sexta-feira, 10 de abril de 2020

O solitário da rua - 6a f

Ontem, recebi um telefonema de uma vizinha. Atendi, mas não conhecia o número. Nunca tínhamos falado, apesar de morarmos perto há longos anos. Um pouco nervosamente, identificou-se:
- Boa tarde, sr António, sou a Otília, a vizinha, desculpe ligar-lhe. Nem sei como tinha o seu número. O papelinho já é antigo e ainda bem que não o deitei fora. Posso falar um bocadinho?
- Claro, dona Otília.
- Às vezes, gosto de ficar a olhar pela janela, vejo-o na sua horta ou no seu jardim e sinto vontade de falar consigo. Hoje, resolvi mesmo tomar a iniciativa.
- Precisa de alguma coisa, dona Otília? Quer que lhe traga algumas coisas do supermercado?
- Não, sr António, quanto a isso, tenho tudo. Os meus filhos deixam ficar à porta, embora não entrem. Eu compreendo, porque a minha idade é de risco e eles têm filhos pra criar. Para além disso, não têm a vida fácil porque têm o teletrabalho e os miúdos sempre em casa. E eles não param. Só se for com os jogos de computador.
- E da farmácia, precisa de alguma coisa?
- Tambem já me trouxeram os medicamentos que tomo sempre. Por acaso nesse dia também vieram os meninos, mas ficaram no carro. Espreitei-os pela janela para lhes atirar beijinhos, mas nem me viram porque estavam muito entretidos com os jogos do tablet.
- Mas precisa doutras coisas, dona Otília?
- No fundo, Sr António, peço-lhe muita desculpa de o incomodar, mas eu precisava era mesmo de falar e de alguém que me ouvisse. Eu sou um bocadinho como o Sr António, não paro muito a falar na rua, mas também estar sempre aqui fechada e sozinha até me faz chorar e lembrar-me de coisas tristes.
- Pois, compreendo, dona Otília, mas temos de confiar que este pesadelo vai passar.
- Eu também acho que sim, mas depois tudo vai ser diferente. Sinto muita vontade de abraçar os meus netos, mas sabe que me vou conter nessas ocasiões? Se algum aparecer com tosse, vou logo sentir culpa.
- Mas, dona Otília, há tosse e tosse e isto vai passar.
- Sr António, já falámos um bocadinho e fiquei mais aliviada. Peço-lhe desculpa, mais uma vez.
- Também lhe agradeço, dona Otília, por ter telefonado. Gostei muito de falar consigo e sabe que também aliviou um pouco o meu dia? Boa Páscoa.
- Ainda fico mais feliz. Boa Páscoa.

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