domingo, 22 de julho de 2012

Uma nostalgia feliz


Van Gogh


à Dolores, que se atreveu à renda, mas não ao poema

Há uma rendinha branquinha
Que fica linda, catita
Na saia rosa de chita
Da minha boneca de trapos.

Foi feita pela minha avó,
Neste moinho velhinho,
Onde agora eu me divido
No passado feito pó.

Nestas manhãs de silêncio,
Curadas em maresia,
Recordo as tardes alegres,
Em que ela rendas fazia.

Não eram só bonecas e netas
Que se alindavam em lavor,
Mas todas as roupas domingueiras
Para as visitas ao Senhor!

Também as roupas de cama,
As peças especiais
Para aqueles dias únicos,
Marcados por rituais,
Tinham seu toque de fada.

E agora, que guardo na arca,
Encostada à velha mó,
A bela boneca de trapos,
Rendilho a azul no papel
A infância rendilhada
Pelas mãos da minha avó!

IA, Porto, 22 de julho 2012

Nota - Obrigada, Isaura. Continua a rendilhar as palavras.

O solitário da rua

Era um funcionário público que, de dia, tinha toda a carga física e psicológica de um comum funcionário público.

Cumpria bem a sua missão: tinha os papéis organizados, sabia utilizar bem as novas tecnologias, atendia bem o público.

Não gostava que os utentes da repartição falassem muito alto, enquanto estavam à espera da sua vez. Também o irritava ouvir os toques estridentes do telemóvel e logo de seguida o "tôooo" habitual. Tentava controlar-se e todos diziam que era um homem calmo.

A hora mais feliz era a de saída. Não é que não gostasse de trabalhar na repartição, mas ir para casa ao fim da tarde era o momento alto do dia.

Quando tinha reuniões ou eventos à noite, sentia que um dia se colava ao outro sem o tempo de profunda liberdade de que sempre estava à espera e de que precisava para harmonizar a vida.

Chegava a casa, tirava a roupa que logo separava: ou para usar de novo ou para lavar. Vestia a roupa do campo, calçava as botas, punha o boné e saía para o exterior da casa.

Um dia, olhou-se ao espelho do móvel junto à porta e até lhe pareceu que a sua imagem era a de um belo homem, mas logo saiu para o trabalho diário no jardim e no quintal. Não tinha tempo a perder e daí a nada cairia a noite.

Os cães aproximavam-se sempre à espera de festas. E era preciso regar o feijão, as árvores de fruto, tirar as ervas às aromáticas...

No final do dia, depois do jantar, sentava-se a ler e a ouvir música.

Ao seu lado, um copo de vinho tinto. 
E uma fotografia com uma legenda desenhada e redonda: Para o homem mais belo da minha vida

Sorria e ia pôr o copo, vazio, na cozinha.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

"Delicadeza"


Uma jovem (Audrey Tautou - a inesquecível Amélie) vive só, dedicando-se inteiramente ao trabalho. O companheiro tinha morrido de forma trágica e repentina.

Anos mais tarde, conhece Markus (François Damiens), que trabalha no mesmo local. Ele é enorme, desajeitado, delicado, generoso, terno, boa pessoa, apaixonado por Nathalie...


Os dois, depois de várias peripécias, resolvem mudar de vida num dia de chuva intensa que os recebe no regressa às origens.


No final do filme, as pessoas (na sala do Arrábida, onde não havia muita gente) não se levantaram logo. A música final continuava a ser bonita e convidava a ficar mais um bocadinho.

A história tinha feito sorrir, reparar em pequenos gestos humanos que são sinais do amor e de seus contrários. 

Ah, e o filme mostra pequenas ruas de Paris, cafés envidraçados, o piscar  das luzes na Torre Eiffel...

Apesar de real e terreno, o filme revela uma amorosa e doce "Delicadeza" sempre bem-vinda.


O diário de Mariana


Querido diário,
20 de julho 2012
No próximo ano, já não devo ter a setora C. Para além de ser sempre fixe com toda a gente, via-se mesmo que gostava de dar aulas e de fazer atividades na escola. 

Eu conheço vários alunos que quiseram tirar o mesmo curso que ela, porque ela motivava mesmo. Dava valor ao que dizíamos, achava importante o que fazíamos, ensinava a fazer melhor quando tínhamos dificuldades... 

Sei lá, tanta coisa altamente de que me lembro. E agora tem de concorrer e se calhar vai mesmo para outra escola. Eu acho isso horrível. E ela uma vez disse que estava na escola há mais de vinte anos.

Quando chegava à aula, vinha sempre bem disposta. Eu, um dia, ganhei coragem e disse assim:
- Ó setora, você não tem problemas como toda a gente? Parece que anda sempre tão feliz!
E ela disse assim, sempre com um sorriso alegre:
-Ó Mariana, o você, neste caso, não condiz nada contigo. Já te esqueceste do que vos expliquei sobre as formas de tratamento?
- Desculpe, setora, mas esqueci-me. Vejo-a sempre contente e até fico curiosa.
- Claro, Mariana, que tenho problemas, mas gosto tanto de dar aulas que até os esqueço enquanto estou na escola.

Com isto, eu achei-a mais fixe ainda. Até me vêm as lágrimas aos olhos quando penso nisso. Eu não quero fazer de conta que sou o Calimero, mas acho que há coisas muito injustas. Por exemplo, a minha cadela foi atropelada e o condutor andou sempre. Às vezes, somos tão mal educados. Parece que ninguém se quer chatear e quer lá saber dos outros. Eu falo da Castanha porque ela já faz parte de nós, apesar de fazer estragos nas plantas, mas é por ser muito nova ainda.

Isto da setora C. poder sair da escola só por ser menos graduada não me sai da cabeça. É menos graduada mas estudou para ter um curso da Faculdade e tirou-o honestamente. Não é como aqueles políticos que fazem batota para terem cursos sem frequentarem as aulas, sem fazerem exames nem nada e ficam, ficam nos lugares como se tivessem pilhas duracel! Não há direito!

