quarta-feira, 30 de abril de 2014
Páscoa branca
O
cais era o mesmo de sempre. Aliás, o único na pequena estação. O vento
gelado obrigou-me a envolver a cabeça no cachecol e a calçar as luvas.
Apenas três passageiros desceram comigo em direção ao túnel, donde
subiram pela escada do lado oeste que conduz à vila, enquanto eu me
servi da do lado leste, da chamada «escada do monte».
Depois
de chegar ao cimo, parei, pousei a mala e olhei em volta: o céu
cinzento, o monte calado, solitário, remoto; as árvores despidas,
negras, de luto. E no entanto era Domingo de Páscoa.
Quando
ia de novo levantar a mala, reparei no cão. Como sempre estava ali,
grande, cinzento, malhado de preto. Fitou-me com olhar caloroso, mas não
se moveu do lugar. Transida de emoção, dei um passo em direção a ele:
vieste? E logo os olhos se extinguiram, ficaram como os das
estátuas.
Mesmo assim, estendi-lhe a mão, que eu bem sabia, ia tocar no vazio.
Subi
o monte. Entrei no jardim do hotelzinho onde florescia o croco azul. A
terra, ainda gelada, cumpria a data, não podia haver Páscoa sem croco.
— A primavera não veio este ano — disse a dona.
— Veio sim — retorqui. — Então o croco?
A casa estava aquecida. Desembaracei a cabeça do cachecol, tirei o casaco. O quarto dava para o pomar plantado encosta acima.
Afastei
o cortinado da janela muito larga e repousei os olhos nas macieiras
despidas, na terra escurecida pelo frio e, como se quisesse defender-me,
pousei as mãos na superfície quente de mármore que cobria os tubos de
aquecimento central. A mobília pintada de branco, animada por uma
toalha cor de framboesa em cima da mesa e almofadas às pintas
multicolores nas cadeiras, resultava num conforto um tanto infantil.
Estendi-me
sobre a cama, voltada para a janela. Fiquei de olhos postos nas
macieiras. A calma enchia-me de surpresa. O leve tique-taque do
despertador acentuava-a, mas, simultaneamente, desmentia que o tempo
tivesse parado ali.
Os
ramos desenhavam-se negros sobre o fundo do céu cinzento. Macieiras
mortas. Mas não: em breve estariam em flor e viriam então os frutos, em
matizes de verdes e vermelhos, anunciando a maturidade e com ela o
apogeu do ciclo; depois tudo voltaria a ser como naquele momento,
despido, frio, estranhamente belo. Um mundo perdido, irrecuperável e,
mesmo assim, ali e nos meus olhos...
E
nisto começa a nevar. Lentamente, silenciosamente a nevar. E a terra,
tão endurecida como um cadáver, cobre-se de branco, os ramos começam a
desenhar-se em branco sobre o céu dum cinzento agora mais claro, numa
delicadeza impressionante, confundindo-se com ele. Contenho a
respiração. Toda eu sou espanto. Os flocos balançam, bailam, lá fora
onde não há sopro de vento, dentro do quarto, dentro de mim, brancura
suave, imaculada, tranquila, movimento feito de graça... e então, por
entre os troncos negros das macieiras, mudo como aquela natureza, a
cauda entre as pernas altas, flocos de neve a cobrir-lhe o pelo, o cão.
Seguiu-me
portanto. Como há pouco, no cimo da escada, na gare, fico transida de
emoção. Era-me dolorosamente familiar, conhecia-o desde sempre, amava-o
desde sempre, ouvia-o uivar por mim nas horas de angústia. «Tu?»,
perguntei. E a palavra implantou-se no silêncio como uma árvore no
deserto.
Do
outro lado do vidro da janela olha-me com grandes olhos castanhos, de
pupilas azuis, em que a luz branca faz cintilar uma estrela. Sorrio-lhe
e então abana a cauda. «Seu tolo», digo na brincadeira do costume, e
logo o vejo levantar a pata para arranhar na janela. «Está bem, está
bem», digo, cheia de condescendência fingida, levanto-me e,
atravessando o vidro, vou ter com ele. Não consegue conter-se de
alegria. Como doido dança em redor de mim, encosta-se-me ao corpo,
roça-me o peito para eu lhe acariciar a cabeçorra; rebola-se no chão,
ergue-se de novo, salta-me à cara para a lamber num impulso de diabrura
e sinto-lhe o contacto do nariz frio e húmido contra a face. Mas
depois senta-se, compenetrado, sensato, inclina um pouco a cabeça,
fita-me de orelhas espetadas como quem escuta, uma pergunta ansiosa nos
olhos. Bem o entendo. P
or isso respondo: «Pois sim, vamos».
