quinta-feira, 19 de julho de 2012

Humberto e a macieira



Nos arredores de uma pequena cidade viveu em tempos um homem. Chamava-se Humberto. Humberto era um homem simpático, de olhos bondosos e uns óculos muito pequeninos pousados no nariz. Os seus caracóis castanhos pareciam a lã de uma ovelha. Morava numa casa velha e torta que se escondia tímida, quase envergonhada, por detrás de um belo jardim. No jardim, num prado verde e florido, havia uma macieira.

Todas as manhãs, quando se levantava, Humberto maravilhava-se com a beleza da sua árvore. Ao fim da tarde, quando regressava do trabalho, sentava-se durante horas a ver os pássaros na copa da macieira. Na verdade, devemos dizer que não é nada aborrecido estar a observar uma árvore. Algumas são verdadeiras artistas da mudança.


 Na primavera, vestem-se de mantos floridos e estendem os ramos para o calor, enquanto as abelhas laboriosas as procuram em busca de alimento. No verão, oferecem a sua sombra, enquanto o sol brilha com tanta intensidade que faz as pessoas andarem de rostos afogueados. No outono, o vento forte brinca sem descanso com as folhas amarelas, vermelhas e castanhas e espalha-as pelos prados e ruas, até que o inverno vista a paisagem de um manto branco.


Quando Humberto se deitava debaixo da macieira, lembrava-se de como costumava trepar por ela acima em criança. Muitas vezes se escondera nos seus ramos, quando a mãe o chamava para almoçar e ele ainda não tinha vontade de voltar para casa. Quando Humberto contemplava a sua árvore, sentia uma alegria imensa. Acontecia também que as pessoas paravam junto à cerca – uma mãe ou um pai com um filho, por exemplo. Por vezes alguém exclamava:
― Olha, que bonita!
Mas a maioria das pessoas passava apressadamente. Parecia que havia muitas coisas urgentes a fazer naquela cidade tão pequena.
Assim passaram os anos. Humberto ficou mais velho. A cara ficou coberta de rugas. O cabelo ficou, primeiro grisalho, depois branco e, com o tempo, desapareceu como as folhas no Outono. Só a barba continuava a crescer luxuriante, cobrindo-lhe o queixo e descendo pelo pescoço até ao peito. Humberto, contudo, continuava feliz, observando horas sem fim a árvore e os pássaros. Se apanhava crianças atrevidas a roubar maçãs, limitava-se a rir e gritava:
― Assim é que elas sabem bem, não é?


Os miúdos, então, fugiam envergonhados. Um dia, contudo, aconteceu uma coisa horrível. Era mais uma vez outono. O vento forte batia violento nas janelas e fazia as folhas coloridas girar no ar. Das montanhas em redor vieram nuvens carregadas de tempestade. Eram tão negras, sinistras e assustadoras que as pessoas fugiram para casa. Humberto também fechou a janela depois do primeiro trovão, mas ficou a ver o que acontecia, abrigado atrás do vidro.
Logo começaram a cair grossos pingos de chuva na janela. Depois, abateu-se um chuveiro sobre a pequena cidade, como se alguém muito zangado tivesse aberto a torneira. Entretanto, os relâmpagos riscaram o céu, acompanhados de trovões cada vez mais fortes e ameaçadores. De repente, o coração de Humberto ficou paralisado de susto. Diante dos seus olhos, um raio riscou o céu e caiu sobre a macieira com um estrondo tremendo. Ela estalou e gemeu enquanto o tronco se fendia em dois. Depois, a chuva refrescou a ferida. A tempestade passou.
Ali estava a árvore que fora tão bela. Oferecia um aspeto muito triste. Ficara tão retorcida e nodosa como a casa. Uma visão estranha. O tronco tinha uma cicatriz que ia até às raízes poderosas.
― Isso dói ― disse Humberto à árvore, dando-lhe uma palmadinha afetuosa.
A árvore suspirou baixinho. E, se as pessoas soubessem que as árvores também choram, talvez Humberto tivesse reparado nas gotas que havia na casca da macieira. 


A primavera seguinte foi quente e cheia de sol. O canto dos pássaros era uma maravilha. As flores cresciam por toda a parte. Só a árvore continuava retorcida, nodosa e triste. Algumas folhas pequeninas tinham nascido e havia algumas flores em redor das quais as abelhas se atarefavam. Mas, embora se esforçasse, a pobre árvore já não tinha forças para florir como no passado. Ainda tinha dores, quando o tempo mudava ou o sol lhe queimava o tronco. Mas isso não era o pior. Ultimamente, as pessoas paravam outra vez a olhar para ela. Sem coração, miravam-na e chamavam-lhe “feia” e “nódoa”.
― Aquilo devia ser cortado ― tinha dito uma mulher, e um homem respondera que aquele era um bom local para um parque de estacionamento ou, pelo menos, para um relvado agradável, se a árvore não estivesse lá.
A árvore ficava cada vez mais triste. As lágrimas corriam pelos novos rebentos, tornando-os cada vez mais fracos. Humberto irritava-se com os comentários das pessoas. Gostava da árvore tal como ela era. Observava as aves a esvoaçar nos ramos e, à noitinha, dava-lhe palmadinhas no tronco.
― Fora daqui! ― gritava furioso, perseguindo com uma vassoura as pessoas pasmadas e surpreendidas.
No entanto, não servia de nada. Apareciam sempre outras pessoas com comentários desagradáveis. Um dia, montou na sua bicicleta ferrugenta. Os vizinhos ficaram espantados com o sorriso que ostentava no rosto. Algumas horas mais tarde, regressou carregado. Foi a correr ao barracão buscar uma pá e começou a cavar energicamente junto ao tronco da macieira. Só parou quando já tinha uma cova bem funda. Aí plantou uma pequena macieira delicada, que mal lhe chegava à altura da barba. “Assim, pelo menos, vamos ficar livres daquela árvore,” pensaram as pessoas. Mas Humberto sorriu malicioso, cobriu as raízes da macieira com terra, regou-a muito bem e foi arrumar a pá.


Passaram muitos anos. Primaveras, verões, outonos e invernos, uns atrás dos outros. Humberto transformara-se num velho curvado, que se sentava satisfeito à janela. A pequena macieira crescera tanto e estava tão carregada de frutos que Humberto não conseguia comê-los todos sozinho. A velha árvore retorcida continuava no jardim. Protegida pelos ramos da árvore jovem, vivia sossegada e contente.
Bastavam-lhe as poucas folhas e rebentos que corajosamente produzia todas as primaveras. Sorria secretamente sempre que uma criança roubava uma das suas maçãs, que já há alguns anos eram enrugadas e pequenas. As pessoas continuavam a passar apressadamente, tratando da sua vida. Já ninguém ligava às duas árvores. Contudo, de vez em quando, alguém parava e contemplava-as com satisfação.
Numa tarde de outono, a árvore sentiu inesperadamente o toque familiar de uma mão. O velho Humberto caminhara silenciosamente até ela e murmurara-lhe qualquer coisa. A árvore acenara em resposta. Também tinha sentido. O ar cheirava a neve. O inverno estava à porta. Era tempo de repousar. Enquanto os primeiros flocos de neve dançavam na janela e Humberto estava deitado na cama, a árvore, lá fora, também adormeceu. E assim, dormindo sossegados, ambos sonhavam com a primavera.
Bruno Hächler
Humberto e a Macieira
Porto, Ambar, 2000

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