Não me conformo. Acho que somos todos um bocado totós. Eu falo por mim, mas acho que não sou só eu. E depois eles abusam e de que maneira. Acho que devia haver mais justiça.

Muitos abracinhos, querido diário.

Mariana

"Cães como nós"

Ontem à noite, a minha cadela (a Castanha), vendo o portão a entreabrir-se, saiu para a rua. Passou um carro e atropelou-a. Foi forte o impacto e o estrondo, apesar de a Castanha não ser grande.

Caída em plena rua, logo corri para a recolher, enquanto o condutor seguia o seu percurso.
Parto do princípio que se fosse uma pessoa, o condutor pararia, mas esta atitude de (aparente) indiferença deixa dúvidas.

Felizmente julgo que poderei continuar a ter a companhia da Castanha, porque está a recuperar, mas apetece-me dizer que estes procedimentos parecem "cães como eles".




quinta-feira, 19 de julho de 2012

"Convidatória"

Alguém começou a utilizar a nova palavra: "convidatória". E passou a dar resultado para reuniões não obrigatórias.

A palavra "convocatória" soava a obrigação, a necessidade de  redação de uma ata, ao respeito mais formal de uma ordem de trabalhos.

"Convidatória" lembrava mais liberdade, participação voluntária, preparação do trabalho de maneira mais gostosa, igualmente atempada e criativa.

De forma espontânea, o grupo foi aumentando e o trabalho realizado para o próximo ano letivo foi produzido de forma mais alegre e eficaz.

Felizmente, para além das pessoas, as palavras que se criam também podem ser motivadoras!

Humberto e a macieira



Nos arredores de uma pequena cidade viveu em tempos um homem. Chamava-se Humberto. Humberto era um homem simpático, de olhos bondosos e uns óculos muito pequeninos pousados no nariz. Os seus caracóis castanhos pareciam a lã de uma ovelha. Morava numa casa velha e torta que se escondia tímida, quase envergonhada, por detrás de um belo jardim. No jardim, num prado verde e florido, havia uma macieira.

Todas as manhãs, quando se levantava, Humberto maravilhava-se com a beleza da sua árvore. Ao fim da tarde, quando regressava do trabalho, sentava-se durante horas a ver os pássaros na copa da macieira. Na verdade, devemos dizer que não é nada aborrecido estar a observar uma árvore. Algumas são verdadeiras artistas da mudança.


 Na primavera, vestem-se de mantos floridos e estendem os ramos para o calor, enquanto as abelhas laboriosas as procuram em busca de alimento. No verão, oferecem a sua sombra, enquanto o sol brilha com tanta intensidade que faz as pessoas andarem de rostos afogueados. No outono, o vento forte brinca sem descanso com as folhas amarelas, vermelhas e castanhas e espalha-as pelos prados e ruas, até que o inverno vista a paisagem de um manto branco.


Quando Humberto se deitava debaixo da macieira, lembrava-se de como costumava trepar por ela acima em criança. Muitas vezes se escondera nos seus ramos, quando a mãe o chamava para almoçar e ele ainda não tinha vontade de voltar para casa. Quando Humberto contemplava a sua árvore, sentia uma alegria imensa. Acontecia também que as pessoas paravam junto à cerca – uma mãe ou um pai com um filho, por exemplo. Por vezes alguém exclamava:
― Olha, que bonita!
Mas a maioria das pessoas passava apressadamente. Parecia que havia muitas coisas urgentes a fazer naquela cidade tão pequena.
Assim passaram os anos. Humberto ficou mais velho. A cara ficou coberta de rugas. O cabelo ficou, primeiro grisalho, depois branco e, com o tempo, desapareceu como as folhas no Outono. Só a barba continuava a crescer luxuriante, cobrindo-lhe o queixo e descendo pelo pescoço até ao peito. Humberto, contudo, continuava feliz, observando horas sem fim a árvore e os pássaros. Se apanhava crianças atrevidas a roubar maçãs, limitava-se a rir e gritava:
― Assim é que elas sabem bem, não é?


Os miúdos, então, fugiam envergonhados. Um dia, contudo, aconteceu uma coisa horrível. Era mais uma vez outono. O vento forte batia violento nas janelas e fazia as folhas coloridas girar no ar. Das montanhas em redor vieram nuvens carregadas de tempestade. Eram tão negras, sinistras e assustadoras que as pessoas fugiram para casa. Humberto também fechou a janela depois do primeiro trovão, mas ficou a ver o que acontecia, abrigado atrás do vidro.
Logo começaram a cair grossos pingos de chuva na janela. Depois, abateu-se um chuveiro sobre a pequena cidade, como se alguém muito zangado tivesse aberto a torneira. Entretanto, os relâmpagos riscaram o céu, acompanhados de trovões cada vez mais fortes e ameaçadores. De repente, o coração de Humberto ficou paralisado de susto. Diante dos seus olhos, um raio riscou o céu e caiu sobre a macieira com um estrondo tremendo. Ela estalou e gemeu enquanto o tronco se fendia em dois. Depois, a chuva refrescou a ferida. A tempestade passou.
Ali estava a árvore que fora tão bela. Oferecia um aspeto muito triste. Ficara tão retorcida e nodosa como a casa. Uma visão estranha. O tronco tinha uma cicatriz que ia até às raízes poderosas.
― Isso dói ― disse Humberto à árvore, dando-lhe uma palmadinha afetuosa.
A árvore suspirou baixinho. E, se as pessoas soubessem que as árvores também choram, talvez Humberto tivesse reparado nas gotas que havia na casca da macieira. 


