhinha velhinha, mas que cozia lindamente. E, junto da máquina, havia carrinhos de linhas de cores diferentes, tesouras e uma almofadinha pequenina onde estavam espetados os alfinetes. Dentro de um cestinho redondo, havia uma rendinha começada e um livro. A janela dava para um pátio onde havia muitos vasos com flores que perfumavam o ar logo de manhãzinha, sobretudo na primavera.
A menina mais nova da casa também gostava desse espaço. Podia até dizer-se que herdara aquele amor. Dizia que a casa cheirava a um tempo que ela não tinha conhecido mas que sabia sentir.
Um dia, na escola, a professora de português falou de um concurso: “Vamos escrever um conto com a palavra Amor”.
E logo lhe veio uma ideia: amor pela casa. 
Pela janela, viu a avó a estender ao sol raminhos de tília para secar e, mais tarde, fazer um chá perfumado e saboroso para a família.
Abriu o computador e começou a escrever:
Era uma vez uma casa…

Morreu Manuel António Pina



É muito triste quando morre um escritor, sobretudo em idade em que muito podia ainda produzir.

Manuel António Pina nasceu em 1943, na Beira Alta e viveu no Porto desde os 17 anos.

Escreveu poesia, crónicas,  livros de ficção para diferentes faixas etárias...

No ano passado, em 2011, recebeu o prémio Camões.



As palavras, nestas circunstâncias, são sempre de circunstância e pobres.

Lembro-me de, há uns dois anos, ter ido à feira do Livro do Porto. Ele estava num dos stands a dar autógrafos. 

Nesse dia, comprei uns livros para crianças e dirigi-me ao escritor para que autografasse um que eu queria oferecer. Ele estava com o telemóvel na mão, pediu-me desculpa, mas tinha de atender uma chamada da família. Eu, mera e comum leitora; ele, um escritor consagrado, falava-me de forma afável e afetuosa. Como, pelos vistos, era seu hábito. 

Muitas das crónicas do Jornal de Notícias ter-se-ão perdido no turbilhão dos dias. Mas os ecos dos 1100 caracteres diários viverão em muitos leitores. Tal como os seus livros.


Recordemos um poema que escreveu:

A um Jovem Poeta  

Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.

Manuel António Pina, in Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança
 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A História de Ruby Bridges

Imagem da net

A nossa filha Ruby deu-nos uma grande lição, ao tornar-se alguém que ajudou a mudar o nosso país.
Tornou-se parte da nossa história, tal como acontece com os generais e os presidentes. À semelhança deles,
também Ruby foi uma líder, porque conduziu negros e brancos
a um maior entendimento.
(Testemunho da mãe de Ruby)

