domingo, 28 de abril de 2013

Dr. Salazar

                                                                 
                                             Graça Morais


Era proibido
conviver

Era proibido
viver

Era proibido
ser feliz

Só se podia
poupar

e gastar
mal gasto

Os vinhos
e os perfumes
não se usavam
apodreciam
nas garrafas

Ele era
o nosso pai
e o nosso padrasto

Ele morreu

E em herança
deixou-nos
mais pobres

Deixou-nos
o medo
de ser pobres

Somos mesquinhos
e picuinhas

                          Adília Lopes

(poema do livro "Ovos", in Dobra - poesia reunida: 1983-2007, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009

2 comentários:

  1. Gostei e gosto muito da Adília (assim só, como se já a conhecesse há muito tempo!)!

    Gosto da sua forte irreverência, de um certo saber "pôr o dedo na ferida" (que, às vezes chega mesmo a esburacar)e nos acorda da letargia dos nossos dias mornos!

    Deixo aqui outro poema. Uma outra maneira de (re)ver a infância.

    bjinho
    IA


    Memórias das Infâncias


    Gostávamos muito de doce de framboesa
    e deram-nos um prato com mais doce de framboesa
    do que era costume
    mas
    a nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa
    para nosso bem
    porque estávamos doentes
    esconderam colheres do remédio
    que sabia mal
    o doce de framboesa não sabia à mesma coisa
    e tinha fiapos brancos
    isso aconteceu-nos uma vez e chegou
    nunca mais demos pulos por ir haver
    doce de framboesa à sobremesa
    nunca mais demos pulos nenhuns
    não podemos dizer
    como o remédio da nossa infância sabia mal !
    como era doce o doce de framboesa da nossa infância !
    ao descobrir a mistura
    do doce de framboesa com o remédio
    ficámos calados
    depois ouvimos falar da entropia
    aprendemos que não se separa de graça
    o doce de framboesa do remédio misturados
    é assim nos livros
    é assim nas infâncias
    e os livros são como as infâncias
    que são como as pombinhas da Catrina
    uma é minha
    outra é tua
    outra é de outra pessoa

    In – Adília Lopes –OBRA – O Decote da Dama de Espadas, pág. 107, Ed. Mariposa Azul, Lisboa 2001

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  2. Sim, de facto, esta poeta (não fica nada bem, acho eu, dizer poetisa)é surpreendente e diz as coisas de forma tão descarnada e, ao mesmo tempo, tão bela!

    O Pedro Marques, com a formação "Para que raio serve a poesia?" aviva poemas poemas e poetas que parecem captar o que está rente ao céu e à terra.

    Continua também a escrever poesia e não digas nunca "Passa-se"!!! Neste caso, não dirás, com certeza. Por ti e por todos.
    Beijinhos
    M.

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