A primavera seguinte foi quente e cheia de sol. O canto dos pássaros era uma maravilha. As flores cresciam por toda a parte. Só a árvore continuava retorcida, nodosa e triste. Algumas folhas pequeninas tinham nascido e havia algumas flores em redor das quais as abelhas se atarefavam. Mas, embora se esforçasse, a pobre árvore já não tinha forças para florir como no passado. Ainda tinha dores, quando o tempo mudava ou o sol lhe queimava o tronco. Mas isso não era o pior. Ultimamente, as pessoas paravam outra vez a olhar para ela. Sem coração, miravam-na e chamavam-lhe “feia” e “nódoa”.
― Aquilo devia ser cortado ― tinha dito uma mulher, e um homem respondera que aquele era um bom local para um parque de estacionamento ou, pelo menos, para um relvado agradável, se a árvore não estivesse lá.
A árvore ficava cada vez mais triste. As lágrimas corriam pelos novos rebentos, tornando-os cada vez mais fracos. Humberto irritava-se com os comentários das pessoas. Gostava da árvore tal como ela era. Observava as aves a esvoaçar nos ramos e, à noitinha, dava-lhe palmadinhas no tronco.
― Fora daqui! ― gritava furioso, perseguindo com uma vassoura as pessoas pasmadas e surpreendidas.
No entanto, não servia de nada. Apareciam sempre outras pessoas com comentários desagradáveis. Um dia, montou na sua bicicleta ferrugenta. Os vizinhos ficaram espantados com o sorriso que ostentava no rosto. Algumas horas mais tarde, regressou carregado. Foi a correr ao barracão buscar uma pá e começou a cavar energicamente junto ao tronco da macieira. Só parou quando já tinha uma cova bem funda. Aí plantou uma pequena macieira delicada, que mal lhe chegava à altura da barba. “Assim, pelo menos, vamos ficar livres daquela árvore,” pensaram as pessoas. Mas Humberto sorriu malicioso, cobriu as raízes da macieira com terra, regou-a muito bem e foi arrumar a pá.


Passaram muitos anos. Primaveras, verões, outonos e invernos, uns atrás dos outros. Humberto transformara-se num velho curvado, que se sentava satisfeito à janela. A pequena macieira crescera tanto e estava tão carregada de frutos que Humberto não conseguia comê-los todos sozinho. A velha árvore retorcida continuava no jardim. Protegida pelos ramos da árvore jovem, vivia sossegada e contente.
Bastavam-lhe as poucas folhas e rebentos que corajosamente produzia todas as primaveras. Sorria secretamente sempre que uma criança roubava uma das suas maçãs, que já há alguns anos eram enrugadas e pequenas. As pessoas continuavam a passar apressadamente, tratando da sua vida. Já ninguém ligava às duas árvores. Contudo, de vez em quando, alguém parava e contemplava-as com satisfação.
Numa tarde de outono, a árvore sentiu inesperadamente o toque familiar de uma mão. O velho Humberto caminhara silenciosamente até ela e murmurara-lhe qualquer coisa. A árvore acenara em resposta. Também tinha sentido. O ar cheirava a neve. O inverno estava à porta. Era tempo de repousar. Enquanto os primeiros flocos de neve dançavam na janela e Humberto estava deitado na cama, a árvore, lá fora, também adormeceu. E assim, dormindo sossegados, ambos sonhavam com a primavera.
Bruno Hächler
Humberto e a Macieira
Porto, Ambar, 2000

quarta-feira, 18 de julho de 2012

"Sabes quanto vales?"

É constrangedor o que se está a passar em muitas escolas com a redução do pessoal docente. Julgo não errar se disser que são dezenas, por estabelecimento de ensino público, que deixam de ter lugar. 

Vão sendo conhecidos casos de professores na casa dos quarenta-cinquenta anos que, de repente, se veem obrigados a concorrer para outras escolas. O que lhes é dito é que em caso de não haver vaga, regressarão à escola para outro tipo de trabalhos. O ministro diz que todos terão lugar, o que não diz é até quando.

Apesar de o mês de setembro já estar próximo, não se sabe que trabalhos vão executar os professores que ficarem com o horário zero. Pesa também o receio de, mais tarde ou mais cedo, o lugar poder ser extinto.

Claro que tal acontece em qualquer área profissional e a contenção de custos parece ser uma necessidade à qual não se pode fugir.

Para se poupar dinheiro, criam-se mega-agrupamentos de escolas, aumenta-se o número de alunos por turma, reduzindo-se os horários. No entanto, quase ao lado de muitas escolas públicas, existem estabelecimentos de ensino privados que são subsidiados pelo estado.
Essas escolas privadas selecionam os alunos e, mesmo assim, recebem dinheiros públicos.
Então não há dinheiro para umas coisas e há para outras?

Para além destes factos, o critério de afastamento dos professores assenta apenas na sua graduação. A qualidade do trabalho realizado ao longo dos anos de nada parece valer.

Esta situação faz-me lembrar um programa televisivo brasileiro em que se repetia:
- "Sabes quanto vales"?
- "Vales zero"!

As novas gerações vão interrogar-se se vale a pena participar ativamente do Projeto Educativo de escola e do Plano de Atividades.

Já que valem zero, têm mais que fazer.


terça-feira, 17 de julho de 2012

Abertos à prova do tempo



Olhando contrastes naturais




Que calor!

Seurat

Os últimos dias têm sido de muito calor. Não só durante o dia, mas também à noite.
Que calor! - É a expressão repetida.

E recordo os tempos de infância, ouvindo que não se devia dizer mal do tempo. O tempo era de aceitação e resignação.

Será diferente agora?

Queixamo-nos do calor, mas, se encontrarmos uma sombra, logo esquecemos a canícula.

Está calor. De repente, pode dar lugar ao frio. Também de bastante resignação. 

Felizmente (ainda) podemos dizê-lo.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Sozinha na sala

Ângelo de Sousa

A sala estava vazia. A porta, pesadíssima, fechou-se e eu sentei-me. Como coadjuvante, peguei na prova de exame, li os textos e comecei a responder às questões. Tal como os alunos do 12º ano que estavam nas diferentes salas da escola.
O texto principal era retirado do livro Memorial do Convento de José Saramago e, no excerto, lá estavam as relações entre homem e mulher, entre pais e filhos; os malefícios da guerra...

