quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Dê-me aí o dinheirinho, devagar, devagarinho...

 

Há mais de vinte dias, perante o espanto do comum dos mortais, que seguiam as imagens e ouviam as notícias, houve aviões da Força Aérea que levaram várias dezenas de inspetores da PJ à Madeira investigar casos de corrupção. A intervenção do Ministério Público era justificada pelos fortes indícios. Houve três detidos, um dos quais o presidente da Câmara do Funchal.

Durante a investigação e nos dias que se seguiram, as televisões da Madeira e do continente transmitiam imagens sem fim. Mostravam, explicavam, referiam branqueamento de capitais, tráfico de influências, recebimento de dinheiros não justificados, etc, etc. de que os detidos eram acusados.

Os casos deviam ser muito graves - a montanha não podia parir um rato - houve demissões e longas audições, já em Lisboa, que demoraram dias e dias.

Os casos de corrupção divulgados eram muitos e eram graves. O Ministério Público pedia a prisão preventiva dos três arguidos. Perante as notícias, era o mais certo, pensava a grande maioria.

O mesmo não deviam pensar os advogados, pagos a peso de diamante, habituados a dissecar as acusações e as leis e a mostrar, airosamente, que, de facto, só os seus  clientes têm razão.

Hoje, ainda sem a decisão se há ou não eleições na Madeira, depois de muitos dias e noites, passado o Carnaval, o juiz decidiu que as portas se abrissem e os três detidos saíssem em liberdade. Para ele, nada havia a declarar contra os arguidos. Tudo explicaram, tudo justificaram. Estava tudo clarinho.

Nem sei se até acrescentou: desculpem qualquer coisinha!

Tudo isto é estranho. Muito estranho. Inquietante até. 

Pronto, o juiz decide, está decidido, mas o povo, no qual me incluo, ficou ainda mais confuso e nada, mesmo nada, convencido.

 

Quarta-feira de cinzas e Dia dos Namorados

Bom dia!

Comecemos pela Quarta-feira de Cinzas. Já aqui tenho dito que a minha mãe era muito religiosa. Tinha até desgosto de os filhos não serem praticantes como ela achava que deviam ser. Vem isto a propósito do dia de hoje que dá início à Quaresma. Quando eu era muito nova, ia sozinha ou com a minha mãe à missa logo de manhã, neste dia. Recordo que sentir a imposição da cinza na testa e ouvir as palavras 'Lembra-te que em pó te hás de tornar' faziam-me uma certa impressão e não alegravam o meu dia. Ainda faltava muito para eu compreender o alcance da mensagem.

Talvez o ritual se cumpra ainda, embora muitas igrejas estejam mais vazias em qualquer dia do ano e da semana. No entanto, quando vejo uma igreja aberta e tenho tempo, entro por uns minutos. Gosto daquele silêncio. Nesses momentos, não sei se penso no 'pó em que me hei de tornar', mas no que posso fazer - ainda que pouco - enquanto isso não acontece.

E hoje, por contraste, também é dia dos namorados. 

Um dia destes, ouvi alguém dizer: Enquanto namorava, nunca houve este dia e tenho pena. Referia-se ao tempo antes de casar. E logo ouviu uma resposta-sugestão: então, conta esses anos e festeja-os agora. És nova e ainda tens tempo. Houve sorrisos animados que também são uma forma de amor.

E, já que comecei com uma recordação, sobre o namoro também as há. Como o namoro que começava ou acabava no dia da festa anual da terra. Era engraçado ver as raparigas em grupo, com as suas roupas novas e sorrisos de meninas-mulheres, com os primeiros saltos altos e meias de vidro, a passar por grupos de rapazes que, sem o dizer, também se tinham esmerado na fatiota. Todas e todos com ar namoradeiro, ainda que tímido.

Agora é tudo diferente. E, em muitos casos, para melhor, acho eu, apesar de todas as balbúrdias e desamores atuais.

E viva o Amor, e quem o vive, também através de tantas coisas belas que fazem e partilham, embora a vida mostre que quase nada é eterno.

 

 

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

É Carnaval e fui lembrar-me do Natal!

 

Embora o Natal já tenha sido há muito tempo, partilho hoje um texto que escrevi e foi publicado na coletânea Lugares e Palavras de Natal, da Editora Lugar da Palavra. Dei-lhe o título 'O brinde'. Já agora, um brinde para todos. E bom Carnaval.



 

O brinde

 

Quando leu  'Com Amor, Feliz Natal’, sorriu e fechou devagar a porta larga com a chave antiga e pesada. Dando passos ligeiros através do alpendre, voltou à cozinha, onde as irmãs a esperavam para a ceia de Natal.

