Tenho uma amiga que tem o bom hábito de partilhar algumas leituras.
Como é uma excelente leitora. dá assim a conhecer obras e autores muito bons,
mas, pelo menos para mim, muitas vezes desconhecidos.
Desta vez, partilhou o excerto seguinte.
Para além do prazer do texto, o autor - ou narrador - levanta problemas atuais e pertinentes.
Realço o que é abordado nas últimas linhas.
Obrigada, Idalina
“Tinha apenas onze ou doze anos quando o meu tio me ensinou a
manejar a espingarda: nesse tempo, as crianças amadureciam cedo; com nove ou
dez anos já ajudávamos no campo, nas obras, nas oficinas. Ao primeiro tiro, o
coice da espingarda deixou-me uma nódoa negra no ombro e quase me atirou ao
chão. Como seria de esperar, errei o alvo, e voltei-me para o meu tio,
mortificado de vergonha. Esperava que zombasse de mim, mas não, não se riu,
como eu temia; passou-me a mão pela cabeça, deu-me um piparote e disse-me:
acabas de ganhar o poder de dar morte ao que está vivo,
um poder que é na verdade uma desgraça, porque o verdadeiro poder – e esse
ninguém o tem, nem mesmo Deus, porque aquela história de Lázaro é uma patranha
– é devolver a vida ao que está morto. Tirar uma vida é fácil, qualquer um o
pode fazer. Fazem-no todos os dias por esse mundo fora. Abre o jornal e logo
vês. Até tu podes tirar uma vida, desde que melhores a pontaria, claro está
(aqui, sim, sorriu, galhofeiro, semicerrando os olhos cinzentos e vivos que o
bom humor rodeava de uma teia de aranha de pequeninas rugas). O homem, que é
capaz de construir enormes edifícios, de fazer desaparecer montanhas inteiras,
de abrir canais e erguer pontes sobre o mar, não consegue fazer com que uma
criança morta volte a abrir as pálpebras. Por vezes, o maior e mais pesado é
também o mais fácil de mover. Pedregulhos enormes na traseira de um camião,
vagões carregados de metais pesados. Mas aquilo que guardas dentro de ti, os
teus pensamentos e desejos, que aparentemente nada pesam, não há Hércules que
consiga carregá-los aos ombros para outro lado. Não há camião que os
transporte. Conseguir o amor de alguém que te despreza, ou a quem és
indiferente, é uma tarefa bastante mais difícil do que atirá-lo ao chão com um
murro. Os homens batem por impotência. Julgam conseguir por meio da força
aquilo que não alcançam por meio da ternura e da inteligência. “
Rafael Chirbes, Entre Margens,
2015.