Outro texto abordava o "esvaziamento de palavras" como honra, fé, verdade, razão...
Até onde nos levará este vazio de tantos sentidos?

Na composição, os alunos tinham de apresentar uma reflexão sobre os papéis do homem e da mulher nos dias de hoje.
Imaginei que surgiriam bastantes banalidades, mas também argumentos e exemplos de quem está atento ao mundo e à importância de todos na construção da sociedade.

Pela janela, via as pessoas a entrarem no edifício escolar. Algumas delas a lecionar na escola. Nos seus ouvidos, ainda soaria o anúncio de que tinham de concorrer para outras escolas porque provavelmente não haveria vaga.

O aumento de alunos por turma iria reduzir o número de turmas e, por consequência, o número de horários.

Alguns professores falavam de um murro no estômago: depois de tanto tempo na escola, ter agora de sair? 

E vinham à memória atividades realizadas por muitos desses docentes, que pareciam de nada valer, no momento da fria contagem de alunos e professores para encaixarem no menor número de horários para, assim, reduzir custos.

E já tinha havido lágrimas, porque o concurso, a procura de vagas, o horário zero poderiam ser o prenúncio do fim precipitado de uma carreira.

E eu continuava sozinha na sala, agora já com o exame resolvido. Poderia ser necessária enquanto durasse a resolução da prova.

Uma amálgama de pensamentos, de sensações.
E, mais uma vez, pensei que, para além da maravilha que é aprender e ensinar, há muitos momentos em que cada pessoa se sente ou está sozinha na(s) sala(s).

"Um pouco mais de azul..."



domingo, 15 de julho de 2012

Um coche especial

Imagem da net

 A mãe da menina era desenhadora de moda para crianças e teve uma ideia especial. Porque a filha também era especial. Mas não era só por ser sua filha, embora os nossos filhos sejam sempre especiais.

A menina era especial porque não andava, não falava, apesar de já ter cinco anos.  Também era especial porque era amada como muitas princesas não são amadas. E por tudo o que os pais nela descobriam e era motivo de redobrado amor.

Quando a menina nasceu, perante o conhecimento dos pais acerca do problema que a tornaria uma menina cada vez mais especial, a mãe decidiu ficar em casa para cuidar dela. Embora custasse entendê-lo e aceitá-lo, a menina seria dependente de outrem durante toda a sua vida; nunca seria capaz de ser autónoma e satisfazer as suas necessidades básicas.

A mãe da menina especial sempre tinha amado a sua profissão, mas a filha precisava dela a tempo inteiro. A opção foi deixar o trabalho fora de casa.

Continuou, porém, em casa, a desenhar e a executar alguns modelos. E chegou a festa do Halloween.
Para além das roupas para a filha, a mãe desenhou e executou um coche que encaixava na cadeirinha de rodas. Lá dentro, a menina especial parecia uma princesinha também especial.

A menina, no seu belo e claro coche, parecia feliz. Nesse dia, a ideia especial ajudou a que tudo corresse sobre rodas.


A menina, no seu coche, também especial, parecia uma linda princesa de Era uma vez... 

Imagem da net



sábado, 14 de julho de 2012

Avec le temps...



Léo Ferré


www.youtube.com/watch?v=aiXcUTTLud4


Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
On oublie le visage et l'on oublie la voix
Le coeur, quand ça bat plus, c'est pas la peine d'aller
Chercher plus loin, faut laisser faire et c'est très bien

Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
L'autre qu'on adorait, qu'on cherchait sous la pluie
L'autre qu'on devinait au détour d'un regard
Entre les mots, entre les lignes et sous le fard
D'un serment maquillé qui s'en va faire sa nuit
Avec le temps tout s'évanouit

Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
Même les plus chouettes souvenirs ça t'as une de ces gueules
A la Galerie je farfouille dans les rayons de la mort
Le samedi soir quand la tendresse s'en va tout seule

Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
L'autre à qui l'on croyait pour un rhume, pour un rien
L'autre à qui l'on donnait du vent et des bijoux
Pour qui l'on eût vendu son âme pour quelques sous
Devant quoi l'on se traînait comme traînent les chiens
Avec le temps, va, tout va bien

Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
On oublie les passions et l'on oublie les voix
Qui vous disaient tout bas les mots des pauvres gens
Ne rentre pas trop tard, surtout ne prends pas froid

Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
Et l'on se sent blanchi comme un cheval fourbu
Et l'on se sent glacé dans un lit de hasard
Et l'on se sent tout seul peut-être mais peinard
Et l'on se sent floué par les années perdues
Alors vraiment
Avec le temps on n'aime plus.
Léo Ferré

«Avec le temps» de Léo Ferré : Paroles écrites et chanson composée en 1969, enregistrée en octobre 1970

sexta-feira, 13 de julho de 2012

"O CONSTANTE DIÁLOGO"

                                                                  

Há tantos diálogos

Diálogo com o ser amado
o semelhante
o diferente
o indiferente
o oposto
o adversário
o surdo-mudo
o possesso
o irracional
o vegetal
o mineral
o inominado

Diálogo consigo mesmo
com a noite
os astros
os mortos
as ideias
o sonho
o passado
o mais que futuro

Escolhe teu diálogo
e
tua melhor palavra
ou
teu melhor silêncio

Mesmo no silêncio e com o silêncio
dialogamos.
Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Com 30 será um 31!

Pelo que vai sendo dito, as turmas, no próximo ano, vão ser ainda mais numerosas. Fala-se de trinta alunos por turma. Ora, uma aula não é como abrir uma torneira para que cada um, de igual forma, apare a água necessária. 

Pressupõe-se que o professor conheça minimamente os alunos para que todos possam progredir. E como se trata de pessoas, há muitas diferenças.

Muitas salas de aula de escolas intervencionadas ficaram mais pequenas. As turmas aumentam e o espaço de muitas salas reduz-se. 

Pretende-se instaurar a disciplina na sala de aula e acentuar a autoridade do professor. Como assim? 

