quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Estrelas



O homem está na lama e os olhos nas estrelas
Shakespeare

Ouvir Estrelas
Ora ( direis ) ouvir estrelas!
Certo, perdeste o senso!
E eu vos direi, no entanto
Que, para ouvi-las,
muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto

E conversamos toda a noite,
enquanto a Via-Láctea, como um pálio aberto,
Cintila.
E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas?
Que sentido tem o que dizem,
quando estão contigo? "

E eu vos direi:
"Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e e de entender estrelas

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Hoje

Cézanne
Encontraram-se por acaso. Ele estava como sempre estava: contestatário, crítico, mordaz…
Os professores da faculdade onde entrara revelavam pouca vontade de dar o seu melhor. Referiu o que não gostava. E a cadeira que o agarrava mais.
Ela olhava-o, vendo o ex-aluno do secundário a escrever poemas que sabia não ganharem alguns concursos, a contestar conteúdos lecionados; a revoltar-se com malabarismos entre o dizer e o fazer; a argumentar sobre o estado do mundo…

E a voz da julgada experiência falou: para além de tudo, tens de pensar na tua vida e no teu futuro.
Pois, e o presente?

Cais



 Monet

Ténue é o cais
no Inverno frio.
Ténue é o voo
do pássaro cinzento.
Ténue é o sono
que adormece o navio.
No vago cais
do balouço da bruma
ténue é a estrela
que um peixe morde.
Ténue é o porto
nos olhos do casario.
Mas o que em fora nos dilui
faz-nos exatos por dentro.


Fernando Namora, in 'Marketing'

Por Todos os Caminhos do Mundo



A minha poesia é assim como uma vida que vagueia
                                                    pelo mundo,

por todos os caminhos do mundo,
desencontrados como os ponteiros de um relógio velho,
que ora tem um mar de espuma, calmo, como o luar
                                                    num jardim nocturno,

ora um deserto que o simum veio modificar,
ora a miragem de se estar perto do oásis,
ora os pés cansados, sem forças para além.

Que ninguém me peça esse andar certo de quem sabe
                                                    o rumo e a hora de o atingir,
a tranquilidade de quem tem na mão o profetizado
de que a tempestade não lhe abalará o palácio,
a doçura de quem nada tem a regatear,
o clamor dos que nasceram com o sangue a crepitar.

Na minha vida nem sempre a bússola se atrai ao mesmo
norte.
Que ninguém me peça nada. Nada.
Deixai-me com o meu dia que nem sempre é dia,
com a minha noite que nem sempre é noite
como a alma quer.

Não sei caminhos de cor.


Fernando Namora, in 'Mar de Sargaços'

domingo, 11 de dezembro de 2011

Noite apressada


Era uma noite apressada
depois de um dia tão lento.
Era uma rosa encarnada
aberta nesse momento.
Era uma boca fechada
sob a mordaça de um lenço.
Era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso!

Imensa, a casa perdida
no meio do vendaval;
imensa, a linha da vida
no seu desenho mortal;
imensa, na despedida,
a certeza do final.

Era uma haste inclinada
sob o capricho do vento.
Era a minh'alma, dobrada,
dentro do teu pensamento.
Era uma igreja assaltada,
mas que cheirava a incenso.
Era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso!

Imensa, a luz proibida
no centro da catedral;
imensa, a voz diluída
além do bem e do mal;
imensa, por toda a vida,
uma descrença total!


