quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Impressões sobre um livro




Acabo de ler O filho de mil homens de Valter Hugo Mãe[1], um livro surpreendente.

O livro tem vinte capítulos, todos com título. A narrativa começa assim: “Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo”. 

Nos primeiros capítulos, as personagens são apresentadas como se fizessem parte de  narrativas curtas e independentes: Crisóstomo, um pescador que gostaria de ter um filho; Camilo que encontra um pai em Crisóstomo; uma anã “de quem todos se apiedavam”, mas que cai na desgraça das vizinhas quando se apercebem que aquela tinha uma cama larga e grande; Maria, a “mãe da mulher enjeitada” que é a Isaura, cujo nome é por muitos muito apreciado;  Matilde, a mãe de Antonino que “parecia uma menina nos sentimentos”; Rosinha, a caseira de Matilde que casa com um velho de quem queria apenas a fortuna; Mininha, a filha de Rosinha, que é quase sempre tratada por “cria” …

Crisóstomo é o elo de ligação mais forte entre todas as personagens, porque consegue despir-se de preconceitos, olhando as pessoas no seu desejo de plenitude e de felicidade. É alguém que sabe olhar o mar e descobrir quem o sabe olhar também.

A linguagem é por vezes crua (por exemplo, no modo como os vizinhos tratam Antonino que é diferente de muitos homens), mas o texto é profundamente poético. De salientar que não existem pontos de interrogação. O verbo “perguntar”e outros resolvem o problema. “A miúda perguntou: ó mãe, o velho dos campos é meu pai.” P.167.

Há frases que apetece reler e sublinhar: “nunca cultivar a dor, mas lembrá-la com respeito, por ter sido indutora de uma melhoria, por melhorar quem se é.” P. 213; “Cada filho somos nós no melhor que temos para dar. No melhor que temos para ser”. P. 227; “ Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós”. P.237.

Os temas abordados são diversos, mas a busca da outra parte que completa o ser humano, que o liberta da solidão e o ajuda a transformar o mundo parece-me ser uma linha recorrente no romance.

Valter Hugo Mãe nasceu em 1971, estando, portanto, na casa dos quarenta anos. Tal como Crisóstomo! Haverá coincidências?




Nota: Neste momento, vejo VHM, no Porto Canal, à conversa com Manuel Jorge Marmelo. Felizmente há programas em alguns canais com escritores e/ou sobre livros, embora sejam pequenos oásis num enorme deserto.




[1] Valter Hugo Mãe, O filho de mil homens, PRISAEDIÇÕES, 8º edição, abril 2013.


4 comentários:

  1. Li "A máquina de fazer espanhóis" deste autor e achei que era um GRANDE livro. Pelos vistos, a matéria de que é feita a obra deste autor representa-nos muito bem naquilo que temos de (des)humano, tornando por isso os seus romances excelentes e intemporais, tal como acontece com Saramago, Garcia Marquez ou Vargas Llosa... Além disso, VHM tem um talento criador e um humor surpreendentes. Adoro e vou ler este livro em breve.
    MJSantiago

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  2. Obrigada pelo sugestivo comentário.

    De facto, VHM revela a capacidade de ver a alma humana de forma muito clara.

    Ainda não li o livro que refere mas quero fazê-lo quanto antes.

    Um abraço
    M.

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  3. Gostei muito deste livro, pelas razões já elencadas e não só.
    Do WHM, li "O resto da minha alegria...", um pequeno livro de poesia, datado de 2003, ou seja, ainda o walter hugo mãe não era o WHM! Está autografado e dedicado à minha pessoa e é estranho agora ver ali o nome Isaura depois de ter lido "O Filho de Mil Homens".

    Dessa obra deixo aqui este poema:

    "perguntem-lhe por mim e
    se pode vir
    para recolher o
    meu corpo no fim
    só bulido pelo vento

    e se o vento é conjunto
    de pássaros invisíveis ou seres
    tão claros , escondam que sou
    cruel, que fico a debulhar
    anjos como flores para saber
    se bem ou mal me quer"

    Bonito! Não?

    Também li "O apocalipse dos trabalhadores", de que também gostei muito, mas nem tanto como este que agora está em apreço.

    As personagens que moram em "O filho de mil homens" são arquétipos (pelo menos foi assim que as senti) e penso que esta será em parte uma justificação possível para a recuperação das maiúsculas iniciais nos nomes próprios, quer os das personagens quer o do próprio autor. Em contrapartida, Deus fica reduzido à sua insignificância, a uma minúscula, porque o divino aqui mora no coração, na alma dos homens! São Eles que se auto(re)constroem, auto(re)criam.
    Seria interessante também uma abordagem desta obra baseada no significado dos nomes que as personagens vestem.

    Crisóstomo terá alguma relação com o santo do mesmo nome?
    Segundo a Wikipédia, no seguinte excerto "...Pela sua inflamada retórica, ficou conhecido como Crisóstomo (que em grego significa «boca de ouro»).
    Como verdadeiro pastor, tratava a todos com cordialidade, (…) em particular nutria uma ternura especial pela mulher e dedicava uma atenção particular ao matrimônio e à família" e "convidava aos fiéis a participar na vida litúrgica, que fez esplêndida e atrativa com criatividade genial". Mas "apesar de sua bondade (…) se viu envolto em frequentes intrigas políticas, por suas contínuas relações com as autoridades e as instituições civis (…) e foi condenado ao exílio", tal parece ser possível!
    E Isaura? Segundo algumas fontes, o nome significa aquela que é igual (semelhante) ao ouro, mas também pode ser apenas um nome derivado do topónimo Isauria.

    Enfim... muito há ainda para dizer sobre este filho de mil homens que é o Crisóstomo, ou seja, o que em nós (re)cria o mundo, o eu, os outros...

    Continuação de boas leituras e um beijinho para todos os que este cantinho visitam.

    IA

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  4. Sempre bonitas e profundas as tuas palavras.
    Obrigada pelo livro de VHM, porque foste tu que mo emprestaste.
    Com alguma subjetividade, vejo muitas aproximações entre Crisóstomo e o autor do romance.
    Há poucos anos, a Oficina da Língua da ESG convidou-o para uma "Festa da Língua". Nesse tempo, ele não usava maiúsculas. Respondeu a todas as questões com uma amorosa simpatia e elogiou um poema de um aluno, tratando "todos com cordialidade". Julgo que foi um bom momento/uma boa memória que ficou.
    Quanto à poesia de VHM, li pouquíssimo. Vou ler o livro que também me emprestaste.
    Continuação de boas e partilhadas leituras.
    Um beijinho
    M.

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