terça-feira, 9 de junho de 2020

Tanta coisa que arde sem se ver

Andava com aquela ideia na cabeça há muito tempo. Ia-se tornando obsessão. Tinha de arrumar armários, gavetas e desfazer-se de algumas coisas porque não queria dar trabalho aos filhos quando morresse. Muito que fazer já tinham eles. Como tinham casa montada, quase de certeza que não queriam aqueles móveis. E muito menos o recheio. Por eles, até podia ser, mas elas, as noras, tinham gostos bem diferentes e já lhes adivinhava a reação.
Um dia, quis dar-lhes umas toalhas e colchas de renda que tinha feito em muitos muitos serões e muitas tardes mais livres. Elas disseram logo que as toalhas aceitavam, mas que as colchas nem pensar. Eram pesadas e frias.
Lembrou-se que poderia oferecê-las quando houvesse festas ou feiras da paróquia. Não, o melhor seria não esperar tanto tempo, porque o teimoso vírus anda por aí e por isso não haverá festas tão cedo. 
Se calhar, o melhor era não ter feito tanta coisa e ter feito outras coisas, concluía agora.
Se caísse numa cama, seria logo criticada pela acumulação de coisas. E pela  desarrumação, o que tornaria também mais difícil a venda da casa no futuro.
Ninguém lhe tirava aquela ideia da cabeça, embora não a comunicasse a ninguém.
Tinha de pôr mãos à obra quanto antes. 
Começou pelo armário da sala. Tirou tudo lá de dentro e encontrou, lá no fundo, a vela vermelha que guardava há muitos anos. 
E se a acendesse? Tinha tão boas recordações daquela vela que iluminara vários jantarinhos sossegados e íntimos. Voltou a pô-la em cima da mesa e acendeu-a com os fósforos que foi buscar à cozinha, antes de a vizinha a ter chamado.
E foi a vizinha que, de repente, sentiu o cheiro a queimado. 
A vela tinha tombado e chegado o fogo aos panos e toalhas de renda saídos do armário.
Ela, inconsolável, só dizia, enquanto despejava nervosamente a água sobre a mesa: se ao menos fossem as colchas!

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