Se os alunos por turma aumentarem, vai-se poupar muito dinheiro, porque o número de professores em cada escola vai ser reduzido. 

É esse o único objetivo? Então, por que se diz tão placidamente que se pretende um ensino e aprendizagem com mais rigor?

Querem 30 e criam um 31!


É um pouco longa a história, mas vale a pena!

 Imagem da net
No país de Iqbal

Para todas aquelas crianças que trabalham sem ter idade,
em qualquer parte do mundo.

Kevin recebeu no seu aniversário uma bola fantástica. Mas sempre que a atira para a fazer saltar, a bola abate-se sobre a relva sem a menor vontade de se divertir. Não há dúvida, aquela bola tem alguma coisa que não bate certo! Kevin fica tão zangado que a fecha dentro do cesto da roupa suja. É então que um rapazinho tenta sair pelo minúsculo orifício da válvula. Chama-se Iqbal e vem de um país longínquo onde obrigam as crianças a trabalhar. Explica a Kevin que pôde fugir graças a uma palavra mágica: Shabatsé. Mas Iqbal já tinha pronunciado a referida palavra quando se apercebeu de que não deveria tê-lo feito. Tarde demais! Kevin e Iqbal são ambos sugados para dentro da bola…


1
— Feliz aniversário, querido!
Kevin sopra as velas. Apaga-as de uma só vez. À volta dele, pais e amigos gritam e aplaudem. Kevin pode agora abrir os presentes. Gosta particularmente deste momento, em que rasga o papel dos embrulhos. Estragam-no com mimos. Como acontece todos os anos. Começa pelos sobrescritos que contêm dinheiro, mas o que mais gosta de abrir são, é claro, os presentes de verdade. Dos três embrulhos, Kevin já percebeu qual é o melhor, aquele por que está à espera. Guarda-o para o fim.
— Uau, é tão bonita! — exclama.
Exactamente o que ele queria: uma bola de couro, cosida. Uma bola de jogador
profissional, azul e branca, ainda mais lisa e brilhante do que nos seus sonhos. Tira-a da caixa, segurando-a com a ponta dos dedos, como se fosse de açúcar. Kevin queria uma bola, porque Laurent, o seu vizinho, tem uma e nunca quer emprestá-la por muito tempo. No entanto, é muito menos bonita.
Quando jogam na praceta em frente das vivendas, sempre que Laurent começa a perder, encontra um pretexto para se zangar. Pega na bola e vai-se embora. E, claro, o jogo acaba. É irritante. De futuro, ninguém voltará a interromper a partida enquanto Kevin quiser continuar a jogar; ninguém poderá suspendê-la contra a sua vontade. Nunca se sentira tão feliz.
— Dá cá! — pede o pai, estendendo as mãos.
É a sua vez de agarrar na bola. Acaricia-a, fá-la saltar, que vontade de lhe dar uns bons pontapés!
— Dá-ma, por favor — atalha rapidamente Kevin, que sabe o pai que tem. Quando este segura uma bola nas mãos, torna-se uma autêntica criança. É capaz de a estragar sem querer.
— Se querem jogar, vão para o jardim!
A mãe conhece-os bem, e já começa a recear pelos móveis e adornos. Kevin não espera que lhe digam duas vezes e desata a fugir com o seu presente. Nem sequer espera até chegar ao relvado. Ainda vai a meio do terraço e já quer experimentar a bola. Lança-a ao chão e estende as mãos para a apanhar…Mas não apanha nada! As mãos estendidas ficam vazias. A bola não saltou. Caiu como goma sobre a tijoleira. Não voltou a mover-se, ficou como que colada e mole. Dir-se-ia um marshmallow.
Espantado, Kevin baixa-se para pegar no seu tesouro. Espantado, mas não inquieto. Esta bola não pode ser de má qualidade. Foi ele, Kevin, que a atirou mal… Ou então é a tijoleira do terraço que está pegajosa, provavelmente cheia de compota. Seja como for, tratou-se de um acidente que não voltará a acontecer. Kevin limpa a bola e dá-lhe lustro. Observa-lhe discretamente todas as costuras mas, nada, está tudo perfeito. A bola precisa é de erva. No relvado vai renascer.
Kevin afasta-se da casa e espera o momento de chegar a meio do relvado para atirar ao ar o seu brinquedo. Lança a bola para o céu, o mais alto que lhe é possível. Orgulhosamente, vê-a descer, lisa, brilhante, azul e branca, bela. Vê-a descer… e abater-se sobre aquele tapete de relva tão suave, sem o menor desejo de saltar e de se divertir. Não há dúvida, esta bola tem algum defeito, há algo que não bate certo.


