domingo, 23 de outubro de 2011

Fases saborosas



Doce tentação


sábado, 22 de outubro de 2011

Sexta-feira



Ele viu-se ao espelho. Estava a envelhecer. Via-o sobretudo pelas fotografias. Afastava-se sempre das câmaras fotográficas, mas em almoços ou festas na escola, não podia levantar-se e fugir. O cabelo estava grisalho, mas não o queria pintar, mas não queria que os miúdos o achassem velho.

Felizmente ouvia bem, conservava o sentido de humor, encontrava, quase sempre, a palavra certa para certos momentos. Organizava visitas de estudo, participava em diferentes actividades… Em suma, era ativo. Os pais e os miúdos gostavam dele. Era experiente, simpático, competente e inspirava confiança.

Olhando à sua volta, quase só via colegas bem mais jovens do que ele. De ténis. De mochila. De tee-shirt. De ar descontraído.

Ele, ele continuava a usar a sua velha pasta, embora nela transportasse um computador que manipulava com frequência e com agilidade. Os amigos diziam que tinha talento para escrever e pintar.

Sentia-se bem na escola. Era até o seu lugar de eleição de quase todos os dias.

E nesses momentos, esquecia-se da imagem que via refletida no espelho. Sentia a Vida e a vida na escola com a mesma força e entusiasmo de há muitos anos atrás. Não se sentia velho, por isso não poderia ser velho.

Na 6ª f, veio mais cedo para a escola. Era diretor de turma e precisava de falar com dois alunos que tinham tido uma falta disciplinar no dia anterior. O diálogo ocorreu no Centro de Recursos. Esperavam-no os dois infratores e dois acompanhantes. Um deles– sempre bem humorado – dizia com voz assertiva e macia: Professor, foi hilariante.

O professor ouviu, neste caso, as defesas em relação à ocorrência: terem colocado um pioné na cadeira de uma colega que andava sempre de calças muito justas e que gostava de se rir das fraquezas alheias.

E o aluno bem humorado repetia: foi mesmo hilariante, setor.

E o professor queria manter-se sério, mas, ao mesmo tempo, sentia o cómico da situação.

Gostava daqueles miúdos. Estava próximo do discurso deles, compreendia as suas inquietações.

Quando ouvia queixas, procurava defender os colegas, mas compreendia muitas das inquietações que lhe eram apresentadas.

Sentia-se bem. Era professor e amava a sua profissão com a pujança da entrega. Parecia, serenamente, colher frutos que havia semeado ao longo de toda a sua vida, mas que exigiam sempre novos cuidados.

Com o habitual ar sereno e sorridente, o professor saiu do Centro de Recursos, depois de ter resolvido o problema do pioné. Outros já tinha tratado e bem mais graves.

No corredor, passava a Joana, uma menina que tinha vindo para a escola para frequentar um curso que agrupava miúdos com grandes dificuldades. Ou intelectuais. Ou afetivas. Ou cognitivas. Ou outras que se iam gerando. Eram miúdos que não podiam, não sabiam, não queriam estudar. Para os pais, o curso apresentava uma boa alternativa.

Joana era uma menina dócil, de olhos cinzentos, muito risonha e que abraçava todos os que a mimavam. Abria os braços com a mesma facilidade com que abria a alma e o sorriso. Joana não tinha segredos. Era espontânea, sincera e singela.

Joana, vendo o professor no corredor, logo se lhe dirigiu, abrindo os braços para o abraçar, e disse efusivamente: avozinho! Avozinho.

Era a primeira vez que ouvia alguém chamar-lhe avozinho. Logo vindo da Joana com voz de quem não engana.

Ao fundo do corredor, encontrou uma colega: tinha acabado de entregar os papéis para a reforma. Estava cansada. E logo veio a pergunta: e tu, de que estás à espera?

