segunda-feira, 26 de agosto de 2013
quinta-feira, 22 de agosto de 2013
Impressões sobre um livro
Acabo de ler O filho de mil homens de Valter Hugo Mãe[1], um livro surpreendente.
O livro tem
vinte capítulos, todos com título. A narrativa começa assim: “Um homem chegou
aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se
Crisóstomo”.
Nos primeiros
capítulos, as personagens são apresentadas como se fizessem parte de narrativas curtas e independentes: Crisóstomo,
um pescador que gostaria de ter um filho; Camilo que encontra um pai em Crisóstomo;
uma anã “de quem todos se apiedavam”, mas que cai na desgraça das vizinhas quando
se apercebem que aquela tinha uma cama larga e grande; Maria, a “mãe da mulher
enjeitada” que é a Isaura, cujo nome é por muitos muito apreciado; Matilde, a mãe de Antonino que “parecia uma
menina nos sentimentos”; Rosinha, a caseira de Matilde que casa com um velho de
quem queria apenas a fortuna; Mininha, a filha de Rosinha, que é quase sempre
tratada por “cria” …
Crisóstomo é o
elo de ligação mais forte entre todas as personagens, porque consegue despir-se
de preconceitos, olhando as pessoas no seu desejo de plenitude e de felicidade.
É alguém que sabe olhar o mar e descobrir quem o sabe olhar também.
A linguagem é
por vezes crua (por exemplo, no modo como os vizinhos tratam Antonino que é
diferente de muitos homens), mas o texto é profundamente poético. De salientar
que não existem pontos de interrogação. O verbo “perguntar”e outros resolvem o
problema. “A miúda perguntou: ó mãe, o velho dos campos é meu pai.” P.167.
Há frases que
apetece reler e sublinhar: “nunca cultivar a dor, mas lembrá-la com respeito,
por ter sido indutora de uma melhoria, por melhorar quem se é.” P. 213; “Cada filho
somos nós no melhor que temos para dar. No melhor que temos para ser”. P. 227; “
Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão
passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós”. P.237.
Os temas
abordados são diversos, mas a busca da outra parte que completa o ser humano,
que o liberta da solidão e o ajuda a transformar o mundo parece-me ser uma linha recorrente no
romance.
Valter Hugo
Mãe nasceu em 1971, estando, portanto, na casa dos quarenta anos. Tal como
Crisóstomo! Haverá coincidências?
Nota: Neste momento, vejo VHM, no Porto Canal, à conversa com Manuel Jorge Marmelo. Felizmente há programas em alguns canais com escritores e/ou sobre livros, embora sejam pequenos oásis num enorme deserto.
O café do Fernando
Embora o
frequente em muitos dias de verão, não sei ao certo o nome do café-esplanada,
em Mindelo. Julgo que poucos o saberão. Para todos é o café do Fernando.
O espaço foi
ganhando o nome do dono, que tem presença discreta, apesar de (julgo eu) conhecer
bem a maioria dos clientes. Muitos já frequentam o café há muitos anos. E não só no verão, mas também
nos domingos frios e chuvosos de outono
ou inverno em que as mãos se aquecem na chávena do café, tomado junto à janela
larga, com vidros em pequenos quadrados, donde se avistam os rochedos e espuma
das vagas.
Em frente,
espraia-se o mar – tantas vezes sereno e outras tantas bem revoltoso. Fora da
esplanada, existe outra esplanada para os dias calmos e sem vento.
Ir ao Fernando
é quase um ritual para os habitués da praia: para o café, para estar, para
ficar, para ler, para saborear um pregos tenro e suculento…
Mesmo ao lado,
existe outra esplanada. A paisagem é semelhante, mas a principal diferença é
que está quase sempre vazia, ao contrário da do Fernando que está quase
sempre cheia, a menos que o vento do norte sopre e imponha que as mesas fiquem vazias.
Um dos
prazeres de alguns dias de verão é ir ao Fernando durante a tarde e comer tremoços, amendoins
com um fino ou uma lambreta.
Também isto o
Fernando saberá, com certeza, embora esteja quase sempre a trabalhar do lado de dentro do café, onde são
visíveis imagens bem azuis do FCP.
O café do Fernando é um pequeno porto que ajuda a celebrar o tempo que dura tão bela estação.
