sábado, 29 de maio de 2021

Elas eram três

 

Elas eram três irmãs e a casa onde viviam valia por várias. Porque era grande, velha, muito exigente de cuidados. Queixava-se, rangendo, de quase tudo. Do chão ao teto. Elas ouviam o ranger e tentavam repará-lo. Quando deixaram de ouvir bem, sentiam as dores da casa que se juntavam às dores dos seus corpos que iam envelhecendo e entorpecendo. Quando as forças estavam mais intactas, às vezes ficavam com sobrinhos-netos que eram  muitos porque a família era grande. Puseram até um baloiço para eles se entreterem. Para além de verem os coelhos, os pintos, correrem na eira, plantarem uma alface...

As três repartiam as tarefas de casa: a cozinha, as roupas, as limpezas, os vasos do pátio, o telheiro, a horta... Só uma conduzia o carro verde e pequeno. Ele era as compras, ele era a farmácia, ele era levar as irmãs à igreja ou ao médico... Que nada faltasse em casa. E que não lhe faltassem estas saídas para tomar um café e ver gente e saber o que se passava e dizer umas graças e ouvir uma anedota... e vir refrescada para casa, a que, por graça, dizia parecer um convento.

No tempo em que não havia os serviços de saúde atuais, enquanto as mãos estavam firmes,  dava injeções a quem lhe pedia. Lá ia ela a qualquer hora com a caixinha das injeções, o frasco do álcool e os fósforos para desinfetar a seringa pelo fogo.

Porém, pela falta de saúde, teve de deixar de conduzir, o que lhe encurtou o prazo para a viagem final.

Ontem, a que em tempos nunca parava, a que saía mais e era mais conhecida pela enérgica alegria, partiu. Foi a última das irmãs daquela casa.

Hoje eu falava dela. E logo ouvi: Oh, que tristeza. Ela deixava-nos andar no baloiço. Era uma alegria. Oh, que tristeza.

12 comentários:

  1. Tudo na vida tem um começo e um fim. A vida humana não é exceção. Um relato muito bem escrito com um final triste e comovente.
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    Feliz fim de semana
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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  2. Bom dia
    Esta publicação fez me lembrar a minha mãe. Também tinha uma caixinha dessas para dar as injeções às pessoas que precisavam, pois não havia centros de saúde. Já lá vão mais de cinquenta anos.

    JR

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    1. Se a tal caixinha fosse vista pelas gerações mais jovens, nem a reconheceriam e ainda bem.
      O meu pai também tinha uma assim e ainda lá está na casa da minha mãe.
      Feliz fim de semana e muita saúde.

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  3. Obrigada. Sim, triste porque a vida se acabou; menos triste porque ficaram boas recordações.
    Um alegre fim de semana e muita saúde.

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  4. Que história cativante. E bem urdida nas palavras, Maria. Julgo que, de certa forma, a alegria é um remédio contra a doença, embora haja maleitas que não fazem caso dela, atacam e levam quem querem. Mas essa senhora deixou memórias boas e, mesmo sem filhos, teve talvez uma vida plena. Duvido cada vez mais que a plenitude se deva a grandes feitos.
    Se haja outra vida, por lá deve andar contente e satisfeita. Se não alegrou muita gente nesta vida. E conquistámos nós memória tão grata?! Hummm...
    Bom domingo, Maria. Por aqui, o dia desirmanou, surgiu farrusco e mais fresco.

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    1. Ela gostaria de ler este comentário, Bea, embora nem soubesse sequer o que era um blogue. Obrigada. Sim, teve uma vida bastante preenchida e sempre com uma graça que começava nos olhos matreiros. A doença fê-la parar e a morte chegou sossegada.
      Era minha tia e madrinha. Tinha mais quatro afilhadas. Eu chegava lá casa e dizia: é a sua afilhada mais velha. E logo lhe via o sorriso engraçado.
      Boa tarde de domingo, Bea.

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    2. Gostei muito do comentário da Bea. Espero que haja outra vida e que nela ela e as irmãs possam andar agora contentes e satisfeitas.

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    3. os comentários da bea são sempre muito bons, mas também gostei muito da tua visita e do teu comentário, Gábi. Obrigada.

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  5. Olá, Mª Dolores, ( não me canso de escrever o seu nome...gosto tanto dele.)
    Esta história das três irmãs fez-me lembrar as Meninas Serra da minha meninice. Também cada uma delas se encarregava da sua função dentro de casa. A diferença é que nenhuma delas tinha carro nem carta de condução. A mais velha, era uma modista conceituada que fazia as roupas das senhoras mais distintas lá da terra, incluindo a esposa do senhor Presidente da Câmara. Nas férias grandes, já perto de terminar os estudos da escola primária, a minha saudosa Mãe pediu à Menina Maria para me deixar ir para lá. Sempre ia ajundando e aprendendo, em vez de andar a brincar na rua - dizia. E fui!
    Até a menina Maria Serra falecer, sempre que eu ia à terra e a visitava, a tratei como Mestra. Ainda hoje, quando dela falo.

    Tivesse eu esse dom admirável de escrita descritiva, como tem a amiga, já teria dedicado um postal às Meninas Serra da minha infância, e não só.
    Desculpe, mas as minhas memórias quando despoletadas, galopam qual cavalo de crina ao vento. :)

    Um beijinho e boa semana.

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  6. Que bom, Janita, obrigada. Começo pelo nome. Nunca tive por ele especial predileção, mas, pronto, é o meu nome. Cheguei a perguntar a razão de o terem escolhido, mas ninguém me soube dizer e deixei de perguntar. Tenho duas afilhadas com o meu segundo nome, não escolhido por mim, mas pelas mães. Uma delas lembra-me muitas vezes que não gosta nada do nome, mas eu gosto muito dela e julgo que ela também gosta de mim. É a vida.
    Que gira história as das Meninas Serra. Nas minhas proximidades e na minha longínqua infância havia várias Meninas assim e muitas delas com muitas habilidades. Também andei a aprender costura numa casa, onde viviam Meninas assim. Apesar de a Mestra ser uma belíssima modista, o meu jeito mal se via tão pouco era.
    Uma das 'minhas' três irmãs, bordava na perfeição.
    Ó Janita, o seu Cantinho está sempre povoado de coisas tão bonitas e tão criativas! Olha quem fala!
    Que bom as memórias galoparem assim! É que eu adoro este galopar. Com vento ou sem ele, também lá vou eu.
    Um abraço, Janita, e um domingo calmo mas pleno.

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  7. Gostei muito do texto e fico com a esperança que um dia, daqui por muitos anos, algum dos meus sobrinhos-afilhados, fale de mim com esse carinho.

    Beijinhos:))

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