quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Natal é quando o homem quiser...



 Hoje partilho alguns excertos de um conto que escrevi e que
foi publicado, em dezembro 2016, na Coletânea NATALÍCIA
da Editorial Novembro

No fim da linha

A decisão foi quase momentânea. Se pensasse muito, teria com certeza tomado outra. Ou talvez não. Não tinha a certeza. O que sabia era que o Natal se aproximava e que os três filhos estavam longe. Os amigos diziam-lhe: "Num instante, te pões em França ou no Reino Unido". Porém, tal já não acontecia em relação à Austrália, para onde o filho mais novo tinha emigrado. Os mesmos amigos brincavam com a distante situação: "Arranjas um canguru  e dás um pulo até lá". 
Só ele conhecia bem a realidade. "Pai, se quiseres, podes vir passar o Natal connosco, mas prevê-se muita neve para as aldeias dos Pirenéus. Lembra-te de que não gostas de ficar tanto tempo no mesmo sítio".
"Pai, este ano, não vamos celebrar o Natal como habitualmente. A Emma, nessa altura, está a concluir a tese e tem de se concentrar".
"Pai, gostava que os miúdos passassem  o Natal com o avô, mas já fomos no ano passado e as viagens são muito caras, como bem sabes. Não te esqueças de que somos quatro e vivemos do outro lado do mundo".

(...)

Estava decidido: passaria a noite de Natal sem família e sem amigos. Também já vivera tantos Natais acompanhado, por que não podia passar essa noite só, se assim vivia tantas outras? As pessoas estavam demasiado habituadas à ideia de que na noite de Natal deviam estar acompanhadas, mas muitos dos seus serões eram passados na solidão da casa, não procurando ninguém e sem ninguém as procurar. Tantas noites em que apetecia falar sobre tudo e sobre nada, contar banais peripécias quotidianas, mas o telefone não tocava e marcar um  número poderia aumentar, do outro lado, o cansaço ou aborrecimento.

(...) 


Ao escurecer, pôs ao ombro o saco de cor parda e fechou a porta de casa, sem estrondo. Caminhou até à estação de comboio, entrando na última carruagem. Lá dentro, tirou uma página de jornal e uma caneta do saco, que colocou no assento oposto, continuando a fazer as palavras cruzadas que começara na véspera, também no comboio.
Como tinha passe, era um modo barato de ouvir muitas histórias contadas por e em diferentes pessoas. Olhando o jornal, parecia centrar-se na procura da palavra certa, mas ia escutando as diferentes vozes, tomando as suas notas e fazendo pequeninos esboços para eventuais ilustrações que acompanhavam os textos. Quase todos os dias encontrava matéria que guardava ou logo reutilizava, dando-lhe novas formas e serventias. Ria-se para si próprio quando se dizia um reciclador de histórias de comboio. Os amigos chamavam-lhe excêntrico e só não tinham razão completa, dizia ele, porque a conta bancária não aumentava por sorte ao jogo.

(...)

 Duas paragens à frente, entrou uma outra mulher. Ângelo puxou o saco para si, libertando o assento da frente, não fosse ela escolhê-lo, apesar dos muitos lugares vazios. Foi um desejo ou um secreto convite. A mulher poderia chamar-se Lídia.
Com olhar distante, a recém-chegada sentou-se, vagarosa e pensativa, em frente a Ângelo, fixando sempre a janela do lado oposto. Ele via-a apenas de perfil. Continuou a fazer as palavras cruzadas. Estranha opção para a noite de Natal, pensaria ela. Ou talvez nem reparasse. O passageiro, que apenas um curto espaço da carruagem de si separava, parecia ser-lhe indiferente. Como se houvesse apenas um estreito riacho de permeio, mas do qual ela nem se apercebia, atenta que estava a uma das margens. Olhava continuamente a janela do lado oposto e, de vez em quando, o ecrã do telemóvel que segurava na mão. Como uma flor sem luz.

 (...)


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