Morangos para o pequeno-almoço
Nos
anos que antecederam a libertação dos escravos nos Estados Unidos da
América, existiam várias rotas de fuga para os escravos que tentavam
chegar ao Canadá, onde estariam a salvo. Muitas famílias ajudavam os
escravos a esconder-se, alimentando-os e enviando-os para a próxima
família da cadeia de solidariedade. Uma lei proibia a ajuda aos
escravos e quem o fizesse arriscava-se a ser preso e obrigado a pagar
multas avultadas. Mesmo assim, muitos eram os que continuavam a ajudar,
e muitos milhares de pessoas conseguiram, desta forma, alcançar a
liberdade. Esta é uma de muitas histórias sobre o Underground Railroad
que consistia num grupo de pessoas que ajudava os escravos a conseguir
a liberdade antes da Guerra Civil Americana. Desta organização faziam
parte os Quakers, um grupo religioso originário do cristianismo, com uma
forte implantação nos Estados Unidos da América.
Por
volta das cinco e meia de uma manhã de verão no sul do Ohio, a luz já
forte do sol acordara Lucinda Wilson, uma rapariga de treze anos.
Sentou-se imediatamente e, de seguida, ao sair da cama, lembrou-se: “Os
morangos na colina já devem estar prontos para serem colhidos”.
Lucinda tinha vindo a observar com ansiedade a colina coberta de
morangos silvestres. Era com grande alegria que planeava agora
surpreender a família com um cesto cheio de morangos maduros e
deliciosos para comerem ao pequeno-almoço.
Vestiu-se
rápida mas silenciosamente para não acordar a irmã. Lucinda tinha
dormido nessa noite na cama grande, uma vez que a irmã Mary, de
dezassete anos, estava a passar alguns dias com uma amiga numa quinta
vizinha, e Ruth, de quinze anos, dormia numa pequena alcova no enorme
quarto do andar de cima. A casa da família Wilson ficava a alguma
distância da estrada principal, e havia um caminho longo e estreito
desde o portão até à porta de entrada. Como este caminho parecia
demasiado longo, Lucinda decidiu seguir por um atalho em direção à
colina dos morangos, que se estendia ao longo da estrada principal.
Este atalho, que começava junto à capoeira, era praticamente invisível
devido ao crescimento emaranhado dos arbustos.
Lucinda
correu até à rua e começou a subir a colina. Ali estavam os morangos,
vermelhos e deliciosos. Começou a colhê-los rapidamente, mas o fundo do
cesto não estava ainda coberto quando ouviu uma voz a chamá-la da
estrada principal.
Sobressaltada,
olhou para baixo e viu dois homens a cavalo. Não os conhecia e a sua
primeira reação foi de alerta, pois a sua casa pertencia ao Underground Railroad. Estava
certa de que estes homens eram caçadores de escravos. No momento
seguinte, Lucinda viu que tinha razão. O homem que a chamara, de tez
morena e mal-humorado, voltou a dirigir-lhe a palavra:
—
Viste duas raparigas negras a passar por aqui? Duas raparigas de
dezassete ou dezoito anos? Temos a certeza de que elas levam apenas
alguns minutos de avanço.
Lucinda
acenou com a cabeça. Respondeu-lhes honestamente que tinha chegado
nesse instante e que não tinha visto ninguém para além deles. Os
cavaleiros seguiram caminho. Mas Lucinda não pensou mais nos morangos.
Tinha a certeza de que as duas raparigas iriam para sua casa e de que
aqueles homens as apanhariam mesmo à sua porta, a não ser que
conseguisse avisá-las antes. Discretamente, olhou para os caçadores de
escravos para se certificar de que nenhum deles estava a olhar para
trás. Então, precipitou-se para a estrada e desatou a correr para casa.
Em
poucos instantes, estava no terreiro da quinta e entrou em casa de
rompante. Mal abriu a porta das traseiras, ouviu a voz da mãe na parte
da frente da casa. As raparigas já lá estavam, e os homens chegariam
dentro de breves instantes. Sem fôlego, foi ter com a mãe e as
raparigas ao vestíbulo. A porta ainda estava aberta.
— Fechem a porta! Fechem a porta rapidamente! Eles vêm aí! — disse, ofegante.
No
momento em que proferia estas palavras, viu um cavalo a aparecer. A
mãe fechou a porta, trancou-a e olhou desesperadamente em volta, à
procura de um esconderijo para as duas raparigas. Estas choravam
apavoradas, pois tinham a certeza de que seriam arrastadas de volta e
de que nunca mais seriam livres.
