domingo, 22 de março de 2020

Conversa em viagem para rever Bombaim

- Estou contente por poder rever Bombaim.
- Eu também, mas custou-me ver sobretudo os grandes contrastes sociais.
- E as imensas crianças a viver em extrema pobreza.
- Não é de estranhar a constante perseguição que fazem aos turistas.
- Nem as raparigas com crianças ao colo e a tocar nos braços dos estrangeiros, pedindo-lhes esmola.
- E eram incrivelmente bonitas nos seus saris coloridos e com os cabelos negros.
- Assim como os seus olhos e os das crianças.
- Que brincavam nas ruas, apesar das péssimas condições.
- Tudo o que víamos era fascinante e arrepiante ao mesmo tempo.
- E, bem perto, os hotéis de luxo onde só a casta privilegiada entrava.
- E os milhões de turistas vindos de todo o mundo.
- Tal como nós já fizemos.
- Vamos então recomeçar a viagem?
- Sim, já abri o computador e pus o filme.
- 'Quem quer ser bilionário'?
- Neste momento, quero é manter a saúde.
- Falo do filme que vamos ver, de Danny Boyle.
- Desculpa, bora lá, então.



Conversa à beira do cinema

- Mãe, estás ocupada?
- Vou ao cinema, mas diz, filha, diz.
- Vais ao cinema?!!!
- Sim, filha, já me organizei. e vou ao cinema.
- Estás a brincar.
- Vou ver o Casablanca. Quero ver o filme na totalidade.
- E onde é o cinema, mãe?
- Aqui na cozinha, filha. O telemóvel está sem som, está tudo limpo e já fiz café.
- Mãe, então faltam as pipocas!!!
- Não, filha, nunca gostei de ouvir roer e no filme que vou ver não falta nada!

sexta-feira, 20 de março de 2020

Afinal, há coisas no quintal


Muitas vezes, nesta altura do ano,  parece que não há quase nada no meu quintal. E ainda menos este ano.
 As favas e as ervilhas ainda não deram fruto, as couves estão espigadas e cheias de flor, o alho francês não está maduro, os espinafres só aparecem aqui e ali, a salsa está miudinha...
Pois bem, com esta pandemia e para não ir supermercado, tenho colhido o que vejo no quintal. E, curiosamente, tenho encontrado o suficiente para cada refeição. 
De facto, quando há escassez, aprendemos a aproveitar as coisas, bem melhor do que quando se pode sair de casa à vontade e o tempo é de mais abundância. 
Hoje apanhei pequenos espigos de couve, suficientes para uma ou duas refeições.
Amanhã volto lá, porque, afinal, há coisas no quintal.



quinta-feira, 19 de março de 2020

'Pronto. Três dias de escola sem alunos...'


Hoje tive acesso a este texto, de que gostei muito, que Ana Catarino publicou no facebook.
Mostra bem a ligação que existe entre professores e alunos, tantas vezes desconhecida ou não reconhecida.
Reitero, por isso, o que afirmei no post 'Eles merecem o nosso aplauso'.
Quando 'tudoficarbem', todos que trabalham para o bem comum, como os professores, vão, naturalmente, ser mais valorizados.
E é bem necessário, porque a Educação é, cada vez mais, um bem essencial para a Humanidade.
Mas, para já, 'fiquememcasa'!


'Pronto. Três dias de escola sem alunos foi o suficiente para confirmar que EU, para ser professora (e me sentir professora), preciso dos alunos à minha frente, vê-los, ouvi-los, sorrir-lhes, ralhar-lhes...
Não gosto (arrisco dizer que ninguém gosta) desta escola, frenética, absorvente, burocrática, que não nos deixa tempo nem disponibilidade emocional nem paciência para os alunos.
MAS são eles quem mais importa.
Passamos a vida a ralhar que não fazem os trabalhos, que não estudam...
Mas, afinal,  importam-se! Estão a enviar as tarefas resolvidas, apesar dos apesares! Os que podem enviam em word (ou em formatos que eu nem sabia que existiam!). Os outros resolvem no caderno, fazem fotografia e enviam! Afinal, importam-se! Afinal, querem saber!
E eu estou com saudades!
Talvez eles também estejam com saudades!

