'O que fazia ali Victoria? Como podia o seu caminho passar por ali?
Ele não se enganava, era ela e, possivelmente, também tinha sido ela que passara na tarde anterior, quando ele olhava pela janela'.
Knut Hamsun, Victoria
A mala de Noé
Enquanto eu vivia em Portugal, recebia,
com bastante regularidade, artigos de jornal em norueguês que Noé teimava em
enviar-me. Após a minha mudança para West Hampstead, em Londres, continuou a
fazê-lo, embora lhe repetisse que era inútil porque eu desconhecia essa
língua por completo. Dizia-me que há sempre maneira de se conseguir o que se
deseja, bastando arriscar e persistir. Desgastante insistência, no contexto em
que me encontrava.
Decidi ir para Londres porque
queria mudar de vida. Emigrei numa idade em que já pouca gente o faz. No
início, tive muitas dificuldades linguísticas que fui superando a pulso. Muitas
vezes, esperava pela noite para chegar a casa e chorar. Ficava mais aliviada e
as lágrimas limpavam-me a alma para o dia seguinte.
No fim de contas, arrependi-me de
lhe ter mandado a minha nova morada. Tentava ser compreensiva e generosa, mas a
teimosia dele para passar comigo uma temporada em Londres deixava-me irritada. Tinha
decidido viver sozinha e assim queria continuar. A experiência do meu casamento
tinha sido desastrosa. Daí o desejo de mudança de país e de vida. Noé era meu
primo e tinha idade para ser meu pai. Contudo, não era por isso que eu não
queria recebê-lo, mas porque seria um estorvo na minha vida. Ele não compreenderia,
por certo, alguns dos meus hábitos e a minha necessidade de cumprir horários
sem quaisquer fantasias. Como não tinha outra fonte de rendimento, não podia
falhar nas casas onde trabalhava, porque não faltava quem quisesse o lugar,
sendo facilmente substituída, o que seria fatal para mim.
Noé era impertinente e egocêntrico. Era cansativa a insistência dele para que eu aprendesse aquela língua. Para mim, era exibicionismo egoísta. Apesar de eu desconhecer por completo o norueguês, chegou a sugerir-me que me aventurasse na tradução de pequenos textos porque seria uma forma excelente de passar os meus tempos livres. Comuniquei-lhe logo que esses eram escassos e, quando tal acontecia, aproveitava-os para ler livros que há muito esperavam por vez, para caminhar no parque, para descansar ou para me encontrar com os meus poucos amigos, num pub ou no cinema. E que, nesse momento da minha vida, não me interessava aprender uma nova língua, sobretudo de um país que eu não conhecia nem teria, com certeza, possibilidades de visitar. Continuou a insistir. Chegava a ser provocador e incómodo.
(I)