David Mourão-Ferreira, in "À Guitarra e à Viola"

Tangerinas na noite


Calor de inverno


Uma flor no escuro


Hoje lembrei-me de Jacques Prévert



Pour toi mon amour






Je suis allé au marché aux oiseaux
Et j'ai acheté des oiseaux
Pour toi
Mon amour
Je suis allé au marché aux fleurs
Et j'ai acheté des fleurs
Pour toi
Mon amour
Je suis allé au marché à la ferraille
Et j'ai acheté des chaînes
De lourdes chaînes
Pour toi
Mon amour
Et je suis allé au marché aux esclaves
Et je t'ai cherchée
Mais je ne t'ai pas trouvée
Mon amour
Jacques Prévert





sábado, 10 de dezembro de 2011

Na hora de pôr a mesa...


na hora de pôr a mesa, éramos cinco:

o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs

e eu. depois, a minha irmã mais velha

casou-se. depois, a minha irmã mais nova

casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,

na hora de pôr a mesa, somos cinco,

menos a minha irmã mais velha que está

na casa dela, menos a minha irmã mais

nova que está na casa dela, menos o meu

pai, menos a minha mãe viúva. cada um

deles é um lugar vazio nesta mesa onde

como sozinho. mas irão estar sempre aqui.

na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.

enquanto um de nós estiver vivo, seremos

sempre cinco.

José Luís Peixoto, in "A Criança em Ruínas"

Postais

Fiquei motivada a realizá-los pela 
participação no Ateliê de Artes da ESG

Presépio iluminado

Vi-o em casa amiga.
As figuras, o musgo, os carreirinhos ... 
 lembraram-me presépios da minha infância.


quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Depois do adeus


Em busca da luz


Ilusão de ótica


Moeda


S/Cem palavras

Ela passou junto de um sem-abrigo numa zona turística do Porto. Era velho, desdentado, cabelo grisalho. Ele fitou-a com olhos esbugalhados, sorriso de quem não está habituado a pedir esmola, dizendo:
- Uma moeda porque hoje é o dia da Mãe.
Ela olhou-o e sorriu. Podia ser filha dele!
Tirou o porta-moedas e deu-lhe uma moeda.
Ele agradeceu e desejou-lhe um bom dia. Para ela que devia ser mãe. Ele não, não tinha filhos. Para quê? Tinha tido vinte e um irmãos. Pena era ter de viver só.
Guardou a moeda. Tinha vinte. Faltava uma para se levantar dali.

Mãe

Vem ouvir a minha cabeça contar histórias ricas que ainda não viajei! Traz tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!

Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!

Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.


Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!

Poema e pintura de Almada Negreiros (1893-1970)

Ontem...

..., ao fim da tarde, num ateliê de escrita, em Serralves, falou-se e escreveu-se sobre o outro eu que há em nós.
De facto, às vezes, admiramo-nos com as nossas próprias reações: de coragem, de fraqueza, de agressividade, de compaixão...
Por isso, tive vontade de procurar e partilhar alguns poemas sobre o tema.


À noite, vi o último filme de Almodóvar: "A pele que habito" - com António Bandeiras.
Neste  filme, de grande violência, surge um tema que julgo ser recorrente na obra deste cineasta: a mãe.


E, durante muitos anos, no dia 8 de dezembro, era comemorado o Dia da Mãe.
Recorri, de novo, às palavras sábias de um poeta - que consolam/desconsolam por lembrarem que nem sempre temos tempo para nos abeirarmos da voz da nossa mãe. 
Apesar de estar sempre em nós.


Estou além

Não consigo dominar
Este estado de ansiedade
A pressa de chegar
P'ra não chegar tarde
Não sei de que é que eu fujo
Será desta solidão
Mas porque é que eu recuso
Quem quer dar-me a mão
Vou continuar a procurar a quem eu me quero dar
Porque até aqui eu só
Quero quem
Quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem
Quem não conheci
Porque eu só quero quem
Quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem
Quem não conheci
Porque eu só quero quem
Quem eu nunca vi
Esta insatisfação
Não consigo compreender
Sempre esta sensação
Que estou a perder
Tenho pressa de sair
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P'ra outro lugar
Vou continuar a procurar o meu mundo, o meu lugar
Porque até aqui eu só
Estou bem
Aonde não estou
Porque eu só quero ir
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
Aonde não estou
Porque eu só quero ir
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
Aonde não estou


António Variações


Identidade

 Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem inseto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço


Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas