quarta-feira, 31 de julho de 2013

Afixação improvável


Histórias de verão - A Suzaninha





A Suzaninha vinha com a mãe, todos os verões, há muitos muitos anos, para a mesma praia do Norte e ocupavam sempre a mesma barraca. Logo de manhã, o banheiro trazia um grande saco, onde havia uma manta, para a Suzaninha e a mãe se estenderem ao sol ou se aconchegarem dentro da barraca, um pequeno cobertor para a Suzaninha se cobrir nas manhãs de nevoeiro, duas cadeiras de dobrar, um saco com os brinquedos de Suzaninha: baldinhos, forminhas, pazinhas, duas bonecas para se entreter quando a areia estivesse muito fria ou muito quente. A Suzaninha também queria trazer um livro de histórias, mas a mãe de Suzaninha dizia que era melhor não, porque ela, a mãe de Suzaninha, tinha de descansar a cabeça e acabar a colcha de crochet. É que a Suzaninha gostava que a mãe lhe lesse histórias.

Na praia, havia muitos meninos  e, como eram meninos, brincavam despreocupadamente. Suzaninha, sempre que podia, aproximava-se, mas nenhum dos meninos a chamava porque sabiam que ouviriam logo a mãe de Suzaninha:

- Suzaninha, anda buscar o chapéu. Suzaninha, anda pôr creme. Suzaninha, sai do sol. Suzaninha, não corras tanto. Suzaninha, anda mudar o maillô que esse está molhado e constipas. Suzaninha, olha que ele é mau…

Mas a Suzaninha queria brincar porque a Suzaninha era, como os outros meninos, uma criança. A mãe de Suzaninha preferia vê-la por perto, porque assim estava mais descansada e podia acabar mais uma roseta para a colcha de crochet.

Ora, a Suzaninha punha-se a olhar os meninos a brincar e era como se estivesse no meio deles. Fazia “ai!” quando algum caía, ria-se quando achava graça à brincadeira, batia palmas ao vencedor do jogo das pedrinhas ou do prego…

E isto acontecia quase todos os dias ao longo de um longo mês.

Uma manhã, a Suzaninha chegou à praia com a mãe e estendeu-se o ritual: desdobrar a manta, abrir as cadeiras,  desatar o saco dos brinquedos; pegar na agulha e no novelo;  destapar a lancheira: Suzaninha, come uma banana; Suzaninha, queres a bola de Berlim? Suzaninha, bebe o sumo…

A mãe já sentada com o seu crochet no regaço, Suzaninha bem perto e segura, os meninos retomavam a sua brincadeira, fazendo um círculo na areia. Montavam um castelo com areia molhada. Suzaninha ia seguindo a construção. Pegou numa pá de plástico azul, como se lá estivesse, para poder participar.

Suzaninha, para ver melhor, pôs-se de pé, atrás da mãe, apoiando as mãozitas nos seus ombros.  De repente, o castelo desmoronou-se e Suzaninha, com a emoção e talvez como reação ou repentino reflexo, deu com a pá no ombro da mãe.

A mãe de Suzaninha disse: ó Suzaninha, sabes o que fizeste? Venho para a praia por tua causa, para teres saúde durante o ano, e dás-me com a pá?

Suzaninha nem sabia o que dizer e só queria olhar a construção.

Suzaninha passou o resto da manhã, de castigo, dentro da barraca. Adormeceu no cobertor e sonhou que subiu, livremente, a um castelo, com os outros meninos.




terça-feira, 30 de julho de 2013

Histórias de verão - O bikini de uma só peça


Corriam os anos sessenta. Nas praias da Foz, no Porto, só as jovens mais ousadas usavam fato de banho. O bikini nem vê-lo, porque era proibido. Se houvesse tal ousadia, surgiria logo o Cabo do Mar, com a sua farda branca e azul, a repor a ordem e os bons costumes.

 Nunca era dito, porque o tempo era de pouca folgação, mas o Cabo do Mar não deveria desgostar da função, porque, enquanto mostrava as leis por a mais bê, o seu olhar também se comprazia.

Ora, um dia, uma jovem cheia de vida, que gostava de enfrentar as ondas e muitas marés, apareceu na praia com um bikini preto. Quase logo, apareceu, compenetrado, o Cabo do Mar que dela se abeirou. Como uma cena de um filme a preto e branco, ela saiu da praia acompanhada pelo zeloso Cabo do Mar e durante a tarde não foi vista na praia.

No dia seguinte, chegou logo de manhã. Trazia o mesmo bikini, mas com uma rede, que ela própria tinha tecido, a unir as duas peças. Tal como num filme, mas desta vez bem sonoro, atirou-se à água para não perder a boa onda.

domingo, 28 de julho de 2013

Abrandamento


Já marcou as férias, professora?
No Natal e na Páscoa, o termo é outro: interrupção das atividades letivas (apesar de muitas pessoas acharem que os professoras têm muitas férias durante o ano).
Mas deixemos isso, porque o tempo é de abrandamento.
É tempo, portanto,
De ter de andar mais a pé.
De ter de ler os livros que comprei e que não li.
De ter de acabar de ler os artigos que ficaram amontoados.
De ter de ler mais sobre os autores dos programas.
De ter de falar mais vezes com os meus familiares idosos e doentes.
De ter de telefonar à vizinha que teve um acidente e que deve ter pensado que a ignorei.
De ter de ter tempo para olhar a Natureza.
De ter de escrever mais, sem a culpabilidade de estar a “roubar” tempo a outras tarefas.
….
Falo eu de abrandamento e só me ocorreu a pressão do ter de. Assim, em vez de abrandamento poderá é haver descarrilamento, o que não quero de forma alguma!

Não, eu quero mesmo que haja abrandamento. Pôr em prática uma expressão antiga e deliciosa: andar do meu vagar.
Depois de um ano letivo com o stress acrescido de ter anos de exame a nível nacional; de ter turmas com alunos que são verdadeiros heróis e outros tantos que, pelas mais variadas razões, não aprenderam a vontade de o ser; de trabalhar numa escola “refundada”, mas sem internet em muitas salas; dos toques inexoráveis (ia dizendo irrevogáveis, o que até seria bom – com o novo sentido da palavra) das campainhas; de ver o ano terminar com greves que achei justas; de corrigir quase uma centena de provas de exame, querendo fazer bem o trabalho mas sem certas certezas; olhar a pauta com os resultados dos meus alunos e sentir (quase) o que se sente quando se recebe um resultado médico;…

Sim, vou substituir o “ter de” pelo verbo “ poder” ou “tentar”, mas sempre do meu vagar.
     Porque tenho de saber que o o tempo pode ser de abrandamento!


sexta-feira, 26 de julho de 2013

Rio D(e)ouro




terça-feira, 23 de julho de 2013

Fraternidade(s)



12h - Uma professora dirige-se a uma mesa onde estão quatro colegas a corrigir exames. Partilha com elas bolachas de canela.

16 h - Entro numa perfumaria. A funcionária dá a cheirar diferentes perfumes a uma cliente. Espero pela minha vez. No ar misturam-se aromas. A cliente continua em busca do perfume perfeito. Dois adolescentes, que brincavam no exterior, aproximam-se. Ela dá-lhes a cheirar o branco papelinho perfumado. Os miúdos ficam indiferentes e saem de novo.

Começo a olhar à minha volta em busca de algum produto que me chame a atenção. Sem nada comprar, a cliente sai, levando atrás de si os adolescentes,

A funcionária pergunta-me: "em que posso ajudar".

Queria um perfume para homem, respondo eu. Pergunta até quanto quero gastar, se tenho preferência por alguma marca, que idade tem o destinatário. Respondo às perguntas. Ela estica o braço e pega em duas caixas. Pousa-as no balcão e diz, como se tivesse mesmo de o dizer: "olhe que lhe mostrei uns quinze perfumes. E, no fim, disse-me apenas que tinha ficado com uma ideia. Realmente, muitas pessoas só pensam nelas próprias!” 

17 h - Visito a minha mãe. Está no quintal e as galinhas estão à solta. Trago-lhe o perfume que me pediu para o aniversário do meu pai. Diz-me, apontando um banco: filha, senta-te aqui, não te vás já embora. Fico. Chega o meu pai. Senta-se também. Reparo que, sem querermos, formamos um triângulo.

19 h – Vou ao supermercado. Uma cliente tem muitos sacos. Tem de os levar todos nas mãos. A cliente seguinte ajuda-a a pôr na mão as asas de alguns sacos. Presenciando o ato, pensei que, apesar da simplicidade, o gesto devia ter sabido tão bem como as bolachas com canela ou o tempo sentado no quintal de família.


domingo, 21 de julho de 2013

Fraternidade

Amadeu Sousa Cardozo
Não me dói nada meu particular.
Peno cilícios da comunidade.
Água dum rio doce, entrei no mar
E salguei-me no sal da imensidade.

Dei o sossego às ondas
Da multidão.
E agora tenho chagas
No coração
E uma angústia secreta.

Mas não podia, lírico poeta,
Ficar, de avena, a exercitar o ouvido,
Longe do mundo e longe do ruído.

Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'

sexta-feira, 19 de julho de 2013

La boîte en carton



 
Quand je suis née, maman m’a déposé dans une boîte en carton, une de ces boîtes où les gens gardent leurs chaussures. Cette boîte était mon berceau, ma chambre, ma maison, les murs qui amortissaient les sanglots de ma mère…
Quelques semaines après, maman a dépensé toutes ses économies : elle a acheté un billet pour un voyage en bateau. Un bateau qui nous emmènerait dans un pays où les petites filles ne dorment pas dans des boîtes et où les mamans ne pleurent pas.
Nous sommes parties à l’aube… Deux jours après, le bateau a été pris dans une tempête. Et puis il a coulé. Désespérée, maman a nagé jusqu’à la côte, tirant derrière elle mon petit radeau en carton dont les murs laissaient passer les cris de ceux qui ne savaient pas nager.
Nous sommes finalement arrivées sur une plage déserte. Ma mère et moi. Seules. La marée a emporté ma boîte en carton vers le large et rien n’arrêtait les pleurs de ma mère. On avait l’espoir de retrouver quelqu’un, un survivant de notre malheureuse traversée…
Nous avons dormi à la belle étoile jusqu’au jour où nous avons trouvé une énorme caisse en carton. Cette caisse est devenue notre lit, notre chambre, notre maison et les murs qui abritaient nos pleurs.
Maman et moi, nous avons appris à manger des racines : n’importe où, le goût de la terre est toujours le même… Je ne sais pas pourquoi mais cela nous réconfortait.
Toutes les nuits, nous voilà sur des lieux de décharge à la recherche d’une pomme de terre ou d’une tomate.
Un jour, ma mère a reconnu une femme qui avait voyagé dans le même bateau que nous. Elles se sont embrassées, elles ont pleuré, elles se sont interrogées sur nos camarades de voyage… Et elles ont tristement secoué leurs têtes…
Cette nuit-là, notre nouvelle amie, Aihala, a installé sa caisse en carton près de la nôtre. Alors, en plus d’abriter nos pleurs, ces caisses faisaient écho à nos rires. Bien que cela puisse paraître impossible, nous savions encore sourire…
Plusieurs lunes se sont levées et couchées. D’autres amies sont venues nous rejoindre, avec leurs caisses en carton. Et, ensemble, nous nous sentions plus en sécurité, et même, heureuses. Parce que, comme disait ma mère, « Les larmes coulent moins lorsqu’on partage les peines. »
Un village en carton est donc né autour de notre caisse en carton. Une caisse pauvre mais gaie. Nous riions entre nous et nous souriions aux inconnus qui, à leur tour, parfois, nous souriaient. Mais tous n’étaient pas aussi aimables avec nous : des fois, on s’amusait à nous lancer du feu…
Puis, une nuit, que rien n’effacera de ma mémoire, le feu s’est propagé dans notre village en carton et toutes les caisses ont brûlé. Et rien n’a réussi à faire taire nos cris de douleur.
Je n’ai plus jamais revu ma mère. Ni Aihala. On m’a emmenée dans un orphelinat et, après, on voulait que je retourne dans mon pays. Mais, là-bas, personne ne me connaissait et, ici, personne ne semblait connaître mon pays… Finalement, j’ai été adoptée et, après quelque temps, j’ai recommencé à sourire. Malgré tous ces malheurs…
À présent, je suis heureuse avec ma nouvelle maman. Je l’aime et elle m’aime. Elle m’aime comme je suis.
Je vis dans une maison. J’ai ma chambre, une armoire. Dans cette armoire, il y a une boîte en carton, une de ces boîtes où l’on garde les chaussures. Mais, dans ma boîte en carton, il n’y a pas de chaussures ; seulement des souvenirs. Parce que je ne veux pas oublier. Je ne veux pas oublier les pleurs de ma mère et,  encore moins, son sourire…
     

Txabi Arnal
Caja de cartón
Pontevedra, OQO, 2010
(Traduction et adaptation)