 

Era a primeira consoada sem a mãe, que partira quando janeiro escurecia e gelava os ramos despidos das árvores. A custo, as três irmãs foram preenchendo os vazios deixados pela mãe. Tinham saudades, até das suas lamentações constantes: as pernas doíam, a cabeça pesava, o receio de perder o juízo aumentava...

Em resposta a este lamento constante, as filhas diziam-lhe, com alguma graça e paciência:

- Mãe, se não perdeu o juízo até agora, não é agora que o vai perder!

Tudo fizeram para que a mãe vivesse bem e feliz. E foi longa a sua vida.

 

 Vista de fora, a vida das três irmãs continuava harmoniosa, apesar do visível envelhecimento que, devagarinho e sem tréguas, a todos vai dando rugas e retirando forças. Contudo, a esperança de viver com alegria não abandonava sobretudo Lucília:  que ficara viúva muito nova. Com a morte do marido e sem filhos, regressara à velha casa por insistência da mãe e das irmãs. Inicialmente, seria por pouco tempo, depois, o limite estendeu-se à reforma, mas, como as raízes a prendiam à família e à casa materna, foi-se juntando à cepa que se divide apenas por morte de alguma das partes.

À mesa, conversavam e algumas vezes sorriam. Porém, se os assuntos iam para além dos banais, do relato comentado de vidas conhecidas, das precisões da casa, das necessidades da saúde, o diálogo cessava porque a diferença de opiniões era obstáculo e acabava sempre em azedume ou silêncio com sabor a amuo. Sobretudo por parte de Teresa. Embora as três irmãs amassem a luz dos dias, pairava na casa um mal antigo de família: a solidão. Cada uma sentia-a à sua maneira, mas só falavam do assunto quando os ânimos aqueciam e as palavras saíam afiadas.

 

Eram estes os nomes das três irmãs que viviam na velha casa: Teresa, Lucília e Andresa.

Teresa, a mais velha, era fria e impaciente. Em momentos de tomar decisões, dizia, em tom amargo, que não valia a pena pronunciar-se porque ninguém lhe dava ouvidos nem importância. Em nova, tinha tido uma paixão não correspondida por um colega de trabalho, que lhe deixou desamor para toda a vida.

Andresa, a mais nova, falava baixinho, rezava em voz alta, queixava-se muito da cabeça e erguia com muita frequência os olhos para o céu. Era solteira, tal com a irmã mais velha, e nunca ninguém lhe conheceu qualquer enamoramento. A existir, seria com certeza por santos da sua devoção, cuja vida conhecia ao pormenor.

Lucília, viúva e irmã do meio, era a mais alegre e comunicativa. Porém, muitas vezes, a solidão destapava-lhe as lágrimas, ainda que só lhes desse liberdade quando estava sozinha. Calava saudades, desejos e vontades, que sabia não terem bom acolhimento familiar. O grande - apesar de demasiado breve - amor partilhado com o marido havia sido o maior consolo que a vida lhe oferecera.  

Na infância e juventude, sempre vira os familiares apressados e impacientes. As prementes tarefas não davam lugar a afagos, beijos ou abraços. Chegava a pensar que era invisível.

Assim, ao longo da sua vida, pouco tempo tivera para trocar palavras airosas que procurava nos romances, ainda que, na velha casa, fossem considerados para ociosos sem deveres nem obrigações.

 Não prescindia, contudo, do mundo que cada livro lhe abria.

 

O tempo passava e o Natal estava próximo. Era preciso arranjar os vasos, os canteiros, o alpendre para que tudo se aprimorasse antes do nascimento de Jesus.

 Na ceia, este ano sem a mãe, só as três irmãs estariam à mesa, mas viriam visitá-las as pessoas do costume com as prendinhas também do costume, para agradecer qualquer  ajuda ou gentileza ou para a visita familiar anual.

Teresa quase desesperava pela rotina que adivinhava interrompida. Não gostava do  vaivém da época natalícia. O toque mais frequente da campainha da porta irritava-a e interrompia os afazeres que para ela tinham horas certas.

Não têm noção - dizia e repetia, cerrando os lábios finos e secos.

Na véspera de Natal, para evitar enervamentos de Teresa, Lucília pôs logo de manhã a bandeja,  com o paninho de linho bordado a azul, na mesa da cozinha, foi ao armário da sala buscar os copos fininhos e juntou-os à garrafa de vinho do Porto, para oferecer às visitas. Ao lado, colocou chocolatinhos e biscoitos. E que as pessoas venham, pensava. Com calma e alegria, ainda que soubesse que a demora ou as vozes alegres e estridentes exasperavam Teresa e traziam dores de cabeça a Andresa.