2
— Então! Não chores! É porque a bola não está suficientemente cheia. Acontece muitas vezes quando são novas.
Kevin tinha ido contar ao pai a sua desdita. Apesar dos esforços para se conter, os olhos estão cheios de lágrimas. O pai enterra os fortes polegares no couro, que cede facilmente.
— O que é que eu dizia! Anda, vamos arranjar isto!
Kevin assoa-se e vai com o pai até à garagem. Está cabisbaixo, ainda não sorri, mas já recuperou a esperança. O pai de Kevin é habilidoso. Na garagem, penduradas na parede ou guardadas numa gaveta, há ferramentas que permitem consertar tudo o que não funciona bem à face da terra.
— Não mexas! Sei que há uma bomba de ar em qualquer lado… Cá está, nesta caixa…
Introduz um tubo fino como uma agulha na bomba de ar e, com firmeza, segura a bola recalcitrante entre os joelhos. E depressa lhe devolve a boa cara que ela nunca deveria ter perdido.
— Anda, apanha-a, se fores capaz!
A porta da garagem abre para o jardim. O pai lança a bola com tanta força que esta devia saltar até à parede do fundo. Kevin corre atrás dela, a rir-se… Mas não por muito tempo! Cheia ou não, a bonita bola deixa-se ficar na relva, após dois ou três saltos ofegantes. Não chegará nunca à parede do fundo.
Mais uma vez a esperança morre nos olhos de Kevin.
— Tens razão — constata o pai — algum defeito há de ter, na verdade. Talvez um problema no couro, não compreendo… Guardei o talão de compra. Amanhã vamos à loja para a trocarmos, não te preocupes!
Kevin encolhe os ombros:
— Amanhã, amanhã!
Não está preocupado, mas a festa, o seu aniversário, é hoje, não amanhã! Com um pontapé furioso, atira aquele trapo mole para um canto, já que não serve para nada. E Kevin decide esquecê-la. Afinal, tem outros brinquedos, brinquedos de verdade que gostam de se divertir, brinquedos de confiança.
Chegada a noite, ainda se sente tão zangado que continua a não querer ocupar-se daquele brinquedo tão decepcionante.
— Pode dormir lá fora, é o que merece.
Mas o pai não está de acordo.
— Não, não, Kevin. Vai buscá-la e guarda-a. Se a perderes ou estragares, já não podes trocá-la.
É verdade. Kevin reconhece-o. O pai tem razão. Vai buscar a bola. Empurra-a com o pé até ao terraço, como se fosse uma velha lata de conserva, depois pega nela sem qualquer cuidado. À entrada do quarto está o cesto da roupa suja. Atira-a lá para dentro.
— Dorme bem! — ironiza.
De agora em diante só quer esquecê-la, mas sente-se tão irritado que não é capaz de o fazer. Antes de se deitar, não consegue deixar de se virar uma vez mais para o cesto, onde a deixou:
— Não se admite o que fizeste, não se admite! No teu lugar, escondia-me. Não tens o direito de ser tão bonita, de brilhar, para depois não servires para nada quando contamos contigo. Não tens o direito de te esvaziares dessa maneira… Uma idiota, é o que tu és! Detesto-te!... Ainda bem que não te mostrei aos meus colegas. Que vergonha!... Mas não faz mal, não perdes pela demora. Amanhã vais voltar para de onde vieste, e nunca mais quero ouvir falar de ti!
Mais calmo depois destas duras palavras, Kevin deita-se e apaga a luz. Está tão cansado que adormeceria bem depressa se, por detrás dele, um estranho barulho se não fizesse ouvir.


3


Um estranho barulho, na verdade, como o de alguém a fungar, como o soluço abafado de uma criança. No meio da escuridão, Kevin ergue-se e aguça o ouvido.
— És mau! — escuta distintamente.
Desorientado, volta a acender a luz da mesa-de-cabeceira:
— Quem foi que falou, quem? — pergunta Kevin, cada vez mais inquieto.
— Aqui! — decide-se a dizer a voz misteriosa. — Aqui! Na tua bola!
De facto, a voz parece sair do cesto da roupa suja. Kevin senta-se na beira da cama, virado para o cesto, sem se atrever a aproximar-se. É impossível, não consegue acreditar!
— Uma bola não fala! Uma bola não tem boca!
— Uma bola também não tem ouvidos e, no entanto, dirigiste-me a palavra, deste-me uma lição de moral durante um quarto de hora! Verdade ou mentira? Julgo até que me chamaste “idiota”…
— Escapou-me…
— Bem vês que não é assim tão simples.
Com os olhos encarquilhados e a boca aberta, quase sem respirar, Kevin fixa o recipiente.
— Vá, não fiques assim. Vou explicar-te. Mas, por favor, tira-me deste cesto de roupa suja.
Kevin obedece como um autómato. Aproxima-se e levanta a tampa. É de facto a bola que está lá dentro, a própria bola. Pega nela cautelosamente, com as pontas dos dedos mas, desta vez, é por ter medo dela. Com os braços esticados, leva-a até à cama e pousa-a em cima do colchão.
— Pára lá com essas fitas! Anda ajudar-me! — impacienta-se a voz.
Kevin dá um enorme grito, porque a voz já não vem de dentro da bola. Um rapazinho da sua idade esforça-se por sair pelo minúsculo orifício da válvula. Já libertou a cabeça e os ombros. Com as duas mãos apoiadas no couro, tenta soltar o resto do corpo, e é a voz dele que se ouve.
Kevin esconde o rosto. Já nem se atreve a olhar.
— Não! É demais! Vim parar à casa do rei dos medricas, ou quê? Anda ajudar--me, já te disse! Acho que fiquei preso.
Kevin ainda tem medo, mas sente-se envergonhado. Não pode continuar a tremer. Faz um esforço para se aproximar. É verdade que o rapaz não é nenhum monstro. Com os cabelos muito negros e muito lisos colados à testa, é parecido com qualquer outra criança. Kevin agarra a bola, segura nela com firmeza para a impedir de deslizar para os lados, enquanto o seu estranho visitante faz cada vez mais força com os braços.
— Assim, isso! Aguenta!
Faz tanta força que se liberta num rompante, de uma forma tão brusca como a rolha de uma garrafa de champanhe. Depois de um enorme trambolhão, acaba sentado, de costas contra a parede, a um canto do quarto. Ri-se. Os dentes reluzem--lhe no rosto tisnado. Kevin ri também. O medo desaparece. O coração continua a bater-lhe acelerado, mas por causa do esforço e da emoção.
— É um caso sério sair de lá de dentro. Ainda bem que me ajudaste, se não, ainda lá estava!
Kevin encolheu os ombros. Concorda, sente-se até orgulhoso, mas nem sabe o que dizer. Não se pode falar tranquilamente, como se nada fosse, com alguém saído
não se sabe de onde. Antes de mais, Kevin precisa de algumas explicações. O rapaz compreende.
— Queres saber como cheguei até aqui? É normal! Vou explicar-te, conforme prometi.
Levanta-se e alisa a roupa amarrotada: uma longa túnica, uma espécie de camisa de noite. Satisfeito, senta-se confortavelmente com as pernas cruzadas, em cima da alcatifa. Kevin instala-se a seu lado, com as costas apoiadas na beira da cama.
Para começar, o rapaz apresenta-se:
— Chamo-me Iqbal… Tu, chamas-te Kevin. Ouvi o teu pai chamar-te assim.
— Ouvias tudo dentro da bola?
— Claro!
— E… (Kevin lembra-se dos seus pontapés furiosos) também sentias tudo? Devo ter-te magoado! Desculpa.
— Não te preocupes, já vi outras coisas bem piores no local onde trabalho! Aliás, foi por isso que fugi.
— Trabalhar… Fugir… Continuo sem perceber! Antes de mais, diz-me de onde vens.
— Venho de muito longe. Venho do país onde se fazem as bolas.
 

