Nos
anos que antecederam a libertação dos escravos nos Estados Unidos da
América, existiam várias rotas de fuga para os escravos que tentavam
chegar ao Canadá, onde estariam a salvo. Muitas famílias ajudavam os
escravos a esconder-se, alimentando-os e enviando-os para a próxima
família da cadeia de solidariedade. Uma lei proibia a ajuda aos
escravos e quem o fizesse arriscava-se a ser preso e obrigado a pagar
multas avultadas. Mesmo assim, muitos eram os que continuavam a ajudar,
e muitos milhares de pessoas conseguiram, desta forma, alcançar a
liberdade. Esta é uma de muitas histórias sobre o Underground Railroad
que consistia num grupo de pessoas que ajudava os escravos a conseguir
a liberdade antes da Guerra Civil Americana. Desta organização faziam
parte os Quakers, um grupo religioso originário do cristianismo, com uma
forte implantação nos Estados Unidos da América.
Por
volta das cinco e meia de uma manhã de verão no sul do Ohio, a luz já
forte do sol acordara Lucinda Wilson, uma rapariga de treze anos.
Sentou-se imediatamente e, de seguida, ao sair da cama, lembrou-se: “Os
morangos na colina já devem estar prontos para serem colhidos”.
Lucinda tinha vindo a observar com ansiedade a colina coberta de
morangos silvestres. Era com grande alegria que planeava agora
surpreender a família com um cesto cheio de morangos maduros e
deliciosos para comerem ao pequeno-almoço.
Vestiu-se
rápida mas silenciosamente para não acordar a irmã. Lucinda tinha
dormido nessa noite na cama grande, uma vez que a irmã Mary, de
dezassete anos, estava a passar alguns dias com uma amiga numa quinta
vizinha, e Ruth, de quinze anos, dormia numa pequena alcova no enorme
quarto do andar de cima. A casa da família Wilson ficava a alguma
distância da estrada principal, e havia um caminho longo e estreito
desde o portão até à porta de entrada. Como este caminho parecia
demasiado longo, Lucinda decidiu seguir por um atalho em direção à
colina dos morangos, que se estendia ao longo da estrada principal.
Este atalho, que começava junto à capoeira, era praticamente invisível
devido ao crescimento emaranhado dos arbustos.
Lucinda
correu até à rua e começou a subir a colina. Ali estavam os morangos,
vermelhos e deliciosos. Começou a colhê-los rapidamente, mas o fundo do
cesto não estava ainda coberto quando ouviu uma voz a chamá-la da
estrada principal.
Sobressaltada,
olhou para baixo e viu dois homens a cavalo. Não os conhecia e a sua
primeira reação foi de alerta, pois a sua casa pertencia ao Underground Railroad. Estava
certa de que estes homens eram caçadores de escravos. No momento
seguinte, Lucinda viu que tinha razão. O homem que a chamara, de tez
morena e mal-humorado, voltou a dirigir-lhe a palavra:
—
Viste duas raparigas negras a passar por aqui? Duas raparigas de
dezassete ou dezoito anos? Temos a certeza de que elas levam apenas
alguns minutos de avanço.
Lucinda
acenou com a cabeça. Respondeu-lhes honestamente que tinha chegado
nesse instante e que não tinha visto ninguém para além deles. Os
cavaleiros seguiram caminho. Mas Lucinda não pensou mais nos morangos.
Tinha a certeza de que as duas raparigas iriam para sua casa e de que
aqueles homens as apanhariam mesmo à sua porta, a não ser que
conseguisse avisá-las antes. Discretamente, olhou para os caçadores de
escravos para se certificar de que nenhum deles estava a olhar para
trás. Então, precipitou-se para a estrada e desatou a correr para casa.
Em
poucos instantes, estava no terreiro da quinta e entrou em casa de
rompante. Mal abriu a porta das traseiras, ouviu a voz da mãe na parte
da frente da casa. As raparigas já lá estavam, e os homens chegariam
dentro de breves instantes. Sem fôlego, foi ter com a mãe e as
raparigas ao vestíbulo. A porta ainda estava aberta.
— Fechem a porta! Fechem a porta rapidamente! Eles vêm aí! — disse, ofegante.