Ana Catarino

#vaitudoficarbem
#fiquememcasa'

Dia do Pai - 19 de março


Postal enviado pelo Clube das Histórias


'Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela.
O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa.
Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamento. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrespou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário de todas as direções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
– Pai!
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue.
A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim.
Essa foi uma vez.'

Mia Couto, Contos do Nascer da Terra


Eles merecem o nosso aplauso


Embora já não esteja no ativo, acompanho de perto o trabalho dos professores, através de amigos e familiares. 
Depois do recente fecho das escolas, pelos perigos de contágio do coronavírus em aglomerados, os professores continuam a desempenhar, em casa, múltiplas tarefas com e para os seus alunos, de acordo com as instruções do Ministério e da direção da escola onde exercem funções.
Através de plataformas e de meios eletrónicos, enviam tarefas sobre as matérias do programa, para os alunos realizarem em casa, podendo, assim, continuar a desenvolver e a aferir conhecimentos.
Esses trabalhos são depois corrigidos e reenviados aos alunos, com propostas para os melhorarem.
Para além disso, os professores corrigem testes, transmitem os dados através de plataformas, etc.
Trata-se de um trabalho quase invisível para muitos que não têm filhos em idade escolar, mas que é essencial. Sem ele, os jovens ficavam a saber menos. E, a nível mais imediato, sem essas tarefas, os jovens dificilmente aguentariam ficar em quarentena. E as famílias teriam muito mais dificuldade em retê-los em casa.
O trabalho dos professores cabe, portanto, no teletrabalho, mas com dezenas e dezenas de destinatários - que nem sempre dispõem dos meios informáticos necessários.
Ao longo desta pandemia, os profissionais de saúde têm tido o merecido e justo reconhecimento geral.
E muitos outros profissionais merecem também o nosso aplauso, porque permitem o acesso a bens essenciais, sem os quais esta crise seria insuportável.
Os professores, a trabalharem nas suas casas, com e para os alunos à distância, estão também a prestar um serviço essencial ao país, a nível imediato e também a longo prazo.
Por isso, os profissionais da Educação, nomeadamente os professores, merecem o nosso justo aplauso.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Pedro Barroso - 1950/2020

Ficam as canções. Felizmente!

Haja saúde e a quarentena não desilude!

O tempo de pandemia que estamos a viver é difícil - talvez o mais difícil que muitos de nós tiveram ao longo das suas vidas.
Todos os gestos que fazemos, cada atitude que tomamos pode influenciar quem está à nossa volta. Para o bem e para o mal. E a cadeia pode ser interminável.
Esta crise imensa e global reafirma, sem qualquer contestação, que o papel de cada um é fundamental por onde passa, seja onde for. Seja quem for. Tenha a idade ou estatuto social que tiver.
Felizmente, os seres humanos, de uma maneira geral, têm uma grande capacidade de adaptação. 
No espaço de horas, ouvindo todos os alertas, deixámos de dar beijinhos, apertos de mão, abracinhos... 
Sem abrandar, felizmente também, os afetos tão necessários à vida de todos. O whatsapp e outras redes (que não tenho) facilitam a interação e partilha de muitas preocupações, mas também de motivos de esperança. E de bom humor, que também é fundamental. E de reafirmar que estamos juntos, apesar de cada um estar em sua casa.
E, apesar de haver sempre tantas coisas para fazer lá fora, a grande maioria das pessoas pode e deve ficar em casa. E o que parecia muito importante e urgente, em muitos casos, deixou de ser prioritário. 
E, num momento de mudança de ritmo das nossas vidas, também muita coisa em casa pode ser reorganizada.
Tenho uma amiga que diz que vai pôr muitas coisas em ordem, o que não conseguia fazer há muito tempo.
Por mim, vou tentar ler mais e também arrumar gavetas e prateleiras. E ouvir música. E ver uns filmes. E ver ou ouvir notícias. E passar a ferro. E cozinhar um pouco a mais para congelar e ter para a família. E regar os vasos. E lavar cada vez mais e melhor as mãos...
Mas também quero olhar pela janela e ver as árvores. E o meu quintal. E as pessoas nas varandas. E os amigos a dizerem-me adeus. E olhar as cores incontáveis do céu. E espreitar as estrelas...
Haja saúde e a quarentena não desilude!