4

Kevin, que se instalara sensatamente junto do seu convidado, levanta-se de um salto, furioso:
— Estás a exagerar! Do país onde se fazem as bolas? Tretas! Julgas, se calhar, que na minha idade ainda acredito em contos como o da Branca de Neve e os sete anões? Que ainda acredito naqueles países extraordinários onde se diz que seres minúsculos fabricam os nossos objectos quotidianos? Obrigado, mas já passei a idade dessas tolices! Ando na escola e sei que os objectos são feitos em fábricas por máquinas e até por robôs… Não tentes baralhar-me!
— Mas eu não estou a tentar baralhar-te. Juro que estou a dizer a verdade: as bolas como esta são quase todas fabricadas no meu país, um país de verdade. Os bocados são unidos com um fio e uma agulha enorme por crianças da minha idade. No que me diz respeito, não os contei, mas devo ter cosido seguramente uns milhares.
— Ah, bem… Desculpa, é que não gosto que me tomem por um imbecil.
Kevin acalma-se. Senta-se e repete:
— Desculpa! Explica-me agora por que razão fugiste e, principalmente, como.
— Porquê, é fácil de explicar. Mas como foi, já te previno, não é nada fácil. Nem eu consegui ainda perceber!
— Se não percebeste, então quero ouvir o que tens a dizer-me. Conta.
— Foi certamente por influência da minha avó. Ela é extraordinária! É velha, velha, e conhece coisas que tu nem imaginas… Olha, estamos aqui os dois a conversar, como se falássemos a mesma língua!... Tenho a certeza de que se deve a ela.
— Estranho, de facto… Mas fala-me da tua avó!
— Ela ficou cega mas, com as mãos, continua a fazer milagres. Cura as queimaduras, afasta o mal. As pessoas vêm vê-la de muito longe, pagam para falar com ela… Gosto de me sentar à beira da minha avó, embora ela às vezes me assuste. Costumava dizer:
— Sinto o infortúnio pairar sobre ti! Tem cuidado.
Um dia, acrescentou:
— Ouve, se alguém quiser fazer-te mal, pronuncia esta palavra, só esta palavra, e serás salvo.
Advertiu-me com um ar tão trágico que a palavra ficou logo gravada na minha memória.
— Serviste-te dela porque queriam matar-te? Foi isso, não foi? — diz Kevin de imediato, impressionado com a história.
— De certo modo… O dono da oficina onde cosemos as bolas batia-me cada vez mais.
— Porque é que te batia?
— Apercebi-me de que ele era um ladrão… Tinha emprestado dinheiro ao meu pai, e o meu trabalho seria para o ajudar a reembolsá-lo. Trabalhava até rebentar e o meu pai também, mas a dívida não diminuía. Havia um ardil por detrás, ele era um ladrão.
— O patife!
— Dizes bem. Da primeira vez que quis protestar, começou a dar-me murros… Uma noite, vinguei-me, inundei-lhe o stock, os caixotes prontos para partir para todos os países do mundo.
— Bem feito!
— Talvez, mas ele ficou louco. Agarrou num pau enorme e atirou-se a mim. Senti
muito medo e escondi a cabeça entre os braços. Pensei logo na minha avó, porque ela sempre me defendeu. Sem mesmo reflectir, a palavra que me tinha ensinado veio-me aos lábios. Gritei-a…
— E então?
— E então, vi-me em tua casa, dentro desta bola, e não era nada agradável: davas-me grandes pontapés na cabeça, porque eu não saltava — concluiu Iqbal a rir.
— Pára com isso! Tiveste muita sorte, ele podia ter-te matado!... Que palavra extraordinária é essa?
— Não é extraordinária, até nem quer dizer nada, a minha avó inventou-a com toda a certeza: Shabatsé.
Iqbal já tinha pronunciado a palavra quando se apercebeu que não o devia ter feito. E Kevin repetiu:
— Shabatsé, é bonito, talvez que…
Não chega a terminar a frase. Torna-se de repente muito leve, começa a flutuar, a baloiçar. E grita:
— Iqbal!
Demasiado tarde.
E logo a seguir ao seu amigo, Kevin também é aspirado para o interior da bola.