Mais
uma vez me salta à cara lambendo-me agradecido, depois corre em pulos
de satisfação, deitando as orelhas para trás, encosta acima. Um vento
muito leve agita as flores das macieiras e desprende-lhes os flocos de
pétalas brancas que, brandamente iluminadas pelo sol primaveril, flutuam
silenciosas no ar, deixando-se por fim cair, como que cansadas, sobre a
terra negra donde se exala o cheiro bom do princípio do mundo.
Os
cabelos soltos sobre os ombros, a correr loucamente, sigo o cão. Por
um instante ele para, volta-se, verifica que me encontro perto e desata
de novo aos pulos monte acima, em posição de desafio e de quem gosta
de demonstrar a sua superioridade física.
«Espera,
gabarola!», chamo, mas faz de conta que não ouve e só depois de
chegado lá ao cimo deixa de continuar em frente para, em vez disso, vir
novamente ter comigo, acompanhando-me até ao mesmo lugar.
Vasto
e verde, tão verde, o planalto estende-se até à orla negra da
floresta. Nunca antes o azul do céu fora tão transparente, o amarelo
das dentes-de-leão tão radiante, o ar tão macio. Lado a lado, o cão e
eu detemo-nos um bocado no sonho para em seguida recomeçarmos o nosso
jogo de «agarra», correndo e saltando para a direita, para a esquerda e
em ziguezague, até cairmos exaustos sobre a relva, eu a cara em fogo,
ele ofegante, a língua de fora. «Pobre, pobre», digo e enterro a cabeça
no seu pelo fofo, donde lhe tiro carinhosamente algumas pétalas de
flor de macieira. E falo-lhe.
Conto-lhe
coisas, muitas coisas, e ele ouve, silencioso, pacífico como o cair
das pétalas na primavera e o da neve no inverno. Não há pressa, não há
horas. Tínhamos abandonado o tempo para nos instalarmos na vasta
planície verde onde as flores em lume são eternas. Ali não se conhece
nem fim nem princípio, nada foi, nada é, nada será. Uma criança fala, e
as suas palavras vão de alma a alma, em linha reta, sem curvas, sem
desvios. Palavras sem fechaduras, sem chaves, sem rótulos, mas livres
como pássaros, nuas como adolescentes banhando-se em fontes de floresta,
abertas, imensas como o mar verde onde navegam barcos que não buscam
margens nem destinos.
Sonhamos
assim. E não há idade encerrada num ciclo iniciado nas trevas e
terminando nas trevas. Sonhamos como se tivéssemos chegado da luz,
vivêssemos na luz, regressássemos à luz...
— Posso entrar?
É a dona do hotelzinho que me traz o café. Pousando o tabuleiro sobre a toalha cor de framboesa, diz:
— Pensei que um café lhe saberia bem num dia como este.
E olhando o nevão por detrás da janela:
— Coisa tão rara, uma Páscoa branca.
— A janela, dantes, era muito estreita — digo eu — mas acho-a bonita assim larga.
E ela, surpreendida:
— Conhecia a casa?
— Conhecia. E as macieiras também.
Ilse Losa
O barco afundado
Lisboa, Editorial Novaera, 1979
História enviada por:
terça-feira, 29 de abril de 2014
«A cadeira amarela» de Van Gogh
No chão de tijoleira uma cadeira
rústica,
rusticamente empalhada, e amarela sobre
a tijoleira recozida e gasta.
No assento da cadeira, um pouco de tabaco num papel
ou num lenço (tabaco ou não?) e um cachimbo.
Perto do canto, num caixote baixo,
a assinatura. A mais do que isto, a porta,
uma azulada e desbotada porta.
Vincent, como assinava, e da matéria espessa,
em que os pincéis se empastelaram suaves,
se forma o torneado, se avolumam as
travessas da cadeira como a gorda argila
das tijoleiras mal assentes, carcomidas, sujas.