Ao longo do dia, também acautelando impaciências da irmã, Andresa ia arranjando tudo na cozinha para que não houvesse desarrumações nem migalhas na mesa ou no chão, o que tornaria o ambiente cinzento, como o tempo que fazia lá fora.

- Assim, fica melhor - dizia Andresa. E acrescentava, apaziguadora:

- Gosto tanto destes copinhos verdes do enxoval da nossa mãe.

À tardinha  - expressão que sempre usavam para referir o cair do dia -, com a lareira acesa e a panela de ferro cheia de água a ferver, iam fazendo os últimos preparativos para a ceia e para que tudo estivesse no lugar certo quando se sentassem à mesa de consoada. Até um carneirinho do presépio tinha sido ajustado ao musgo  para que não voltasse a cair.

Quando tudo estava pronto, a campainha tocou. Teresa suspirou, dizendo, de mau humor, que as pessoas não têm noção nem horas para nada; Andresa disse precisar de um melhoral - nome que sempre davam ao ben-u-ron - e Lucília foi, lesta, abrir a porta.  Voltou sorridente à cozinha, com uma das mãos a aconchegar um dos bolsos. Perguntaram quem era. Disse que  era um dos novos vizinhos a desejar bom Natal.

As pessoas não têm noção nem horas para nada, repetiu Teresa, e começaram a servir-se, antes que a fumegante travessa cavalinho, com as batatas,  bacalhau e tenras hortaliças arrefecesse.

 

No final da ceia, Lucília, com sorriso aberto, sugeriu que fizessem um brinde. Não disse a razão nem nenhuma das irmãs perguntou.

A lareira crepitava, com chamas rubras renascidas.

No bolso de Lucília, continuava o amoroso postal recebido à porta, que abriu e fechou com a chave antiga e pesada. E que há muito não lhe parecia tão leve.

 

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Hoje o meu neto é bombeiro

 

O meu neto adora carros de bombeiros. Por isso, neste carnaval, o pai fez-lhe um carro de bombeiros, em cartão. Preso por umas fitas nos ombros e com o seu capacete, o menino estava feliz - era um bombeiro.


Para além do sorriso amoroso de avó ao ver as fotos, pensei como os tempos vão mudando em muitas coisas. Felizmente. Ver um pai, com paciência, a fazer um brinquedo para o filho pequenino sabendo que o faz feliz é maravilhoso e permite acreditar que o mundo pode melhorar. Para além de se reciclar e embelezar.

Ainda bem que este tipo de trabalho para dar alegria a um filho deixou de ser raro, como foi durante longos e duros anos. Ver pais e filhos a dialogar normalmente, com amor e verdade, é das coisas melhores que existem, na minha opinião.

E também o é entre os casais. Julgo que, neste caso, ainda há também muito a fazer, para que haja entendimento e não haja violência doméstica. Tantas vezes escondida. 

Não escondida pelos mesmos motivos que o NCPereira - da AD - que anda bem longe das câmaras e microfones para não se ouvirem as suas frases marialvas e extemporâneas sobre as mulheres e os direitos que os cônjuges têm sobre elas, no seu entender, ditas em jeito carnavalesco.

Estava a falar de uma coisa tão bonita e passei para outra muito feia. Acredito, porém, que, no futuro, nesta área familiar (oxalá que não só neste âmbito), os direitos e deveres possam ser de todos e haja mais sorrisos felizes à imagem do que vi hoje no rosto lindo do meu neto. 

 

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Ai, coração!

  

Tenho um pouco a mania de usar emojis nas minhas mensagens de whatsapp, embora às vezes não façam falta nenhuma. 

Um dia destes, usei o coração 💓 para uma amiga de há muitos muitos anos, já não sei a que propósito. Achei que era um miminho, uma forma de dizer que a compreendia, que estava com ela. 

Ora, o emoji do coração no whatsapp parece fazer o movimento do bater desse órgão vital. Uns minutos depois de ter recebido a mensagem, essa minha amiga respondeu-me dizendo que não gosta de receber aquele emoji porque lhe lembra o bater do seu próprio coração e que lhe parece que vai parar. E que mo dizia porque sabia que eu não levava a mal.

Logo reconheci que ela tinha razão. Há coisas que parecem naturais aos outros e a nós fazem-nos impressão. E vice-versa, é claro. Moral da história, deixei de lhe mandar corações e o reparo dela mais me convenceu de que não é preciso gastar tanto emoji, para que sintamos os corações vivos e a bater como se deseja.

 

sábado, 10 de fevereiro de 2024

A cortina ou a dificuldade de dizer que estou feliz!

 

No início da minha adolescência, mudámos para uma casa maior que os meus pais tinham mandado construir, fruto de muito trabalho. Eu estava feliz. Várias coisas me encantavam na casa nova e uma delas eram as cortinas - fininhas, macias que iam quase até ao chão, ao contrário das da casa antiga que tinham apenas o tamanho dos vidros.

Um dia, com um brilhozinho ingénuo nos olhos, disse a uma pessoa de família que veio a nossa casa: estou tão contente, agora posso abrir os reposteiros logo de manhã! Ela olhou para mim e disse-me com ar sério e pesado: já pensaste que o teu pai pode ficar doente?

Foi como se visse a cortina a cair-me ao chão e a janela tivesse ficado escura de repente.

Isto já se passou há imensos anos, mas a imagem, com todas as suas dimensões, nunca deixou de morar na minha memória. Para mais, o que se passa no mundo, perto e longe de nós, muitas vezes é desanimador.

Por tudo isto, tenho alguma dificuldade em dizer que estou feliz, embora, felizmente, haja momentos em que o sinto. E, muitas vezes, por coisas simples que nem fazem história.

Se calhar, já é tempo de abrir essa cortina. Se a fechar, entra menos luz.

 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Será da chuva ou ainda fingimento?

 

Hoje, em dia bastante invernoso, as televisões passaram imagens de Ricardo Salgado a chegar a tribunal, onde irá ser ouvido (Será?). Vinha com a mulher e os advogados. Caminhando devagar, quase arrastava os pés.

Há dias, a mulher do ex-banqueiro dizia que ele já não é nada do que era e que se tornou num filho de que é cuidadora.

Claro que alegava ao estado de saúde do marido, mas a imensidão de pessoas que foram enganadas e lesadas poderão interpretar que já não é o que era, porque seria impossível continuar a enganar ao ritmo em que era considerado 'o dono disto tudo'. E, depois de tantos desvios, roubos e lucros em proveito próprio, é lícito que se pense que no estado físico atual também pode caber fingimento.

Pelo que se sabe, já foram feitas perícias médicas, embora não inteiramente conclusivas.

Para além da complexidade dos casos e das teias maquiavélicas que alguns seres (des)humanos tecem, a justiça continua a ser demasiado demorada. E os advogados destes ditos megaprocessos - quase sempre os mesmos e que devem ser pagos a peso de ouro - têm tempo de sobra, pelo seu traquejo, artimanhas e perspicácia, para arranjar argumentos de modo a que os seus clientes e grandes culpados nunca cheguem a ser verdadeiramente culpados.

Pode dizer-se que vem um dia em que já ninguém acredita nessas pessoas, e que arrastam os pés como qualquer ser mortal, mas, até aí, a árvore de que se apropriaram já ficou sem fruto.

 

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Desculpem o interregno - e pequeno retrato de um parque

 

Vejo agora que já não vinha cá há bastantes semanas. Confesso que já tinha saudades, mas o tempo passa a correr. Porém, a necessidade de voltar já era grande.

Não, felizmente, não me aconteceu nada de grave nem qualquer infortúnio pessoal. 

Mas estou contente por hoje reabrir esta janela. Nada mudará no mundo, mas se houver alguém com um olhar de agrado, fico feliz. Obrigada.

Também foi com bastante agrado que, sábado passado, visitei o Parque Oriental da Cidade do Porto, numa visita promovida pelo Centro de Formação Fapas e aberta a quem nela quisesse participar. O tema, desta vez, está a ser 'Aprender no campo'. 

Partilho algumas fotos que tirei. Escolhi até para cabeçalho uma imagem de um homem que, do outro lado do rio Tinto, cultivava, calmamente, a sua horta.

Gostei da visita guiada e das informações que iam sendo prestadas, tanto pelo vice-presidente da CM Porto, na parte que ao Porto pertence, como pelo Professor Rio Fernandes, da FLUP, na área pertencente ao concelho de Gondomar.

As minhas pernas é que se queixaram um bocadito porque, ao longo da tarde, percorremos uns 10 km.  Felizmente havia paragens para troca de informações e as grandes e belas pedras que o arquiteto paisagista - Sidónio Pardal - escolheu para este parque urbano, ligavam bem o útil ao agradável.

Em conversa, já no regresso, alguém disse que seria útil um pequeno bar para tomar um café, assim como faz falta, pelo menos, uma casa de banho. Logo alguém rebateu que não se pode ter tudo de uma vez. Se calhar, tinha razão. 







Até breve. Obrigada por terem voltado comigo.

 

 

domingo, 26 de novembro de 2023

A pose

 

Num dia dos que há pouco passei em Londres, encontrei-me com uma amiga que tem também um filho a viver em Inglaterra. Combinámos encontrar-nos em Covent Garden. Seria uma boa oportunidade para conversarmos e tomarmos um café. 

Pois bem, cheguei um pouco mais cedo do que a hora marcada. Olha daqui, olha dali, entrei no  mercado, parei diante de uma igreja que anunciava boas ações que a época natalícia vai inspirando, reparei nas esplanadas onde as pessoas pareciam tranquilas e felizes sob o sol daquele dia e, depois, como não sabia de que lado a minha amiga viria, fui ficando em frente ao mercado, onde havia grandes e vistosos enfeites de Natal.

E fui reparando nas poses das pessoas para selfies ou para fotos tiradas por outrem, a puxar sorrisos, abraços, mãos dadas, olhares mais ternos; a arranjar o cabelo, o cachecol porque o dia estava frio, a endireitar as costas, etc.

Nisto, vejo uma mulher ainda jovem acompanhada de dois pequenos cães e a colocá-los no lugar onde mais adereços natalícios havia para os fotografar. Ela trazia um saquinho de biscoitos que lhes ia dando para que não se mexessem e fizessem pose como ela pretendia. Ajeitava daqui, ajeitava dali, punha as patinhas bem alinhadinhas, etc.

Tenho pena de não ter sido ainda mais rápida a registar a imagem, mas, mesmo assim, ainda fixei os fotografados (ou fotografadas, não sei), com faixas vermelhas natalícias, num intervalo curto entre a pose e o prémio de um biscoito. 

Depois, a jovem mulher afastou-se, porque havia mais gente a disputar o cenário. Ela diria, com certeza, que os seus acompanhantes também eram gente. Ou seria uma forma de ela também se sentir assim ou de encontrar um prémio, seja ele qual for, que nenhum humano dispensa.

 







domingo, 19 de novembro de 2023

O brinde e pela rua fora

 

Em julho último, quando estive em Londres, como já contei, fui operada de urgência ao apêndice. A minha intenção era ajudar cá em casa e acabei por ter de ser ajudada. A vida é assim.

Desta vez, tenho podido, felizmente, colaborar no que é preciso. Até já brindámos pela estadia estar a correr bem melhor do que a do verão. 

Pois bem, durante esta semana, já senti muita emoção a assistir  a um concerto de piano, em que a minha neta interveio com saber e muito foco (como agora se diz); fui a Kew Gardens, um belíssimo parque de múltiplas cores, atividades, cuidados e ensinamentos práticos sobre a natureza; entrei quase diariamente no supermercado e na escola primária, onde espero, tal como muitos pais (mais mães) e avós que o portão se abra à hora certa e nós possamos ir buscar as nossas crianças, já li As primas de Aurora Venturini quase todo e tenho andado muito a pé porque não há carro.

E já conheço bastante bem o perímetro, não muito alargado, onde vou circulando no meu dia a dia, bem diferente das minhas ruas natais.

Tenho passado, caminhando, pelas ruas sossegadas cheias de folhas húmidas e amareladas das árvores. E pelo carteiro que diz bom dia e empurra um carrinho com vários sacos vermelhos. E pelo distribuidor da Amazon com a carrinha cheia de  pacotes. E por vendedores risonhos de promessas de vida para eles mais justa na terra e mais feliz no céu. E por velhos a passear os cães dando-lhes tempo e calma para que nem nas necessidades não precisem de pressas. E por jovens de passo rápido e de fones nos ouvidos. E por mães a empurrarem carrinhos de bebé segurando o telemóvel falador. E por pessoas a passarem rápidas como o tempo. E por   Idosas simpáticas  a varrerem as folhas dos canteiros antes de irem andar de bicicleta. E por muitas crianças a dar a mão a familiares, a falar e a sorrir.

E por ruas mais frenéticas de trânsito e comércio sem árvores nem canteiros, onde há pessoas que vivem na rua, que falam alto na rua, que se inclinam para a rua pela magreza e desnorte como o cigarro que quase lhes cai das mãos magras, que falam sozinhas em desatino, uma mulher de olheiras e boca escura em busca de  alguém que a oiça e fale inglês, homens velhos de garrafa de vinho ou cerveja na mão e que caminham como se só soubessem caminhar na contra-mão…

Por lojas aonde só entra gente chique e por lojas onde se pode comprar tudo que faz falta em casas que nunca serão chiques e nas que sempre foram chiques.