O dia foi seguindo o seu rumo. A tarde encheu a sala de professores de novos rostos. Em idade e em permanência na escola. Uma colega – que já tinha sido sua aluna – aproxima-se dele. Falam um pouco antes do toque da campainha. Ela fala-lhe do tempo em que o tinha tido como professor. Diz até que a mãe lhe havia falado da família dele. E tinha sabido que era filho de um velho conhecido da mãe. E não sabia que ele tinha um filho assim tão… tão… - parecia escolher a palavra mais simpática – crescido! E o professor ia dizendo para os seus botões: tão velho!

Entrou na sala de aula. A turma ia abordar o poema «O menino de sua mãe» de Fernando Pessoa, cantado por Mafalda Veiga.

Enquanto os alunos ouviam a música e seguiam os versos pessoanos, o professor olhava os rostos e o poema. O soldado tinha abandonado a vida sem ter feito a legítima despedida. Ele, o professor, entrava no plaino da despedida.

Os seus olhos caíram e demoraram nos últimos versos de um outro poema: …"sinto mais longe o passado/ sinto a saudade tão perto!"




Verdade

Casa silenciosa. Sábado numa tarde de outono. Quase frio ou ainda algum calor. Gosto de chegar a casa. De preferência de dia. E de ficar sem tempo contado. Ver flores da janela, o pátio com muita luz, a mesa da sala sempre com alguma coisa para começar, continuar ou acabar.

A casa é o espaço onde sou mais verdadeira. Comigo própria e com os outros. Onde paro mais um bocadinho para olhar à minha volta e para dentro de mim. Lugar onde procuro calor quando tudo arrefece e frescura quando tudo parece esquentar.

É outono e a casa apetece.

Diário de Mariana

22 de outubro

Querido diário,

Disse-te que falava contigo ontem mas não pude. E fico logo com saudades. Eu sou como o meu pai: quando gosto de alguma coisa, entrego-me a isso de alma e coração.

Sabes por que não vim ter contigo? Fui com a Bea a casa da avó dela. Foi altamente. A avó já é bastante velhinha mas está sempre a fazer coisas. Parece a minha avó. Eu até acho que os avós ficam todos muito parecidos.

Quando chegámos, fomos ao quintal e as galinhas andavam lá em liberdade. A avó disse que precisam de andar à solta, nem que seja só um bocadinho, porque nem as galinhas querem estar sempre presas. Eu achei que a avó da Bea sabia muitas coisas e até me apeteceu dar-lhe um beijinho quando ela disse também: os animais são mais parecidos com as pessoas do que muita gente julga.

Outra coisa que achei muito fixe foi ela ter um prato com sementes para os pássaros comerem. Fogo. Eu nunca tinha visto isto. Achei mesmo bem. Deve ser por isso que eles estavam a cantar todos contentes lá no meio das árvores.

E lanchámos também. Parecia Natal. A avó da Bea tinha aletria, rabanadas, pão e marmelada. E chá em garrafas de termos para estar sempre quentinho.

Quem estragou tudo foi a Bea. Disse assim: temos de ir porque tenho de estudar. Pronto. Já tinha de ser. Parecia as minhas irmãs. Parece que sou perseguida por essa frase. A Bea é a minha melhor amiga, mas digo-lhe muitas vezes que é uma desmancha-prazeres. Mas até acho que ela tem razão. Eu é que não consigo ser assim. Nem todos podemos ser iguais, não achas?

Mas fiquei com vontade de ir outra vez a casa da avó da Bea. Eu acho que a gente visita pouco os avós. Deve ser por isso que nos fazem aquela festa toda quando nos vêm. Oh, fogo, até me vieram as lágrimas aos olhos.

Muitos xis apertadinhos

Mariana


sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Diário de Mariana

Querido diário

21 de outubro

Ontem fui ao médico com a minha mãe. De vez em quando lá vou eu, embora não goste nada, depois de ouvir: Mariana, marquei uma consulta para ver se está tudo bem. E estava, acho eu.