Depois das deusas, dos coelhos mortos,
e das batalhas, príncipes, florestas,
flores em jarras, rios deslizantes,
sereno lusco-fusco de interiores de Holanda,
faltava esta humildade, a palha de um assento,
em que um vício modesto – o fumo – foi esquecido,
ou foi pousado expressamente como sinal de que
o pouco já contenta quem deseja tudo.
Não é no entanto uma cadeira aquilo
que era mobília pobre de um vazio quarto
onde a loucura foi piedade em excesso
por conta dos humanos que lá fora passam,
lá fora riem, mas de orelhas que ouçam
não querem mesmo numa salva rica
um lóbulo cortado, palpitante ainda,
banhado em algum sangue, o «quantum satis»
de lealdade, amor, dedicação, angústia,
inquietação, vigílias pensativas,
e sobretudo penetrante olhar
da solidão embriagadora e pura.
Não é, não foi, nem mais será cadeira:
Apenas o retrato concentrado e claro
de ter lá estado e de ter lá sido quem
a conheceu de olhá-la, como de assentar-se
no quarto exíguo que é só cor sem luz
e um caixote ao canto, onde assinou Vincent.
Um nome próprio, um cachimbo, uma fechada porta,
um chão que se esgueira debaixo dos pés
de quem fita a cadeira num exíguo espaço,
uma cadeira humilde a ser essa humildade
que lhe rói de dentro o dentro que não há
senão no nome próprio em que as crianças têm
uma fé sem limites por que vão crescendo
à beira da loucura. Há quem assine,
a um canto, num caixote, o seu nome de corvo.
E há cantos em pintura? Há nomes que resistam?
Que cadeira, mesmo não-cadeira, é humildade?
Todas, ou só esta? Ao fim de tudo,
são só cadeiras o que fica, e um modesto vício
pousado sobre o assento enquanto as cores se empastam?
rusticamente empalhada, e amarela sobre
a tijoleira recozida e gasta.
No assento da cadeira, um pouco de tabaco num papel
ou num lenço (tabaco ou não?) e um cachimbo.
Perto do canto, num caixote baixo,
a assinatura. A mais do que isto, a porta,
uma azulada e desbotada porta.
Vincent, como assinava, e da matéria espessa,
em que os pincéis se empastelaram suaves,
se forma o torneado, se avolumam as
travessas da cadeira como a gorda argila
das tijoleiras mal assentes, carcomidas, sujas.
Depois das deusas, dos coelhos mortos,
e das batalhas, príncipes, florestas,
flores em jarras, rios deslizantes,
sereno lusco-fusco de interiores de Holanda,
faltava esta humildade, a palha de um assento,
em que um vício modesto – o fumo – foi esquecido,
ou foi pousado expressamente como sinal de que
o pouco já contenta quem deseja tudo.
Não é no entanto uma cadeira aquilo
que era mobília pobre de um vazio quarto
onde a loucura foi piedade em excesso
por conta dos humanos que lá fora passam,
lá fora riem, mas de orelhas que ouçam
não querem mesmo numa salva rica
um lóbulo cortado, palpitante ainda,
banhado em algum sangue, o «quantum satis»
de lealdade, amor, dedicação, angústia,
inquietação, vigílias pensativas,
e sobretudo penetrante olhar
da solidão embriagadora e pura.
Não é, não foi, nem mais será cadeira:
Apenas o retrato concentrado e claro
de ter lá estado e de ter lá sido quem
a conheceu de olhá-la, como de assentar-se
no quarto exíguo que é só cor sem luz
e um caixote ao canto, onde assinou Vincent.
Um nome próprio, um cachimbo, uma fechada porta,
um chão que se esgueira debaixo dos pés
de quem fita a cadeira num exíguo espaço,
uma cadeira humilde a ser essa humildade
que lhe rói de dentro o dentro que não há
senão no nome próprio em que as crianças têm
uma fé sem limites por que vão crescendo
à beira da loucura. Há quem assine,
a um canto, num caixote, o seu nome de corvo.
E há cantos em pintura? Há nomes que resistam?
Que cadeira, mesmo não-cadeira, é humildade?