— Rápido! Vão lá para cima! — disse Emily Wilson.
Correram
pelas escadas acima e entraram no quarto onde Ruth já estava a
vestir-se. Esta, espantada, olhou para as quatro pessoas que tinham
entrado de rompante.
— Lucinda, veste a camisa de noite, põe a touca e mete-te na cama outra vez — disse a mãe.
A mãe pegou nas roupas de Mary que estavam debaixo da almofada, e atirou-as a uma das fugitivas.
—
Veste isto e deita-te na cama com a minha filha. Fica do lado da
parede, de costas para a porta. Cobre bem a cara com a touca.
As
raparigas obedeceram imediatamente, e Emily Wilson levantou a tampa de
uma arca grande feita de verga, que estava encostada à parede.
Felizmente, estava quase vazia.
—
Mete-te aí dentro — disse ela à outra rapariga, que obedeceu de
imediato e se encolheu de modo a que a arca pudesse ser fechada.
Fez-se ouvir uma forte pancada na porta da frente.
— Ruth, veste o roupão, senta-te em cima da arca e tapa-a o mais possível. Os caçadores de escravos estão quase a chegar.
A
mãe olhou de relance o quarto, para se certificar de que não havia
indícios da presença das raparigas negras, e apressou-se a descer as
escadas para abrir a porta.
— Bom dia, minha senhora! Nós andamos à procura das duas escravas que estão aqui — disse um dos homens.
— A sério!? Como sabe que temos duas escravas aqui escondidas? — retorquiu ela.
—
Porque estávamos mesmo no seu encalço e temos a certeza de que não
passaram daqui. Por isso, vai ter de nos deixar revistar a casa.
— Estejam à vontade! Mas garanto-vos que vai ser uma perda de tempo.
— Veremos! — respondeu o homem.
Começaram
a revistar todas as divisões da casa. Emily Wilson deixou-os abrir as
portas e procurar à vontade até chegarem ao quarto das raparigas. Aí,
pôs-se à frente deles.
— As minhas três filhas dormem aqui e ainda é muito cedo. Peço-lhes que não entrem no quarto.
— Podem estar tanto aqui como em qualquer outro lugar — disse um dos homens. De seguida, abriu a porta e entrou.
Ali
estavam as três raparigas, duas na cama, tapadas até às orelhas, a
outra sentada sobre a arca, de roupão, como se tivesse sido apanhada de
surpresa. No entanto, lá dentro, a fugitiva aterrorizada tremia de tal
modo que Ruth tinha a impressão de que os homens deviam ver a arca a
abanar. Sentou-se o mais pesado que conseguiu e cobriu a arca com o
roupão. Um pouco embaraçados, os homens deram uma vista de olhos rápida
pelo quarto, abriram o guarda-vestidos e, como não encontrassem nada,
saíram novamente, balbuciando um pedido de desculpas.
—
Bem — disse um deles quando saíram do último quarto — parece que
aquelas raparigas, afinal, já passaram por aqui. É melhor
apressarmo-nos e talvez ainda as possamos apanhar.
— Eu avisei-os de que seria uma perda de tempo — disse Emily Wilson calmamente.
De
forma hospitaleira, ofereceu-lhes o pequeno-almoço, o que eles
recusaram de imediato, pois estavam com pressa. Partiram a cavalo, e só
então as raparigas sentiram-se livres para poderem sair dos seus
esconderijos.
—
Ainda bem que decidi ir apanhar morangos para o pequeno-almoço. Ainda
há tempo de voltar lá e encher o meu cesto. Afinal, vamos mesmo ter
morangos para o pequeno-almoço! — disse Lucinda.
As
duas raparigas ficaram tranquilamente em casa durante todo o dia. De
madrugada, uma carroça coberta levou-as para outra casa de Quakers. Daqui,
sem grandes riscos, foram levadas no dia seguinte, pois soube-se que
os dois caçadores de escravos tinham perdido o seu rasto e declararam
que as duas escravas fugitivas haviam desaparecido.
Anna Curtis
M. Clark; E. Briggs; C. Passmore (eds.)
Lighting Candles in the Dark
Philadelphia, FGC, 2001
(Tradução e adaptação)
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