Nos
arredores de uma pequena cidade viveu em tempos um homem. Chamava-se
Humberto. Humberto era um homem simpático, de olhos bondosos e uns
óculos muito pequeninos pousados no nariz. Os seus caracóis castanhos
pareciam a lã de uma ovelha. Morava numa casa velha e torta que se
escondia tímida, quase envergonhada, por detrás de um belo jardim. No
jardim, num prado verde e florido, havia uma macieira.
Todas
as manhãs, quando se levantava, Humberto maravilhava-se com a beleza
da sua árvore. Ao fim da tarde, quando regressava do trabalho,
sentava-se durante horas a ver os pássaros na copa da macieira. Na
verdade, devemos dizer que não é nada aborrecido estar a observar uma
árvore. Algumas são verdadeiras artistas da mudança.
Na primavera,
vestem-se de mantos floridos e estendem os ramos para o calor, enquanto
as abelhas laboriosas as procuram em busca de alimento. No verão,
oferecem a sua sombra, enquanto o sol brilha com tanta intensidade que
faz as pessoas andarem de rostos afogueados. No outono, o vento forte
brinca sem descanso com as folhas amarelas, vermelhas e castanhas e
espalha-as pelos prados e ruas, até que o inverno vista a paisagem de
um manto branco.
Quando
Humberto se deitava debaixo da macieira, lembrava-se de como costumava
trepar por ela acima em criança. Muitas vezes se escondera nos seus
ramos, quando a mãe o chamava para almoçar e ele ainda não tinha
vontade de voltar para casa. Quando Humberto contemplava a sua árvore,
sentia uma alegria imensa. Acontecia também que as pessoas paravam
junto à cerca – uma mãe ou um pai com um filho, por exemplo. Por vezes
alguém exclamava:
― Olha, que bonita!
Mas a maioria das pessoas passava apressadamente. Parecia que havia muitas coisas urgentes a fazer naquela cidade tão pequena.
Assim
passaram os anos. Humberto ficou mais velho. A cara ficou coberta de
rugas. O cabelo ficou, primeiro grisalho, depois branco e, com o tempo,
desapareceu como as folhas no Outono. Só a barba continuava a crescer
luxuriante, cobrindo-lhe o queixo e descendo pelo pescoço até ao peito.
Humberto, contudo, continuava feliz, observando horas sem fim a árvore
e os pássaros. Se apanhava crianças atrevidas a roubar maçãs,
limitava-se a rir e gritava:
― Assim é que elas sabem bem, não é?
Os
miúdos, então, fugiam envergonhados. Um dia, contudo, aconteceu uma
coisa horrível. Era mais uma vez outono. O vento forte batia violento
nas janelas e fazia as folhas coloridas girar no ar. Das montanhas em
redor vieram nuvens carregadas de tempestade. Eram tão negras,
sinistras e assustadoras que as pessoas fugiram para casa. Humberto
também fechou a janela depois do primeiro trovão, mas ficou a ver o que
acontecia, abrigado atrás do vidro.
Logo
começaram a cair grossos pingos de chuva na janela. Depois, abateu-se
um chuveiro sobre a pequena cidade, como se alguém muito zangado
tivesse aberto a torneira. Entretanto, os relâmpagos riscaram o céu,
acompanhados de trovões cada vez mais fortes e ameaçadores. De repente,
o coração de Humberto ficou paralisado de susto. Diante dos seus
olhos, um raio riscou o céu e caiu sobre a macieira com um estrondo
tremendo. Ela estalou e gemeu enquanto o tronco se fendia em dois.
Depois, a chuva refrescou a ferida. A tempestade passou.
Ali
estava a árvore que fora tão bela. Oferecia um aspeto muito triste.
Ficara tão retorcida e nodosa como a casa. Uma visão estranha. O tronco
tinha uma cicatriz que ia até às raízes poderosas.
― Isso dói ― disse Humberto à árvore, dando-lhe uma palmadinha afetuosa.
A
árvore suspirou baixinho. E, se as pessoas soubessem que as árvores
também choram, talvez Humberto tivesse reparado nas gotas que havia na
casca da macieira.
A
primavera seguinte foi quente e cheia de sol. O canto dos pássaros era
uma maravilha. As flores cresciam por toda a parte. Só a árvore
continuava retorcida, nodosa e triste. Algumas folhas pequeninas tinham
nascido e havia algumas flores em redor das quais as abelhas se
atarefavam. Mas, embora se esforçasse, a pobre árvore já não tinha
forças para florir como no passado. Ainda tinha dores, quando o tempo
mudava ou o sol lhe queimava o tronco. Mas isso não era o pior.
Ultimamente, as pessoas paravam outra vez a olhar para ela. Sem
coração, miravam-na e chamavam-lhe “feia” e “nódoa”.
―
Aquilo devia ser cortado ― tinha dito uma mulher, e um homem
respondera que aquele era um bom local para um parque de estacionamento
ou, pelo menos, para um relvado agradável, se a árvore não estivesse
lá.
A
árvore ficava cada vez mais triste. As lágrimas corriam pelos novos
rebentos, tornando-os cada vez mais fracos. Humberto irritava-se com os
comentários das pessoas. Gostava da árvore tal como ela era. Observava
as aves a esvoaçar nos ramos e, à noitinha, dava-lhe palmadinhas no
tronco.
― Fora daqui! ― gritava furioso, perseguindo com uma vassoura as pessoas pasmadas e surpreendidas.
No
entanto, não servia de nada. Apareciam sempre outras pessoas com
comentários desagradáveis. Um dia, montou na sua bicicleta ferrugenta.
Os vizinhos ficaram espantados com o sorriso que ostentava no rosto.
Algumas horas mais tarde, regressou carregado. Foi a correr ao barracão
buscar uma pá e começou a cavar energicamente junto ao tronco da
macieira. Só parou quando já tinha uma cova bem funda. Aí plantou uma
pequena macieira delicada, que mal lhe chegava à altura da barba.
“Assim, pelo menos, vamos ficar livres daquela árvore,” pensaram as
pessoas. Mas Humberto sorriu malicioso, cobriu as raízes da macieira com
terra, regou-a muito bem e foi arrumar a pá.
Passaram
muitos anos. Primaveras, verões, outonos e invernos, uns atrás dos
outros. Humberto transformara-se num velho curvado, que se sentava
satisfeito à janela. A pequena macieira crescera tanto e estava tão
carregada de frutos que Humberto não conseguia comê-los todos sozinho.
A velha árvore retorcida continuava no jardim. Protegida pelos ramos
da árvore jovem, vivia sossegada e contente.
Bastavam-lhe
as poucas folhas e rebentos que corajosamente produzia todas as
primaveras. Sorria secretamente sempre que uma criança roubava uma das
suas maçãs, que já há alguns anos eram enrugadas e pequenas. As pessoas
continuavam a passar apressadamente, tratando da sua vida. Já ninguém
ligava às duas árvores. Contudo, de vez em quando, alguém parava e
contemplava-as com satisfação.
Numa
tarde de outono, a árvore sentiu inesperadamente o toque familiar de
uma mão. O velho Humberto caminhara silenciosamente até ela e
murmurara-lhe qualquer coisa. A árvore acenara em resposta. Também
tinha sentido. O ar cheirava a neve. O inverno estava à porta. Era
tempo de repousar. Enquanto os primeiros flocos de neve dançavam na
janela e Humberto estava deitado na cama, a árvore, lá fora, também
adormeceu. E assim, dormindo sossegados, ambos sonhavam com a
primavera.
Bruno Hächler
Humberto e a Macieira
Porto, Ambar, 2000
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