João Gil & Ana Mesquita - Memórias de um beijo


Agora, que muitos de nós podemos/temos de ficar em casa, sabe bem ouvir música, como a de João Gil, um músico que muito aprecio. Os desenhos de Ana Mesquita aumentam ainda mais a beleza partilhada. 

terça-feira, 17 de março de 2020

Conversa em dia de aniversário e em tempo de vírus


- Filha, parabéns!
- Obrigada, mãe. É melhor não nos encontrarmos hoje.
- Tenho flores bonitas para ti. Bem as mereces.
- Mãe, podes guardá-las? Desinfeta o que for possível e depois lava muito bem as mãos.
- Claro. Vou pô-las numa jarra e bem à vista. São lindas.
- Não te esqueças também de lavar as superfícies onde as pousaste.
- Não, filha, não me esqueço. Feliz aniversário.
- Bem diferente do que estava à espera.
- E quem estava à espera de tudo isto?!

segunda-feira, 16 de março de 2020

domingo, 15 de março de 2020

Felizmente, há flores!





E pensar que podia estar em Londres

Há muito que estava prevista uma ida a Londres esta semana. Celebrávamos um aniversário e estávamos todos juntos. Como acontece sempre naquela cidade, havia exposições, bonitos pubs à escolha para o dia de anos, tantos lugares para percorrer e olhar...
E já tinha feito uns frasquinhos de compota de abóbora de que a Clarinha gosta muito.
Pois bem, tem sido o que se sabe com o Covid 19 e que ninguém ainda tinha visto na sua vida. E desistimos, obviamente, da viagem, para nos protegermos todos uns aos outros, confiando que haverá outras marés mais calmas. Ainda que pareçam demorar.
Felizmente que nós, humanos, temos uma grande capacidade de adaptação às novas realidades. Sobretudo quando são explicadas com verdade e honestidade como parece estar a acontecer. Talvez por defeito meu, desconfio quase sempre dos discursos de políticos, de banqueiros, de altos magistrados... Quando aparecem nas televisões, muitas vezes, dou comigo a tentar ler-lhes no rosto e nos gestos possíveis mentiras ou apenas bocados da verdade.
Agora, quando vejo e oiço as conferências de imprensa, sobre o Coronavírus, com a dra Graça Freitas e a ministra da saúde, confio nos dados transmitidos e procuro seguir as regras que dizem ser necessário levar a sério. E é bom que tal aconteça porque a confiança é motor para boas práticas.
No entanto, ninguém está imune a apanhar a doença. Se tal acontecer, no meu caso, será melhor cá. Não quero pensar que podia estar em Londres.



sábado, 14 de março de 2020

'Fique em casa'