Durante a consulta, também houve conversa e sabes do que se falou? De escola. O médico disse assim num momento qualquer: os meus filhos estão no ensino privado porque os professores são mais motivados. E a minha mãe: ai (quando ela disse ai, eu até pensei que lhe estava a dar alguma coisa, mas como estávamos no médico, já era meio caminho andado) senhor doutor, nem diga isso, porque não é verdade. A minha filha anda numa escola pública e lá também há professores muito motivados, assim como há muito bons alunos.

E eu ali calada, cheiinha de vontade de me vir embora, porque não gosto nada de consultórios médicos. Aquele, naquele momento, parecia um gabinete escolar.

E o médico virou-se para mim e perguntou-me: gostas da tua escola, Mariana? E eu: gosto, claro que gosto.

E logo a minha mãe a interromper-me: no particular, os meninos são escolhidinhos a dedo e não acho bem, sobretudo quando há seleção e os pais não pagam nada.

Mas eu acho que o médico queria era ouvir-me a mim e eu disse uma coisa que me andava atravessada, embora fale sempre calmamente: ainda outro dia passei junto de um colégio e estavam muitos alunos a fumar cá fora e a dizer muitos palavrões.

Prontos (a minha setora de português está sempre a dizer para não pôr no plural, mas foge-me), disse-lhe aquilo que eu pensava, porque às vezes as pessoas falam sem saber. Fogo.

Até logo, querido diário. Hoje à noite, se puder, ainda te escrevo outra vez, porque amanhã começa o fim de semana. Superaltamente.

Beijinhos

Mariana

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Diário de Mariana

20 de Outubro

Querido diário,

Eu pergunto-me muitas vezes por que não fazemos sobretudo aquilo de que gostamos. Isto sem ser egoístas e sem prejudicar ninguém, é claro, porque não gosto disso e a minha mãe diz que não foi educação que ela me deu.

Eu, às vezes, vou para a escola de camioneta e também venho assim para casa. E reparo que algumas pessoas têm cara triste ou chateada. Eu acho que também ficava assim se tivesse de chegar a casa e fazer tudo sem poder sentar-me um bocadinho ou fazer o que me apetece. Fogo.

Um dia destes, ouvi uma senhora dizer que tinha de fazer o jantar, arrumar a cozinha, passar a ferro e se o filho não tivesse feito os deveres, a casa ia pelo ar. Que exagero e que trabalheira. E ao menos se ela fizesse as coisas em paz e sossego, como diz a minha mãe… Pelo aspeto da senhora, a coisa ia dar mesmo para o torto.

Eu não acho bem que os professores mandem muitos trabalhos para casa. Pouquinho até concordo, mas muito é para chatices. É chatice na aula, porque não está feito ou só está um bocado; chatice em casa quando as mães falam com as dê tês; chatice quando a gente vê que são elogiados trabalhos que foram feitos por outras pessoas, etc. Passo-me quando isto acontece, mas ninguém diz nada senão também há chatice. Agora, a minha prof de português manda sempre escrever o t.p.c. no caderno. Para mim, não há escapadela possível. E a censura não perdoa.

Mas voltando à camioneta, eu até gosto de ir assim para a escola. A viagem é curta mas dá para ouvir histórias das pessoas. A minha mãe já me disse: Mariana, não olhes tanto que dás nas vistas, poça!

A minha mãe tem uma amiga que escreve histórias muito fixes e ela diz que se inspira muitas vezes no que ouve no autocarro. Será que um dia também vou conseguir escrever alguma coisa de jeito?

Mas de andar nos transportes públicos sempre à mesma hora e sempre cheiinhos é que eu não devia gostar nada. Deve ser horrível, sobretudo para as pessoas que chegam a casa e têm problemas e tudo por fazer. A minha mãe diz que há muitos heróis que nunca receberão uma medalha. Eu acho que a minha mãe, neste caso, até tem razão.

Um xi-coração e até amanhã.

Mariana

"Um pouco mais de azul"


Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá Carneiro (Lisboa 1890/Paris 1916)