Em cada sessão, falamos, lemos, analisamos, interpretamos... poemas de três poetas.
E, à volta das palavras de poetas, referimos sentimentos, afetos, a crueza expressiva da linguagem, a capacidade de ser cáustico e surpreendente, o quotidiano, a vontade da desconstrução/reconstrução poética...
Os textos escolhidos eram de Diogo Vaz Pinto e Golgona Anghel, nascidos nos anos 80 do século XX, e José Miguel Silva, nascido em 1969.
Aqui ficam alguns exemplos:
Aqui ficam alguns exemplos:
A manhã abre um parêntesis enquanto ponho
a cha1eira ao lume, pego num livro
que larguei ali. Aborreço-me
com os temas elevados e o modo inspirado
como trocam impressões as personagens
deste escritor.
Gostava que Deus existisse e nos visse assim,
de pijama na cozinha, remelosos e vazios,
à espera da primeira chávena de café
e de algum twist no enredo dos dias
que vieram até aqui.
Diogo Vaz Pinto, in Nervo, Averno 2011
Meia-noite todo dia
Tenho humor e vendo-o barato.
Muita gente gosta disto.
Dá-me gozo cozinhar
e penso que até sei fazer bem tiramisú e
chocos à lagareiro.
Não tenho dívidas fiscais
e sou beneficiário de um seguro de saúde do estado.
Já visitei 24 países, entre os quais a Síria, o Nepal e
a Nova Caledónia.
Dormi nas noites brancas da Lapónia;
cacei um tigre na selva subsaariana;
dei aulas de história ocidental a crianças subnutridas, numa
aldeia de Bangladesh,
e vi Charlize Theron gorda no filme "Monster".
Um dia vou adoptar uma menina órfã de Afeganistão.
Estou apenas à espera que os americanos
parem os bombardeamentos em Cabul.
Até lá, compro todos os anos
um postal humanitário da Unicef.
À distância de um click, vocês também podem ser sócios do
Grupo de Apoio às vítimas da malária.
Só me falta agora pagar
um crédito de 300.000,00 euros para ser feliz.
Golgona Anghel, in Vim porque me pagavam,
Lisboa: Mariposa Azual, 2ª edição, 2011
Lisboa: Mariposa Azual, 2ª edição, 2011
Queixas de um utente
Pago os meus impostos, separo
o lixo, já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.
Já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum.
o lixo, já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.
Já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum.
José Miguel Silva, in Ulisses já não mora aqui
Ah, e nesta sessão, falámos também de António Ramos Rosa, poeta falecido há uma semana. Lembrámos um dos seus poemas.
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida num quarto só