Hoje partilho alguns excertos de um conto que escrevi e que
foi publicado, em dezembro 2016, na Coletânea NATALÍCIA
da Editorial Novembro
No fim da linha
A decisão foi quase
momentânea. Se pensasse muito, teria com certeza tomado outra. Ou talvez não. Não
tinha a certeza. O que sabia era que o Natal se aproximava e que os três filhos
estavam longe. Os amigos diziam-lhe: "Num instante, te pões em França ou
no Reino Unido". Porém, tal já não acontecia em relação à Austrália, para
onde o filho mais novo tinha emigrado. Os mesmos amigos brincavam com a
distante situação: "Arranjas um canguru
e dás um pulo até lá".
Só ele conhecia bem a realidade.
"Pai, se quiseres, podes vir passar o Natal connosco, mas prevê-se muita
neve para as aldeias dos Pirenéus. Lembra-te de que não gostas de ficar tanto
tempo no mesmo sítio".
"Pai, este ano, não
vamos celebrar o Natal como habitualmente. A Emma, nessa altura, está a
concluir a tese e tem de se concentrar".
"Pai, gostava que os
miúdos passassem o Natal com o avô, mas
já fomos no ano passado e as viagens são muito caras, como bem sabes. Não te
esqueças de que somos quatro e vivemos do outro lado do mundo".
(...)
Estava decidido: passaria a
noite de Natal sem família e sem amigos. Também já vivera tantos Natais
acompanhado, por que não podia passar essa noite só, se assim vivia tantas
outras? As pessoas estavam demasiado habituadas à ideia de que na noite de
Natal deviam estar acompanhadas, mas muitos dos seus serões eram passados na
solidão da casa, não procurando ninguém e sem ninguém as procurar. Tantas
noites em que apetecia falar sobre tudo e sobre nada, contar banais peripécias quotidianas,
mas o telefone não tocava e marcar um número
poderia aumentar, do outro lado, o cansaço ou aborrecimento.
(...)
Ao escurecer, pôs ao ombro o
saco de cor parda e fechou a porta de casa, sem estrondo. Caminhou até à
estação de comboio, entrando na última carruagem. Lá dentro, tirou uma página
de jornal e uma caneta do saco, que colocou no assento oposto, continuando a
fazer as palavras cruzadas que começara na véspera, também no comboio.
Como tinha passe, era um
modo barato de ouvir muitas histórias contadas por e em diferentes pessoas. Olhando
o jornal, parecia centrar-se na procura da palavra certa, mas ia escutando as
diferentes vozes, tomando as suas notas e fazendo pequeninos esboços para
eventuais ilustrações que acompanhavam os textos. Quase todos os dias encontrava
matéria que guardava ou logo reutilizava, dando-lhe novas formas e serventias.
Ria-se para si próprio quando se dizia um reciclador de histórias de comboio.
Os amigos chamavam-lhe excêntrico e só não tinham razão completa, dizia ele, porque
a conta bancária não aumentava por sorte ao jogo.
(...)
Duas paragens à frente, entrou uma outra mulher. Ângelo puxou o saco para si, libertando o assento da
frente, não fosse ela escolhê-lo, apesar dos muitos lugares vazios. Foi um
desejo ou um secreto convite. A mulher poderia chamar-se Lídia.
Com olhar distante, a
recém-chegada sentou-se, vagarosa e pensativa, em frente a Ângelo, fixando sempre
a janela do lado oposto. Ele via-a apenas de perfil. Continuou a fazer as
palavras cruzadas. Estranha opção para a noite de Natal, pensaria ela. Ou
talvez nem reparasse. O passageiro, que apenas um curto espaço da carruagem de
si separava, parecia ser-lhe indiferente. Como se houvesse apenas um estreito riacho
de permeio, mas do qual ela nem se apercebia, atenta que estava a uma das
margens. Olhava continuamente a janela do lado oposto e, de vez em quando, o ecrã
do telemóvel que segurava na mão. Como uma flor sem luz.
(...)
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