Embora o Natal já tenha sido há muito tempo, partilho hoje um texto que escrevi e foi publicado na coletânea Lugares e Palavras de Natal, da Editora Lugar da Palavra. Dei-lhe o título 'O brinde'. Já agora, um brinde para todos. E bom Carnaval.
O brinde
Quando leu 'Com Amor, Feliz Natal’, sorriu e fechou devagar a porta larga com a chave antiga e pesada. Dando passos ligeiros através do alpendre, voltou à cozinha, onde as irmãs a esperavam para a ceia de Natal.
Era a primeira consoada sem a mãe, que partira quando janeiro escurecia e gelava os ramos despidos das árvores. A custo, as três irmãs foram preenchendo os vazios deixados pela mãe. Tinham saudades, até das suas lamentações constantes: as pernas doíam, a cabeça pesava, o receio de perder o juízo aumentava...
Em resposta a este lamento constante, as filhas diziam-lhe, com alguma graça e paciência:
- Mãe, se não perdeu o juízo até agora, não é agora que o vai perder!
Tudo fizeram para que a mãe vivesse bem e feliz. E foi longa a sua vida.
Vista de fora, a vida das três irmãs continuava harmoniosa, apesar do visível envelhecimento que, devagarinho e sem tréguas, a todos vai dando rugas e retirando forças. Contudo, a esperança de viver com alegria não abandonava sobretudo Lucília: que ficara viúva muito nova. Com a morte do marido e sem filhos, regressara à velha casa por insistência da mãe e das irmãs. Inicialmente, seria por pouco tempo, depois, o limite estendeu-se à reforma, mas, como as raízes a prendiam à família e à casa materna, foi-se juntando à cepa que se divide apenas por morte de alguma das partes.
À mesa, conversavam e algumas vezes sorriam. Porém, se os assuntos iam para além dos banais, do relato comentado de vidas conhecidas, das precisões da casa, das necessidades da saúde, o diálogo cessava porque a diferença de opiniões era obstáculo e acabava sempre em azedume ou silêncio com sabor a amuo. Sobretudo por parte de Teresa. Embora as três irmãs amassem a luz dos dias, pairava na casa um mal antigo de família: a solidão. Cada uma sentia-a à sua maneira, mas só falavam do assunto quando os ânimos aqueciam e as palavras saíam afiadas.
Eram estes os nomes das três irmãs que viviam na velha casa: Teresa, Lucília e Andresa.
Teresa, a mais velha, era fria e impaciente. Em momentos de tomar decisões, dizia, em tom amargo, que não valia a pena pronunciar-se porque ninguém lhe dava ouvidos nem importância. Em nova, tinha tido uma paixão não correspondida por um colega de trabalho, que lhe deixou desamor para toda a vida.
Andresa, a mais nova, falava baixinho, rezava em voz alta, queixava-se muito da cabeça e erguia com muita frequência os olhos para o céu. Era solteira, tal com a irmã mais velha, e nunca ninguém lhe conheceu qualquer enamoramento. A existir, seria com certeza por santos da sua devoção, cuja vida conhecia ao pormenor.
Lucília, viúva e irmã do meio, era a mais alegre e comunicativa. Porém, muitas vezes, a solidão destapava-lhe as lágrimas, ainda que só lhes desse liberdade quando estava sozinha. Calava saudades, desejos e vontades, que sabia não terem bom acolhimento familiar. O grande - apesar de demasiado breve - amor partilhado com o marido havia sido o maior consolo que a vida lhe oferecera.
Na infância e juventude, sempre vira os familiares apressados e impacientes. As prementes tarefas não davam lugar a afagos, beijos ou abraços. Chegava a pensar que era invisível.
Assim, ao longo da sua vida, pouco tempo tivera para trocar palavras airosas que procurava nos romances, ainda que, na velha casa, fossem considerados para ociosos sem deveres nem obrigações.
Não prescindia, contudo, do mundo que cada livro lhe abria.
O tempo passava e o Natal estava próximo. Era preciso arranjar os vasos, os canteiros, o alpendre para que tudo se aprimorasse antes do nascimento de Jesus.
Na ceia, este ano sem a mãe, só as três irmãs estariam à mesa, mas viriam visitá-las as pessoas do costume com as prendinhas também do costume, para agradecer qualquer ajuda ou gentileza ou para a visita familiar anual.
Teresa quase desesperava pela rotina que adivinhava interrompida. Não gostava do vaivém da época natalícia. O toque mais frequente da campainha da porta irritava-a e interrompia os afazeres que para ela tinham horas certas.
Não têm noção - dizia e repetia, cerrando os lábios finos e secos.
Na véspera de Natal, para evitar enervamentos de Teresa, Lucília pôs logo de manhã a bandeja, com o paninho de linho bordado a azul, na mesa da cozinha, foi ao armário da sala buscar os copos fininhos e juntou-os à garrafa de vinho do Porto, para oferecer às visitas. Ao lado, colocou chocolatinhos e biscoitos. E que as pessoas venham, pensava. Com calma e alegria, ainda que soubesse que a demora ou as vozes alegres e estridentes exasperavam Teresa e traziam dores de cabeça a Andresa.
Ao longo do dia, também acautelando impaciências da irmã, Andresa ia arranjando tudo na cozinha para que não houvesse desarrumações nem migalhas na mesa ou no chão, o que tornaria o ambiente cinzento, como o tempo que fazia lá fora.
- Assim, fica melhor - dizia Andresa. E acrescentava, apaziguadora:
- Gosto tanto destes copinhos verdes do enxoval da nossa mãe.
À tardinha - expressão que sempre usavam para referir o cair do dia -, com a lareira acesa e a panela de ferro cheia de água a ferver, iam fazendo os últimos preparativos para a ceia e para que tudo estivesse no lugar certo quando se sentassem à mesa de consoada. Até um carneirinho do presépio tinha sido ajustado ao musgo para que não voltasse a cair.
Quando tudo estava pronto, a campainha tocou. Teresa suspirou, dizendo, de mau humor, que as pessoas não têm noção nem horas para nada; Andresa disse precisar de um melhoral - nome que sempre davam ao ben-u-ron - e Lucília foi, lesta, abrir a porta. Voltou sorridente à cozinha, com uma das mãos a aconchegar um dos bolsos. Perguntaram quem era. Disse que era um dos novos vizinhos a desejar bom Natal.
As pessoas não têm noção nem horas para nada, repetiu Teresa, e começaram a servir-se, antes que a fumegante travessa cavalinho, com as batatas, bacalhau e tenras hortaliças arrefecesse.
No final da ceia, Lucília, com sorriso aberto, sugeriu que fizessem um brinde. Não disse a razão nem nenhuma das irmãs perguntou.
A lareira crepitava, com chamas rubras renascidas.
No bolso de Lucília, continuava o amoroso postal recebido à porta, que abriu e fechou com a chave antiga e pesada. E que há muito não lhe parecia tão leve.