Era proibido
conviver
Era proibido
viver
Era proibido
ser feliz
Só se podia
poupar
mal gasto
Os vinhos
e os perfumes
não se usavam
apodreciam
nas garrafas
Ele era
o nosso pai
e o nosso padrasto
Ele morreu
E em herança
deixou-nos
mais pobres
Deixou-nos
o medo
de ser pobres
Somos mesquinhos
e picuinhas
Adília Lopes
(poema do livro "Ovos", in Dobra - poesia reunida: 1983-2007, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009
Gostei e gosto muito da Adília (assim só, como se já a conhecesse há muito tempo!)!
ResponderEliminarGosto da sua forte irreverência, de um certo saber "pôr o dedo na ferida" (que, às vezes chega mesmo a esburacar)e nos acorda da letargia dos nossos dias mornos!
Deixo aqui outro poema. Uma outra maneira de (re)ver a infância.
bjinho
IA
Memórias das Infâncias
Gostávamos muito de doce de framboesa
e deram-nos um prato com mais doce de framboesa
do que era costume
mas
a nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa
para nosso bem
porque estávamos doentes
esconderam colheres do remédio
que sabia mal
o doce de framboesa não sabia à mesma coisa
e tinha fiapos brancos
isso aconteceu-nos uma vez e chegou
nunca mais demos pulos por ir haver
doce de framboesa à sobremesa
nunca mais demos pulos nenhuns
não podemos dizer
como o remédio da nossa infância sabia mal !
como era doce o doce de framboesa da nossa infância !
ao descobrir a mistura
do doce de framboesa com o remédio
ficámos calados
depois ouvimos falar da entropia
aprendemos que não se separa de graça
o doce de framboesa do remédio misturados
é assim nos livros
é assim nas infâncias
e os livros são como as infâncias
que são como as pombinhas da Catrina
uma é minha
outra é tua
outra é de outra pessoa
In – Adília Lopes –OBRA – O Decote da Dama de Espadas, pág. 107, Ed. Mariposa Azul, Lisboa 2001
Sim, de facto, esta poeta (não fica nada bem, acho eu, dizer poetisa)é surpreendente e diz as coisas de forma tão descarnada e, ao mesmo tempo, tão bela!
ResponderEliminarO Pedro Marques, com a formação "Para que raio serve a poesia?" aviva poemas poemas e poetas que parecem captar o que está rente ao céu e à terra.
Continua também a escrever poesia e não digas nunca "Passa-se"!!! Neste caso, não dirás, com certeza. Por ti e por todos.
Beijinhos
M.