Ruby Bridges nasceu numa pequena cabana perto de Tylertown, no Mississipi.
Éramos pobres, muito pobres recorda ela. O meu pai trabalhava nas colheitas. Havia alturas em que tínhamos muito pouco para comer. Quando os donos das terras começaram a usar máquinas para facilitar as colheitas, o meu pai ficou sem emprego e tivemos de mudar de terra. Penso que tinha quatro anos quando partimos.
Em 1957, a família mudou-se para Nova Orleães. O pai arranjou emprego como porteiro e a mãe cuidava das crianças durante o dia. Depois de os aconchegar na cama à noite, ia esfregar o soalho de um banco. Iam à igreja todos os domingos. 
Naquele tempo, as crianças brancas e as negras frequentavam escolas separadas em Nova Orleães. As crianças negras não tinham direito ao mesmo tipo de educação das brancas. O que era injusto e ia contra a Constituição. Em 1960, um juiz decidiu que quatro meninas negras frequentariam duas escolas primárias para brancos. Três das meninas foram para a Escola McDonogh 19. Ruby Bridges, então com seis anos, foi para a Escola William Frantz. 
Os pais de Ruby estavam felizes por a filha poder participar num evento tão importante da história americana. No primeiro dia de escola de Ruby, uma multidão de brancos enfurecidos juntou-se à porta do edifício. Alguns traziam tabuletas nas quais diziam que não queriam crianças negras numa escola branca. Insultaram a menina e quiseram mesmo bater-lhe. Nem a cidade nem a polícia estatal ajudaram Ruby. Foi então que o Presidente dos Estados Unidos ordenou que guardas federais armados acompanhassem Ruby até à escola. 
E assim, todos os dias, durante meses, Ruby teve aulas neste ambiente. Ia sempre para a escola escoltada por guardas federais, munida de uma lancheira e caminhando devagar. Quando se aproximava da escola, via logo a multidão que fazia piquete à porta do edifício. Homens, mulheres e crianças gritavam contra ela e queriam empurrá-la. Apenas a presença dos guardas e a ameaça da prisão os impedia de lhe fazerem mal.
Ruby apressava-se a entrar na escola, sem dizer palavra. 
Os brancos da vizinhança recusaram-se a enviar os filhos para a escola. Quando Ruby entrava no edifício, só lá estavam ela e a professora, Mrs. Henry. Não havia crianças com quem aprender, brincar ou almoçar. Mas todos os dias Ruby entrava na sala com um grande sorriso, e preparava-se para aprender.
Era muito bem-educada e trabalhadora lembra a professora. Gostava de estar na escola. Não parecia nervosa, irritadiça ou assustada. Parecia-se com qualquer criança normal e relaxada que eu ensinara.
Ruby começou assim a aprender a ler e a escrever numa sala da aula vazia e numa escola vazia.
Às vezes perguntava-me como ela conseguia continua Mrs. Henry. Como passava por aquela multidão todos os dias e conseguia entrar na escola de uma forma tão descontraída.
A professora fazia-lhe perguntas para averiguar o verdadeiro estado de espírito da criança e Ruby sempre lhe assegurava que se sentia bem. Mrs. Henry decidiu esperar para ver se haveria alguma alteração no comportamento da sua aluna. Se esta, eventualmente, revelava desgaste ou queria desistir da escola.
Preto de paus (cartas)Preto de paus (cartas)Preto de paus (cartas)
Certa manhã, algo de diferente se passou. A professora estava à janela a ver Ruby dirigir-se à escola, quando, de repente, a menina estacou e se dirigiu à multidão vociferante. Mrs. Henry perguntou-se o que estaria a sua aluna a dizer. A multidão parecia querer matá-la. Os guardas estavam assustados e queriam que Ruby entrasse na escola o mais depressa possível. Mas esta só o fez depois de dizer tudo o que tinha a dizer. 
Quando entrou na sala de aula, a professora contou-lhe que a observara da janela e perguntou-lhe o que dissera àquelas pessoas. Ruby ficou agastada.
Eu não falei com elas.
Mas, Ruby, eu vi os teus lábios a mexer.
Eu não estava a falar com elas, estava a pedir por elas.
Quando as aulas terminaram naquele dia, Ruby saiu por entre a multidão, como de costume.
Depois de ter andado alguns quarteirões e de se ter distanciado da turba, a menina parou para repetir o pedido que fazia todos os dias...
Preto de paus (cartas)Preto de paus (cartas)Preto de paus (cartas)
Nesse mesmo ano, dois rapazes brancos começaram a frequentar a escola de Ruby. Os pais estavam cansados de os ver metidos em sarilhos, em vez de estarem na escola a aprender. A multidão enfureceu-se com a presença deles mas, em breve, outros se lhes juntaram.
Um dos pais disse:
Temos estado a deixar que algumas pessoas roubem o direito dos nossos filhos à educação, ao quererem fazer justiça pelas suas próprias mãos. Temos de lutar ao lado da lei e defender o direito dos nossos filhos à educação.
E muitas crianças começaram a frequentar a escola.
Quando Ruby estava no segundo ano, a multidão desistiu de se manifestar e de desafiar a ordem do juiz para acabar com a segregação racial nas escolas. Depois de frequentar a escola primária, Ruby frequentou também a secundária.
Hoje é casada com um empreiteiro e tem quatro rapazes. Empresária de sucesso, criou a Ruby Bridges Educational Foundation, para fomentar o envolvimento dos pais na educação dos filhos.
Robert Coles; George Ford
The Story of Ruby Bridges
New York, Scholastic, Inc., 2004
(Tradução e adaptação)
es@contadoresdehistorias.co

Só hoje?