Já não me lembrava de passar um dia inteiro em casa, como aconteceu ontem.
Li artigos de jornais que tinha separado e esperavam há bastante tempo e passei largas horas no computador a ler e a corrigir umas histórias que tenho entre mãos (serem publicadas já é mais complicado porque os autores desconhecidos também estão constantemente de quarentena!!!!).
Confesso que gostei do dia. Não fora saber do corona, aquele vírus democrático e terrível que pode atacar todos os humanos de forma quase inesperada. Daí o fecho das escolas, de Serralves, da Casa da Música, da Lello, dos Clérigos...
De facto, o que dava motivo a muitas anedotas agora está a ser levado mais a sério por muitos. No entanto, ontem a televisão mostrava a Ribeira do Porto com esplanadas cheias. Dizia-se serem turistas. E será que pelo facto de estarem de férias ficam cegos e surdos, não veem ou não ouvem as notícias?! Não se apercebem do que se passa no mundo? Ou são dos que pensam que o mal só aos outros acontece?
O mesmo não se passa, felizmente, noutros sítios turísticos do Porto, como o tabuleiro de cima da ponte Luís I, onde ontem não havia ninguém, sendo essa imagem mostrada num dos jornais desta manhã.
O tempo que estamos a viver implica a aprendizagem de coisas muito simples e práticas mas que podem proteger a nossa vida e a dos outros.
Sabemos que muitas pessoas trabalham obrigatoriamente fora de casa porque têm de ganhar a vida e há setores que não podem encerrar, como a área da saúde, alimentação, etc.
E só lhes temos de agradecer o esforço.
Quando tal não acontece, o melhor é seguir o que diz o título de um outro jornal de hoje: 
'Fique em casa'.




sexta-feira, 13 de março de 2020

Cotovelinhos!

Hoje, mandei uma mensagem a anular uma marcação que tinha feito. Preferi ficar em casa, porque não era urgente e a proteção do coronavírus assim o exige, se possível.
Tal como agora é comum fazer-se, ou melhor, como era comum fazer-se, preparava-me para mandar um beijinho no final, atendendo à confiança mútua, mas logo pensei que era melhor escolher outra forma de despedida.
Mas o que poderia ser? 
Não pôr nada parecia frio; beijinho, não se pode dar e eu gosto de ligar as palavras aos atos; abraço também não porque temos de manter pelo menos um metro de distância da pessoa com quem falamos.
Lembrei-me então que agora a saudação é feita muitas vezes com o toque dos pés. Porém, não se pode dizer 'pezadas' ou 'pontapés', como se dizia 'beijinhos'. Em presença, pode ser pertinente tocar com os pés do nosso interlocutor e até ter piada, por escrito, podia até não ter piada nenhuma.
Como também se está a adotar o toque com os cotovelos, a forma que me surgiu foi esta: cotovelinhos!!! 
Num presente, que se quer com futuro, temos mesmo de mudar. Sem perdermos, se possível, alguma graça para que a desgraça não aumente. 



quinta-feira, 12 de março de 2020

Conversa com ou sem abraços em tempo de vírus

- Hoje, não deixei que a Maria me abraçasse.
- Claro, tal como deve ser.
- Mas ela é uma aluna diferente, por isso está no ensino especial.
- E por que ficaste a pensar no assunto? Estás a proteger a tua saúde e a saúde da tua aluna.
- Receio que tenha ficado triste. Até me apeteceu chorar.
- Não te preocupes. Como se fala muito deste assunto, ela vai compreender.
- Não sei e isso dá-me tristeza.
- Professor(a) sofre ainda mais em tempo de vírus!



quarta-feira, 11 de março de 2020

Conversa com vírus e mimos dentro

- Filha, a tia e a avó não vêm esta semana a Londres, como tínhamos previsto.
- Mas eu tenho os postais que fiz para o aniversário da tia.
- Podemos mandá-los pelo correio. Ela vai adorar.
- Por que não vêm, mamã?
- Porque podem ficar doentes ou qualquer um de nós.
- Podem vir na mesma. Se estiverem doentes, ficam na minha cama.




segunda-feira, 9 de março de 2020

Mais palavras (e uma sugestão de viagem) sobre CINCO PALAVRAS de António Vieira, escrito por Manuel Maria

Publiquei o pequeno texto, que abaixo transcrevo, no dia 9 de março deste ano, a propósito da apresentação do último livro de Manuel Maria: Cinco Palavras de Antonio Vieira.
Apesar de termos trocado algumas mensagens, antes e depois da publicação do romance, ontem recebi um comentário do autor que logo publiquei. Como depois desse texto já postei bastantes, volto a publicá-lo agora para a sua visibilidade e do comentário.
Faço-o não pelo facto de ser para mim elogioso, mas por duas razões fundamentais:
- Quando Manuel Maria comunica, fá-lo de forma inteira e com convicção, tal como vive a amizade e pratica valores como o reconhecimento, etc., o que é de realçar.
- O romance é uma belíssima sugestão para os mais variados leitores.