Sinto uma grande simpatia por esta cidade tão multicultural também nos sabores, mas não gosto de ver pessoas que de sobra só têm pobreza e solidão. O meu conhecimento da cidade é superficial, porque aqui só venho de vez em quando, e para conhecer é preciso viver e permanecer. Porém, ver, por exemplo, uma escola primária pública com muito bons resultados e cheia de crianças vindas dos diversos continentes é um sinal animador e uma boa lição que é dada sem ser de propósito ou lida em qualquer púlpito mediático.

Está quase a terminar, desta vez, a minha estada nesta cidade tão cosmopolita. Se assim não fosse, talvez a minha filha não a tivesse escolhido para estudar e trabalhar, há já longos anos. Como tantos e tantos e tantos. 


sábado, 18 de novembro de 2023

O homem cheio de pele


Ele entrou no comboio e sentou-se no banco do lado oposto ao meu. Impossível não olhar. Era um homenzarrão. Vestia um casaco de pele, calças de pele, botas de pele e uma carteira de pele. 

Tanta pele, meu Deus, disse eu para os meus botões.

Sei que olhei para aquela pele toda, mas, curioso, não me lembro de lhe ter olhado o rosto.

Se calhar, porque tudo aquilo lhe tinha custado os olhos da cara. Para não falar dos olhos de tanto animal.



terça-feira, 7 de novembro de 2023

Marcas do outono ...

 ... em Kew Gardens, em Londres.

 





segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Silêncios

 O corpo modifica, a voz segue outras planícies; a beleza mantém-se infinita.

  
A música caminha e seduz em qualquer lugar. Tal como o silêncio.


"Quero a Fome de Calar-me

Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único
Recado que repito para que me não esqueça. Pedra
Que trago para sentar-me no banquete

A única glória no mundo — ouvir-te. Ver
Quando plantas a vinha, como abres
A fonte, o curso caudaloso
Da vergôntea — a sombra com que jorras do rochedo

Quero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa
Chaga do pastor
Que abriu o redil no próprio corpo e sai
Ao encontro da ovelha separada. Cerco

Os sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes
A flor — várias árvores cortadas
Continuam a altear os pássaros. Os caminhos
Seguem a linha do canivete nos troncos

As mãos acima da cabeça adornam
As águas nocturnas — pequenos
Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadas

Caem — quero fechar-me e cair. O silêncio
Alveolar expira — e eu
Estendo-as sobre a mesa da aliança"

Daniel Faria, in "Dos Líquidos"

Daniel Faria - 1971-1999

 

 

domingo, 5 de novembro de 2023

Serge Reggiani - Le Déserteur (O desertor)

 
Estas palavras de Boris Vian e cantadas, aqui, por Serge Reggiani vêm-me muitas vezes à memória. Foram escritas em 1954 e, infelizmente, continuam atuais. Muitos soldados são convocados para a luta, ainda que não concordem com os atos que lhes são pedidos, deixando tudo para trás e também a sua vida. 
A canção chegou a ser proibida e visava a guerra da independência da Argélia (1954/1962).
 
 

 
Boris Paul Vian nasceu em 1920, em França, e morreu em 1959.
Foi engenheiro, escritor, poeta, tradutor e cantautor.
 
 
Serge Reggiani nasceu em Itália, em 1922, e morreu em França, em 2004.
Foi ator e cantor. 
 
 

sábado, 4 de novembro de 2023

Que vós é este, senhor presidente?

 

Já é conhecidíssimo o curto diálogo/confronto de ontem, perante as câmaras e microfones, do presidente Marcelo e o embaixador da Palestina em Portugal. O nosso presidente, no seu jeito soberano e descontraído, que o leva a dizer e a desdizer, a afirmar e a explicar, a comentar e a justificar, a acender e a apagar, disse ao embaixador da Palestina: 'Vocês é que começaram a guerra'.

Como o professor tem pensamento bem mais rápido que as selfies, beijinhos e abraços, corrigiu o 'vós' para 'alguns de vocês'. Ainda bem, mas já era demasiado tarde. O 'vós' já tinha sido dito e gravado, ofendendo os palestinianos que não se querem ver confundidos com o Hamas.


Não vou fazer de conta que comento o sucedido, porque não o sei fazer e também comentadores já os há em abundância.