Hoje chovia muito quando entrei numa sala de aula. O céu pesado descarregava as águas que se viam cair através das janelas largas envidraçadas.

- Meninos, já sabem que devem abrir os cadernos e os livros.
- Calma, setora, ainda agora chegámos!
- E as mochilas, não as quero em cima da mesa, já sabem.
- Hmmmm
- Vamos lá, então, corrigir o trabalho da casa. Podes começar.
- Setora, não fiz.
- Diz tu, então.
- Não tive tempo de fazer, professora.
- E tu?
- Só respondi a uma questão, porque não percebi.
- Então, diz o teu colega.
- Também não fiz.
- Bem, passemos, então a quem fez.

A chuva tinha abrandado, apesar de o céu continuar carregado. A sala de aula estava quente. Dizem que os materiais utilizados nas paredes aquecem bastante. A porta, pesadíssima, só para fechada. Para entrar o ar, entreabri a janela. Passámos ao estudo pormenorizado do texto.

- Setora, agora já percebi melhor.
- Quantas vezes tinhas lido o poema?
- Duas.
- Se calhar, tinhas de ler outras duas.

Cheguei à sala de diretores de turma e estava-se a falar dos rankings das escolas. E dos lugares cimeiros dos estabelecimentos de ensino privado. E das aulas suplementares. E das sessões de preparação para exame. E dos avisos que fazem aos alunos e aos encarregados de educação se o rendimento decrescer ou o comportamento piorar. E do controle que é feito pelos pais porque lhes sai muito dinheiro do bolso ao fim do mês. E da supervisão atenta a todos os casos. E das expectativas dos alunos e das famílias.

O céu continuava com o peso de um frio outono.

E, apesar de tudo, íamos pensando que o inverno ia demorar a chegar.


terça-feira, 16 de outubro de 2012

Com um gato em cima da mesa

Era assim todos os dias depois de almoço.

A porta estava entreaberta, ele entrava e sentava-se à mesa do pátio – pequena, redonda, dando para a árvore do jardim. Em breve, o amigo chegava, sentava-se, sempre na mesma cadeira, e começavam a falar. Às vezes, um deles começava a dormitar. O outro, ao aperceber-se, interrompia a conversa ou, então, continuava porque o amigo, apesar da soneira, sempre ia ouvindo alguma coisa.

Falavam de tudo: dos negócios que não estavam nada bem, do desgoverno do governo, das doenças da família, da chatice de ser velho, dos sonhos que tinham tido enquanto meninos, dos amigos que já haviam partido, de castos amores antigos…

E ali ficavam os dois, longamente, na hora da sesta. Ou melhor, os três, porque o gato enroscava-se e dormia, regalado, em cima da mesa.

domingo, 14 de outubro de 2012

Si j'allais à Nice, j'irais à la confiserie Mimosa!




Do pequeno se faz grande


Pico(s) de outono



Coerência?


A rua (não) é de todos

Imagem da net

Nos últimos meses, milhares e milhares de pessoas têm vindo para a rua manifestar o seu descontentamento pelos excessos de austeridade, pela descrença nos políticos, pela falta de esperança no futuro, pelas suas próprias razões para criticar o estilo de governação atual. As manifestações têm sido exemplarmente criativas e ordeiras.

Pois bem, se as pessoas, de diferentes idades, com ou sem filiação partidária,  invadem as ruas, os políticos cada vez mais delas se afastam. Protegem-se com uma couraça cada vez mais espessa de seguranças e, quase sempre, após qualquer evento, saem por portas imprevistas, fugindo dos apupos, insultos e vaias, como o diabo da cruz.

Ontem foi um dos dias em que milhares de pessoas vieram para as ruas. Muitos artistas partilharam o seu trabalho: música, teatro,  afirmando que "cultura é resistência". 

E os motivos de insatisfação parecem proliferar diariamente. Para além do desemprego e das condições de vida que vão piorando, emergem casos de amiguismo, arrivismo, interesses pessoais, mentiras...