Mais uma vez, Manuel Maria, o meu trabalho foi simples pelo prazer que a leitura me deu e por tudo que pude rever e aprender com a obra. E por todas as viagens que a leitura da obra proporciona.

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Sábado passado foi apresentado - por Dulce Raquel Neves, na Escola Secundária de Gondomar, onde o escritor trabalhou durante duas décadas - o novo romance de Manuel Maria: CINCO PALAVRAS de António Vieira, da Editora Lugar da Palavra.
Curiosamente, o título é formado por cinco palavras, tal como aconteceu na maioria das obras anteriores do autor.
Tive o privilégio de ler o livro antes de ser publicado e logo me apercebi do longo e aturado trabalho de investigação que foi necessário realizar para que a ficção funcionasse de forma séria e rigorosa.
Para além da sedução das histórias que são contadas, situadas no século XVII, em contexto de missões, descobertas, viagens, intercâmbios..., o exercício de escrita é também uma homenagem ao grande orador português. 
Vale a pena ler e dar a ler a obra aos alunos que estudam o Sermão de Santo António aos Peixes e a todos que querem saber mais sobre o pregador, a sua época e que gostam também de boas histórias com a nossa História dentro. E de cruzarem problemas e sentimentos que continuam a fazer parte da nossa vida e da nossa atualidade.

Sobre o encontro de sábado passado e sobre o livro, sugiro a entrada na Carruagem 23 de Vítor Oliveira http://carruagem23.blogspot.com/
Vão gostar da viagem. Melhor era impossível.



sábado, 7 de março de 2020

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado 


Desculpa, Cândida!


De vez em quando, enviava-me uma mensagem, dizendo que tinha feito coisas novas. Fazia-o durante o ano, sobretudo pela Páscoa e pelo Natal, e continuava a fazer voluntariado na instituição onde nos tínhamos conhecido.
Eu ia a casa dela e em cima da mesa estavam compotas, biscoitos, muitos trabalhos feitos a partir de restos de tecido, de rolhas usadas, de botões antigos e de muitos objetos que pareciam já não ter qualquer utilidade nem serventia, mas aos quais ela dava uma vida nova.
Sobre a mesa, havia sempre um pequeno tabuleiro com duas chávenas que enchia de café quente, que bebíamos e acompanhávamos com biscoitos que ela também fazia. E ficávamos a falar muito tempo: dos trabalhos dela e das nossas vidas.
Ela vivia com muitas dificuldades económicas, porque, depois de ter tido cancro da mama, nunca mais tinha podido trabalhar fora, como fizera durante muitos anos, o que implicou redução do salário ao fim do mês.
Porém, em casa, trabalhava muito para ajudar a filha e para pagar as contas. A horta, que cultivava consoante as forças, também ajudava na necessária poupança porque todos os meses a dívida da casa tinha de ser paga.
No final do verão, mandou-me uma mensagem dizendo-me que estava com cancro no pâncreas. Fiquei muito triste, mas respondi-lhe também por mensagem, na esperança que vencesse esta doença como ia vencendo a anterior, assim como os muitos problemas familiares. Sempre com um sorriso de animada e corajosa esperança.
Mandei-lhe uma mensagem antes do Natal, mas não me respondeu. Fiquei apreensiva.
Soube hoje que faleceu no final de dezembro. Tive muita pena e remorso por não ter ligado, em vez de ter enviado mensagem. Talvez ela tivesse ainda podido falar.
 Não lhe prolongava a vida, por certo, mas era capaz de a mimar. E a Cândida precisava disso de certeza.