Porém, essa afirmação/acusação fez-me lembrar duas coisas (pareço o Luís Marques Mendes que divide quase sempre em três pontos o seu ponto de vista).

Primeira: quando eu era pequena, jogávamos à macaca no largo, saltávamos à corda, etc. e havia muitas vezes quem fizesse batota e por isso guerreávamos. Ora, às vezes, uma das miúdas, com ares de superioridade, metendo todas no mesmo saco, virava-se para um determinado grupo e dizia como se lhes desse uma lição: 'vocês é que começaram'. Resultado: quem tinha errado ficava-se a rir; quem sentia que a acusação era injusta zangava-se ou ficava com mais um dia estragado.

Segunda: Havia um pai com vários filhos que, de uma maneira ou de outra, erravam, como toda a gente. Porém, havia uns muito violentos que matavam e fomentavam guerras. Ora, o pai, que tinha pouco tempo e pouca paciência, quando aparecia em público, aproveitava para os repreender e culpar. Assim, seria ainda mais amado e uma mais-valia para todos. Porém, os filhos mais violentos e culpados estavam sempre ausentes; presentes estavam os mais pacíficos e eram eles que ouviam o pai a criticar e a generalizar: 'Vocês é que começaram a guerra' e virava as costas, não querendo ver o muro que, entre todos, crescia ainda mais.

 

Bom fim de semana. E que as notícias tragam PAZ.

 

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Chegar, partir, lembrar, esquecer...


 Bom dia!

Acabei de ler o comentário da Bea, no post anterior. E ocorre-me dizer: Vivemos dias de caos, mas, nesse caos que nos atormenta, há também momentos de beleza que nos animam.

Partilho uma canção de Jacques Brel, também referida no comentário, e que fala  de crisântemos, flores  que chegam e partem nestes primeiros dias de novembro.

E, felizmente, a música não é a única maneira de oferecer flores a quem tantas vezes é esquecido.

 

Obrigada pelas partilhas. 

 

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Porque hoje é dia 1 de novembro

 

Desde pequena que oiço: 'estas flores são boas para enfeitar'.

Aqui, o verbo 'enfeitar'  dispensa acompanhamentos quando se sabe que se trata de pôr flores no cemitério. Conheço pessoas que o fazem todas as semanas e ainda passam por lá de vez em quando para acrescentar água se o tempo é de calor. Atualmente, já se recorre muito aos catos e suculentas que duram muito mais do que as flores frescas. Também se veem as frias e hirtas flores de plástico ou as que vão tombando de velhice e secura, porque nem sempre há disponibilidade de tempo nem de dinheiro para comprar flores acabadas de colher. 

A primeira vez que vi um cemitério fora de Portugal -  estava eu com a minha irmã - foi  o cemitério do Père Lachaise, em Paris. Poucas campas lá vi com flores frescas (a não ser nas sepulturas de ídolos com muitos fãs que os visitavam e não os esqueciam); muitas tinham vasos com plantas e em muitas outras jaziam artísticas pedras esculpidas e antigas. Para mim, com os olhos rurais de ver sempre tratar de flores para o cemitério, a ausência delas parecia uma prova de abandono a quem a vida também abandonou.

Agora, é claro que já não penso assim, embora continue a seguir alguns hábitos da minha mãe e das minhas tias. Uma delas dizia que havia mais de cinquenta anos enfeitava todas as semanas o jazigo da família. 

E, quase sempre, com as flores que ela própria cultivava.

Hoje, logo cedo, fui ao cemitério, porque cá este feriado é de celebração dos defuntos. Não havia ainda quase ninguém, crisântemos de muitas tonalidades  reluziam com abundância e o silêncio permanecia. Algumas pessoas chegavam com arranjos de flores ou soltas para serem colocadas nas jarras.  

Por moda, por hábito, por saudade, por homenagem, etc., o cemitério estava mais  bonito. Quem lá está merece-o, com certeza. Muitos dos que o visitam far-se-ão ouvir de muitos modos, onde também cabem as vozes e os sorrisos. É bom quando assim também se festeja a vida. Mesmo tendo na lembrança que o que aconteceu a quem lá fica também um dia acontecerá a 'todos, todos, todos.'


terça-feira, 31 de outubro de 2023

E, camélia puxa camélia...

 

A minha filha mais nova veio visitar a família. Apenas por um par de dias, mas deu para um lanche de abraços mais alargados em tarde de sábado e de forte invernia.

Felizmente,  o domingo acordou uma hora mais tarde e de céu mais sossegado. E assim continuou sereno para um passeio no belo parque de Serralves, onde já havia camélias abertas, tal como algumas já reluzem no jardim da nossa casa.

