terça-feira, 23 de abril de 2013

A VERDADE HISTÓRICA



                                                                                                                  (Apontamento - meu: 
                                                                                                                  Um belo poema 
                                                                                                             para ler devagar e ao sol! 
                                                                                                                  Pode ser na cozinha)
 
A minha filha partiu uma tigela

na cozinha.

E eu que me apetecia escrever

sobre o evento,

tive que pôr de lado inspiração e lápis,

pegar numa vassoura e varrer

a cozinha.


A cozinha varrida de tigela

ficou diferente da cozinha

de tigela intacta:

local propício a escavação e estudo,

curto mapa arqueológico

num futuro remoto.


Uma tigela de louça branca

com flores,

restos de cereais tratados

em embalagem estanque

espalhados pelo chão.


Não eram grãos de trigo de Pompeia,

mas eram respeitosos cereais

de qualquer forma.

E a tigela, mesmo não sendo da dinastia Ming,

mas das Caldas,

daqui a cinco ou dez mil anos

devia ter estatuto admirativo.


Mas a hecatombe

deu-se.

E escorregada de pequeninas mãos,

ficou esquecida de famas e proveitos,

varrida de vassouras e memorias.


Por mísero e cruel balde de lixo

azul

em plástico moderno

(indestrutível)



ANA LUÍSA AMARAL,

"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999

2 comentários:

  1. Que linda (era) a tigela,
    na era em que não era cacos!

    (Dístico-reação ao poema de Ana Luísa Amaral).



    A poesia da mulher desconcerta-me.
    Cá vai outro, só para o desconcerto feito de alguns...



    "LUGARES COMUNS

    Entrei em Londres
    num café manhoso (não é só entre nós
    que há cafés manhosos, os ingleses também,
    e eles até tiveram mais coisas, agora
    é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas
    ilhotazitas, mais adiante)


    Entrei em Londres
    num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
    de praia (isto é só para quem não sabe
    fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
    mesmo muito manhoso,
    não é que fosse mal intencionado, era manhoso
    na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
    suja. Muito rasca.

    Claro que os meus preconceitos todos
    de mulher me vieram ao de cima, porque o café
    só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
    (se fosse em Portugal era sandes de queijo),
    mas pensei: Estou em Londres, estou
    sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
    até nem se metem como os nossos,
    e por aí fora...

    E lá entrei no café manhoso, de árvore
    de plástico ao canto.
    Foi só depois de entrar que vi uma mulher
    sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
    mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.
    Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
    depois eu

    Lá pedi o café, que não era nada mau
    para café manhoso como aquele e o homem
    que me serviu disse: There you are, love.
    Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
    Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
    pensei: Já lhes está tão entranhado
    nas culturas e a intenção não era má, e também
    vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
    quero lá saber

    E paguei o café, que não era nada mau,
    e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
    a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
    e depois vi as horas e pensei que o táxi
    estava a chegar e eu tinha que sair.
    E quando me ia levantar, a mulher sorriu
    Como quem diz: That’s it

    e olhou assim à sua volta para o presunto
    e os ovos e os homens todos a comer
    e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
    mas senti-me mais forte
    e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
    que em toda a parte
    as mesmas coisas são"


    Caso para dizer: que raio de poesia!
    (E ela existe!)

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  2. Sim, também fico surpreendida com a segredada cumplicidade das palavras de A.L.A.

    E é bom quando, como dizes, a poesia existe!

    Um beijinho
    M.

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