Todas, ou só esta? Ao fim de tudo,
são só cadeiras o que fica, e um modesto vício
pousado sobre o assento enquanto as cores se empastam?
Lisboa, 21/05/1959
JORGE DE SENA, 2013: Obras Completas - Poesia 1 [Metamorfoses, 1963]. Lisboa: Guimarães, pp. 341-343.
Obrigada, IAzinha, pelos teus belos postais de fim de semana.
Partilhas textos, música, pintura que sabes procurar e. por isso, tão bem encontras.
Obrigada.
Desta vez, não te pedi autorização para trazer aqui
uma parte da mensagem que nos enviaste.
O teu coração é grande!
Recebi e gostei muito
Não é raro que um bem
nos seja confiado
na hora que temos por errada.
José Tolentino de Mendonça
sábado, 26 de abril de 2014
O 25 de Abril na(s) Escola(s)
Imagens da belíssima exposição dinamizada pelo grupo de História
na ESG (Escola Secundária de Gondomar)
Obrigada, AC, pelas fotos
A avaliar pelo que vi, li e ouvi, o 25 de Abril foi
abordado, com mais tempo, nas escolas. Felizmente. As exposições, debates, saraus, visitas, trabalhos... também ajudaram.
Se calhar, um pequeno conteúdo ficou por lecionar ou
rever, mas o diálogo com as crianças e jovens sobre este assunto vale(u) mais
do que mil discursos, com ou sem cravos ao peito.
Uma menina de nove anos respondia a uma questão, mais ou
menos assim, do manual: “Como se sentiria o cravo na mão de tantas pessoas
reunidas?”
A menina escreveu: “O cravo sentiria-se triste porque deixava a terra dele”. Passado um
bocadinho, corrigiu: “…sentir-se-ia triste porque deixava a terra dele”. E
pouco depois (as palavras são mesmo impulsionadoras!) acrescentou: “… mas
também contente porque via as pessoas felizes”.
No diálogo que travei com os meus alunos (do 10º e 12º
ano), partilharam-se algumas ideias que eles tinham colhido de conversas com os
pais ou avós, de poemas ou outros textos alusivos à data, de pesquisa ou
reflexão sobre alguns dos temas mais recorrentes, etc.
E eles referiram quase sempre o testemunho dos avós,
porque os pais eram ainda crianças quando ocorreu o 25 de Abril de 1974 - a mãe
de uma das alunas ainda não tinha nascido.
Eis algumas das ideias apresentadas:
- O meu avô ficou só com a 2ª classe para trabalhar e
ajudar os pais. Teve muita pena porque queria continuar a estudar. Ficou sempre
com esse desgosto.
- O meu avô esteve em Angola na guerra colonial e gostou,
porque não ficou ferido e foi uma maneira de viajar e conhecer outras terras.
- Os meus avós passavam fome. Eles dizem que agora há
muita gente que tem pouco de comer, mas naquela altura a miséria era maior.
- O meu avô pertencia à Legião Nacional. Um dia o
Salazar cumprimentou-o e ele ficou muito contente.
- A minha avó emigrou clandestina para França com cinco
filhos pela mão e não sabia ler nem escrever. Foi muito difícil.
- O meu avô andou na guerra colonial e, durante vários
anos, se ouvisse foguetes, ficava transtornado, porque se lembrava logo dos
amigos que morreram em combate ou quando as minas rebentavam.
- Antigamente havia mais respeito nas escolas.
- Com a censura, as pessoas sabiam só uma parte do que se
passava.
- Muito pouca gente sabia ler, o que interessava aos
ditadores, porque assim o povo não tinha instrução e não se revoltava.
- Há muitas pessoas que não sabem aproveitar a liberdade
que têm.
- O 25 de Abril trouxe direitos e deveres, mas muita
gente só fala dos direitos.
- A PIDE prendia pessoas só porque tinham opiniões
diferentes do Governo.
...
E eu, que vivi o antes 25 de Abril, pude dar
achegas.
Num dos pontos do diálogo, lembro-me de ter dito aos
alunos:
- Já imaginaram que esta conversa não seria possível
antes do 25 de Abril?
E eles, que nasceram em tempo de Liberdade, não
responderam logo. Para eles, tal hipótese seria impensável. Ainda bem.
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