- Mãe, já há camélias? Em Londres, ainda não vi nenhuma.

E, camélia puxa camélia, falou-se de alterações do clima e da memória que nem sempre  se mantém intacta.

- Filha, já não me lembro se no ano passado as camélias abriram mais tarde ou nesta altura.

E, ao almoço, o apetecido e apetitoso peixe grelhado. Com salada de pimentos. 

- Que saudades eu tinha desta maravilha, disse ela, com o sorriso meigo de quando não está com pressa ou cheia de coisas urgentes para fazer.

Ao fim da tarde, veio de novo a chuva intensa. Sobretudo na hora da despedida. No dia seguinte, a umas duas horas de distância de avião e quase outras tantas de comboio, havia trabalho e escola. No meio de pessoas a partir e a chegar, as lágrimas da minha neta soltavam-se dos bonitos olhinhos claros já saudosos.

No meu regresso do aeroporto, uma densa neblina fechava o horizonte e caía uma chuva persistente. A tarde escurecia cinzenta e a lembrança da cor viva das camélias ia-se-me apagando. As lágrimas da minha neta é que não.

 

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Postais e delicadeza

 

Gosto muito de postais que acho bonitos e com um toque de arte. Sempre que posso comprar alguns cá dentro ou lá fora, faço-o com imenso prazer. Não para os colecionar, mas para os oferecer em momentos como aniversários ou outros.

Talvez por isso, oiço muitas vezes: - Mãe, precisava de um postal. E lá vou eu à caixa onde eles vão morando, para sugerir algum ou dar a escolher. 

Neste momento, o stock está fraquinho. Oxalá, em breve, a caixa dos postais possa ter mais companhia, sobretudo se eu viajar.

Ora, este fim de semana, embora bastante caseiro, chegou-me este postal que tinha sido comprado em Kioto, no Japão. E mais um bloco e mais uns envelopes - desta vez na vertical. Fiquei encantada com todas as ilustrações, com a combinação de cores - de grande suavidade e ligação à natureza. E pela sugestão de belos silêncios do desenho do templo e da figura concentrada da japonesa. 

Até o papel de embrulho era bonito.

E 'delicadeza' logo me surgiu, porque é uma palavra de que também gosto muito, sobretudo de a ver aplicada em tantas coisas do nosso dia a dia - em atitudes em casa ou no trabalho, em pequenos arranjos de espaços, em simples objetos que se produzem, etc.

Mas, atenção, também neste âmbito não sou exemplar. Mesmo assim, penso como seríamos bem mais felizes se houvesse mais delicadeza nas relações humanas e na atenção ao pormenor de muita beleza que nos cerca e que são formas de arte. 

Mas também me interrogo se no mundo atual, em que há tanta guerra, tanta destruição, tanta ganância, tanta fome de bens essenciais, esta preocupação tem razão de ser. E ouso dizer que sim. Pode não resolver muita coisa, mas pode evitar que muitas guerras aumentem, porque 'para pior, já basta assim'.


domingo, 22 de outubro de 2023

Ir ver os aviões

 


Há muito muito tempo, quando havia dias certos para o namoro, o aeroporto do Porto - então Pedras Rubras - era um espaço que escolhíamos para umas horas da tarde de domingo. Havia uma sala grande e com muita gente donde víamos os aviões enquanto lanchávamos.  No tempo atual, isso seria impensável.

Íamos então ver os aviões - agora tão criticados por ativistas climáticos, os que atiram tinta e os que a utilizam para fins mais comuns.

O aeroporto do Porto -  muito mais moderno e de nome Francisco Sá Carneiro - é, para mim, um local de muita alegria, quando, por exemplo, a minha filha e família chegam; um lugar de ansiedade, quando o avião que eu espero se atrasa muito; um sítio de algumas dores de barriga antes de partir; um espaço de regresso após consolos revisitados, etc

Um aeroporto pode representar, de facto, inúmeros estados de alma; para mim, sempre mais tranquilos às chegadas do que nas partidas.

Desde o tempo em que se ia ver os aviões até agora, foi toda uma vida. Os aviões eram bem menos e também o número de pessoas que viajavam. Confesso que ainda sinto algum fascínio quando vejo levantar ou aterrar um avião, embora saiba que não será um meio de transporte sustentável.  Porém, e pondo os pés na terra, muitas vezes, as alternativas são difíceis, porque o tempo perdeu a lentidão de uma tarde de namoro ao domingo, em que se ia ver os aviões.