5


— Onde estamos? O que se passou?
Kevin sente medo, tem vontade de chorar.
— Regressámos à minha oficina — responde Iqbal. — Que horror!
Estão sentados no chão de cimento de uma divisão sombria, húmida e suja. À volta deles amontoam-se peles. É o couro que serve para fabricar as bolas. Cheira mal.
— Shabatsé! Shabatsé! Shabatsé! — grita Kevin, desesperado.
— Não te canses! — advertiu Iqbal. — Já tentei, mas parece que a palavra perdeu todo o seu poder.
Kevin lança-se contra a porta… Está fechada à chave pelo lado de fora.
— O que é que nos vai acontecer? Não pedi para vir até cá! — gritou Kevin.
— Ninguém pediu para vir!
Não foi Iqbal quem respondeu. A pessoa que respondeu foi um rapaz ainda mais novo. Está de pé, ao lado de Kevin. Tem olhos grandes, muito tristes, mas sorri. Não é o único a ter-se levantado e aproximado. Três, cinco, oito crianças mais, rodeiam
Iqbal, o recém-chegado, e o seu misterioso companheiro.
— De onde saíram? — inquieta-se Kevin.
— Trabalham comigo.
— E vivem aqui? Dormem aqui? Como é que fazem? Há ratos, não?
— Habituamo-nos. Os ratos não fazem mal.
— É nojento. O vosso patrão merece ser preso.
Ninguém se dá ao trabalho de concordar.
— E agora, o que vamos fazer?
Kevin mudou de tom. Começou a perceber. Já não se inquieta apenas por si próprio, mas por todas as crianças que o acaso apanhou numa armadilha, naquele buraco pestilento. Iqbal queria responder, mas não teve tempo: a chave gira na fechadura enferrujada da única porta. Em pânico, as crianças desaparecem. Voltam a deitar-se e fingem que estão a dormir. O próprio Iqbal foge também, mas regressa; não tem o direito de abandonar Kevin.
O homem que entra é enorme, um brutamontes. Os olhos são tão frios como balas de espingarda:
— Ah! Estás aqui! Sempre voltaste! Onde te meteste? Mas não perdes pela demora!
Está prestes a lançar-se sobre Iqbal, quando de repente se imobiliza:
— E este, quem é?
Descobrira Kevin e compreendera que pertencia a um outro mundo.
— É meu amigo — murmura Iqbal.
— Teu amigo… Teu amigo…
O homem hesita. Hesita tanto mais que Kevin já não é o mesmo. Não só tinha deixado de tremer como é ele agora quem ataca:
— Devia ter vergonha! O meu professor falou-nos de pessoas como você, mas eu não acreditava! Vou contar-lhe tudo e havemos de escrever ao ministro, ao presidente da República, ao vosso chefe de Estado! Vai pagar caro!
O homem de olhos cruéis hesitou apenas um instante. Desata a rir.
— Estrangeiro imbecil! Não vais contar a tua história a ninguém. Não voltarás a sair daqui. Vou reduzir-te a picado e hás de ser comido pelos ratos!
Com uma só mão, agarra Kevin pelos colarinhos, levanta-o como se fosse uma palha e encosta-o à parede. Levanta a outra mão, fecha o punho, ganha o impulso necessário... Vai cumprir a ameaça, mas pára no último instante. Volta-se, sem largar
Kevin: o seu instinto de animal selvagem advertiu-o de que havia perigo nas suas costas.
Está cercado por um bando de crianças amotinadas, encurralado contra a parede.
Como seria de esperar, Iqbal e os companheiros encontram-se na primeira linha, mas os restantes vieram em socorro deles. São já trinta, quarenta, em filas cerradas, e cada vez chega mais gente. Empunham o seu instrumento de trabalho, uma temível agulha, tão afiada como um punhal. Mas mais inquietante ainda é o brilho dos seus olhos.
O homem nunca levará a melhor. Sabe-o bem, apesar da sua tacanhez. Pode varrer a primeira fila e, depois, a segunda. Como soldados prontos para o sacrifício, outros tomarão a vez. Mais cedo ou mais tarde será derrotado.
Para poder ver-se livre deles, prefere render-se.
Esquece Kevin, e levanta os braços.


6


As crianças não dão nenhuma hipótese ao seu carrasco. Com a resistente corda que serve para coser as bolas, prendem-no de imediato e abandonam-no. Agora é cada um por si: todos se dispersam e fogem.
— Vamos ter com a minha avó. Só ela pode ajudar-te a regressar a casa — garante Iqbal a Kevin.
Para deixarem aquela cidade gigantesca, têm de caminhar durante horas antes de chegarem aos primeiros campos, sulcados por uma rede de irrigação. Algumas frágeis barracas de madeira aninham-se no cruzamento de dois caminhos perdidos.
— É ali — declara Iqbal.
Indica-lhe uma das casas. Entram na divisão única, sem ninguém, já que naquela altura a família está a trabalhar no campo. A avó de Iqbal está sentada bem longe da entrada, no meio de um amontoado de tapetes.
— Estava à vossa espera! — afirma. — Aproximem-se, para eu vos ver melhor.
Para poder ver melhor, tal como diz, acaricia o rosto das crianças com as suas velhas mãos cheias de suavidade.
— Meu Deus, estão exaustos! Dá-lhe de beber! Recebe o teu amigo como deve ser.
Sobre uma braseira acesa algures, a água ferve. Iqbal prepara o chá. Serve-o a Kevin com toda a cerimónia.
— Sabes, avó, o homem quis matar Kevin. É preciso castigá-lo. Vais…
— Chiu!
A avó põe um dedo nos lábios. Pede a Iqbal que se cale, antes de continuar:
— Kevin, meu filho… Chamas-te Kevin, não é verdade? Não estou enganada? Descansa primeiro, restabelece-te de tantas emoções. Em seguida, quando estiveres preparado, pronuncia esta palavra: Namasté e voltarás para o teu quarto.
Kevin não se apressa. Acaba o chá, bate na mão de Iqbal, prometendo que tentará vê-lo de novo, embora não saiba como, pronuncia a fórmula e desaparece.


7
— Kevin! Kevin!
Kevin senta-se na cama, acordado em sobressalto pelo pai. Dormira toda a manhã.
— Levanta-te. A bola espera-te lá fora. Já não tem nada, salta como um cabrito.
— Que bola?...
Com os cabelos despenteados e os olhos pesados de sono, Kevin tem o ar de quem veio de outro planeta.
— Sabes? A tua bola supostamente estragada… Tive tempo de ir à loja. Está impecável. Devemos ter sonhado… Mas o vendedor tranquilizou-me. Tem havido ultimamente muitos problemas, muitas coisas estranhas a acontecer com estes produtos fabricados não se sabe onde… Até me falou de um punching-ball que acabou de receber. Sabes, aqueles grandes sacos de couro com que os boxeurs se treinam. Sempre que alguém lhes dá um soco, tem-se a impressão de que o saco chora e geme! Como se alguém estivesse fechado lá dentro! É estranho, não é?
                                                                             Jacques Vénuleth
                                                                                                                     Au pays d’Iqbal
                                                                                                            Paris, Ed. Magnard, 2001
                                                                                                               (Tradução e adaptação
)

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