E assim vai crescendo uma dificuldade enorme de comunicação entre os governantes e o país. Quando falam, já quase ninguém acredita neles. Ou porque em breve vão recuar, ou porque a seguir vêm novas medidas, ou porque não pensaram devidamente no que dizem e no que fazem...

Diz-se que a rua é de todos. Porém, atualmente, poucos governantes as percorrem. Se alguém lhes perguntasse a razão, responderiam, como habitualmente, que não era o momento de falar sobre o assunto, desenhariam um sorriso de escárnio ou, talvez o mais provável, fechariam a porta do BMW topo de gama, partindo o mais depressa possível.


Um poema para ler devagar

 Ontem, sábado, na Escola Secundária de Gondomar,
houve uma ação de formação sobre a Leitura, 
organizada pela professora-coordenadora de Português.
.
Um dos textos distribuídos e trabalhados pela palestrante,
 Dra Cristina Mello da Fac. Letras de Coimbra, 
foi  este que agora partilho.
Boas leituras!

A Ana lê muito devagar,
só uma letra de cada vez.
Enquanto ela está a só uma letrar,
a Sara letra duas ou três.

A Ana tem tempo de lá chegar.
Os pês, os tês, os bês, os mês,
não fogem se ela se demorar.
A Sara acaba e começa outra vez.

A Ana lê e põe-se a pensar
nos quês, nos porquês, nos para quês,
e volta atrás para confirmar
porque, afinal de contas, talvez.

A Sara prefere entrar
nas palavras, nos desenhos, e ficar.
Existir nas histórias, em vez
de ver, viver; em vez
de pensar, de pausar, de perspicar,
ser ela a ser o que o herói fez.
Sai dos livros sem sair do lugar
e corre o mundo de lés e lés.

A Sara lê assim, a Ana mais devagar,
e depois ficam as duas a conversar.
A Ana conta: "Era uma vez..."
E a Sara: "Era eu uma vez..."


Manuel António Pina, "Era uma vez"
in O pássaro da cabeça, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O solitário da rua

Chegou a casa cansado. Doí-lhe um ombro. Precisava de trabalhar no quintal mas a dor impedia-o. Não estava habituado a chegar a casa e sentar-se. Fazia-o habitualmente mais tarde.

Maldita dor no ombro.

Vinham-lhe à cabeça imagens do dia: o trabalho na repartição com aqueles papéis todos amontoados. Quando não havia ninguém, pensava que ir pôr a mesa em ordem mas logo chegava alguém nem que fosse só para pôr dúvidas. Ou para mostrar como era possível poupar na gasolina ao fim do mês. Ou para explicar os tratamentos da sogra.

O serviço estava informatizado, mas muitos documentos continuavam a viver no papel. E as pessoas que chegavam e enchiam a repartição de ruído, de impaciência, de nervosismo apressado...

De regresso a casa, visitou o primo, que para ele era um irmão, e que tinha a obsessão de mal-amado. Que raio! Se calhar era um problema de família. Muitas vezes também o sentia e outras tantas o repudiava, pensando que ninguém escapa à crise do desamor, limitadora também da capacidade de amar.

Mexeu o ombro para ver se a dor tinha abrandado. Maldita dor. Maldita dor de pensar.


Ontem lembrei-me deste poema


na hora de pôr a mesa, éramos cinco:

o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs

e eu. depois, a minha irmã mais velha

casou-se. depois, a minha irmã mais nova

casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,

na hora de pôr a mesa, somos cinco,

menos a minha irmã mais velha que está

na casa dela, menos a minha irmã mais

nova que está na casa dela, menos o meu

pai, menos a minha mãe viúva. cada um

deles é um lugar vazio nesta mesa onde

como sozinho. mas irão estar sempre aqui.

na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.

enquanto um de nós estiver vivo, seremos

sempre cinco.



José Luís Peixoto, in "A Criança em Ruínas"

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Aniversário



 Gil Teixeira Lopes

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais       copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...                                                                                                 Fernando Pessoa
                                                                                                             Álvaro de Campos

                                                                                                                                                                        15/10/1929