No
momento em que proferia estas palavras, viu um cavalo a aparecer. A
mãe fechou a porta, trancou-a e olhou desesperadamente em volta, à
procura de um esconderijo para as duas raparigas. Estas choravam
apavoradas, pois tinham a certeza de que seriam arrastadas de volta e
de que nunca mais seriam livres.
— Rápido! Vão lá para cima! — disse Emily Wilson.
Correram
pelas escadas acima e entraram no quarto onde Ruth já estava a
vestir-se. Esta, espantada, olhou para as quatro pessoas que tinham
entrado de rompante.
— Lucinda, veste a camisa de noite, põe a touca e mete-te na cama outra vez — disse a mãe.
A mãe pegou nas roupas de Mary que estavam debaixo da almofada, e atirou-as a uma das fugitivas.
—
Veste isto e deita-te na cama com a minha filha. Fica do lado da
parede, de costas para a porta. Cobre bem a cara com a touca.
As
raparigas obedeceram imediatamente, e Emily Wilson levantou a tampa de
uma arca grande feita de verga, que estava encostada à parede.
Felizmente, estava quase vazia.
—
Mete-te aí dentro — disse ela à outra rapariga, que obedeceu de
imediato e se encolheu de modo a que a arca pudesse ser fechada.
Fez-se ouvir uma forte pancada na porta da frente.
— Ruth, veste o roupão, senta-te em cima da arca e tapa-a o mais possível. Os caçadores de escravos estão quase a chegar.
A
mãe olhou de relance o quarto, para se certificar de que não havia
indícios da presença das raparigas negras, e apressou-se a descer as
escadas para abrir a porta.
— Bom dia, minha senhora! Nós andamos à procura das duas escravas que estão aqui — disse um dos homens.
— A sério!? Como sabe que temos duas escravas aqui escondidas? — retorquiu ela.
—
Porque estávamos mesmo no seu encalço e temos a certeza de que não
passaram daqui. Por isso, vai ter de nos deixar revistar a casa.
— Estejam à vontade! Mas garanto-vos que vai ser uma perda de tempo.
— Veremos! — respondeu o homem.
Começaram
a revistar todas as divisões da casa. Emily Wilson deixou-os abrir as
portas e procurar à vontade até chegarem ao quarto das raparigas. Aí,
pôs-se à frente deles.
— As minhas três filhas dormem aqui e ainda é muito cedo. Peço-lhes que não entrem no quarto.
— Podem estar tanto aqui como em qualquer outro lugar — disse um dos homens. De seguida, abriu a porta e entrou.
Ali
estavam as três raparigas, duas na cama, tapadas até às orelhas, a
outra sentada sobre a arca, de roupão, como se tivesse sido apanhada de
surpresa. No entanto, lá dentro, a fugitiva aterrorizada tremia de tal
modo que Ruth tinha a impressão de que os homens deviam ver a arca a
abanar. Sentou-se o mais pesado que conseguiu e cobriu a arca com o
roupão. Um pouco embaraçados, os homens deram uma vista de olhos rápida
pelo quarto, abriram o guarda-vestidos e, como não encontrassem nada,
saíram novamente, balbuciando um pedido de desculpas.
—
Bem — disse um deles quando saíram do último quarto — parece que
aquelas raparigas, afinal, já passaram por aqui. É melhor
apressarmo-nos e talvez ainda as possamos apanhar.
— Eu avisei-os de que seria uma perda de tempo — disse Emily Wilson calmamente.
De
forma hospitaleira, ofereceu-lhes o pequeno-almoço, o que eles
recusaram de imediato, pois estavam com pressa. Partiram a cavalo, e só
então as raparigas sentiram-se livres para poderem sair dos seus
esconderijos.
—
Ainda bem que decidi ir apanhar morangos para o pequeno-almoço. Ainda
há tempo de voltar lá e encher o meu cesto. Afinal, vamos mesmo ter
morangos para o pequeno-almoço! — disse Lucinda.
As
duas raparigas ficaram tranquilamente em casa durante todo o dia. De
madrugada, uma carroça coberta levou-as para outra casa de Quakers. Daqui,
sem grandes riscos, foram levadas no dia seguinte, pois soube-se que
os dois caçadores de escravos tinham perdido o seu rasto e declararam
que as duas escravas fugitivas haviam desaparecido.
Anna Curtis
M. Clark; E. Briggs; C. Passmore (eds.)
Lighting Candles in the Dark
Philadelphia, FGC, 2001
(Tradução e adaptação)
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