quarta-feira, 5 de maio de 2021

As composições


Sempre gostei de escrever e de fazer composições. E, talvez devido a algumas inseguranças, ficava muito feliz quando os professores elogiavam os meus textos. Como também não escrevia muitos, para mim, era um estímulo ouvi-los e faziam-me bem ao ego.

Isto acontecia sobretudo em língua materna e em língua francesa. Contudo, um dia tive de fazer uma composição em francês sobre um dia de inverno numa casa de aldeia. Já não me recordo bem do que escrevi, mas lembro-me de que falei sobre uma lareira cujo 'fumo íntimo' saía pela chaminé.

 A professora achou o adjetivo 'íntimo' muito estranho, escreveu na folha a vermelho que o fumo nunca foi íntimo e repetiu-o em voz alta quando ma entregou. E não é que, passados tantos anos, sempre que vejo  fumo a sair de uma chaminé, em dia frio e de recolhimento, me interrogo se é ilegítimo o fumo significar intimidade.

Uma outra vez, neste caso em língua materna, fiz uma composição sobre um sonho. Quando acabei o trabalho, foi prazer o que senti quando o li e reli. Gostei. Tinha-me saído bem. Para aprimorar a composição, passei-a a limpo várias vezes. No final (naquela altura, ainda não tinha o gosto por finais inesperados), quem estava a sonhar podia, finalmente, ser ave. Terminava com reticências para que o voo fosse mais prolongado. E mais alto, se possível. Para mim, era a composição mais conseguida do ano. Sentia-me quase a voar. Como Fernão Capelo Gaivota.

Com um brilhozinho nos olhos, entreguei a composição ao professor, que era um padre de faces muito rosadinhas. Na aula seguinte, quando ma devolveu, disse-me apenas, sem ter nada escrito nem sublinhado: já fizeste bem melhor!

 

6 comentários:

  1. Confesso que nunca tinha pensado no " Intimo" que pode ter o fumo a sair por uma chaminé. Mas pede reflexão sem dúvida.

    Decerto que a composição em português estava brilhante. O seu professor, lendo, gostando, decerto que sorriu feliz. E, o que fez? "Provocou" a sua imaginação com essa frase, pois conhecendo-a, sabia que, estava na presença de uma aluna iluminada e brilhante, como só assim ilumina e brilha, a luz de uma ESTRELA.
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    Cumprimentos poéticos
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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    1. Olá, Ricardo, obrigada pelas palavras tão poéticas, mas não se me aplicam.
      Fui sempre uma aluna normal, o que já foi muito bom para as circunstâncias.
      E iluminada, muito menos. Ilumina-me a luz do sol, que deve ser para todos, e a luz elétrica, é claro.
      Um abraço, amigo Ricardo, e um fim de tarde bem luminoso.

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  2. Com excepção da professora primária que, sem se manifestar, dava indícios de gostar das minhas composições, nunca alguém me deu elogios por composições. Também não creio que elas os merecessem.
    Quanto às experiências que viveu, Maria, julgo que existam professores muito formatados para determinado modo de escrita e que pouco valorizam a originalidade; falta-lhes a sensibilidade para as palavras. Por exemplo, mesmo sem ter lido a sua composição, a imagem de fumo íntimo, sugere-me muito mais que fumo denso ou um fio de fumo. Todos temos olhos, mas nem todos vemos.
    Bom dia, Maria.

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    1. Obrigada, Bea, mas de certeza que já nessa altura manifestava o amor pela boa escrita. Às vezes, calam-se os elogios e o que é certo é que também aqui não há medida certa: podem fazer falta para compensar outras faltas, ou nem por isso.
      Lembrei-me destas pequenas peripécias talvez por ser o Dia da Língua Portuguesa, embora uma das professoras fosse francesa, língua de que sempre gostei muito. Também gostava dela, mas ficou-me aquela situação, sem qualquer relevo, que, a anos luz de distância, me faz pensar também no modo como, de facto, vemos o mundo, não sendo eu exceção, é claro.
      Um bom fim de tarde, Bea.

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  3. A criatividade muitas vezes não é entendida, o que se aceita tranquilamente quando se é adulto. Mas em criança, uma crítica de um professor pouco sensível pode marcar para sempre uma criança. Felizmente não foi o teu caso, continuas a escrever muito bem e , creio , com gosto!

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  4. Sim, escrevo com muito gosto, Justine. Se não o fizesse, acredita que seria bem menos feliz, apesar de estar muito grata à vida que tenho.
    Um feliz e calmo fim de tarde de primavera, ainda que fresquinha.

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