segunda-feira, 13 de julho de 2020

Ler e partilhar


Tenho uma amiga que tem o bom hábito de partilhar algumas leituras.
Como é uma excelente leitora. dá assim a conhecer obras e autores muito bons,
mas, pelo menos para mim, muitas vezes desconhecidos.
Desta vez, partilhou o excerto seguinte.
Para além do prazer do texto, o autor - ou narrador - levanta problemas atuais e pertinentes.
Realço o que é abordado nas últimas linhas.
Obrigada, Idalina

“Tinha apenas onze ou doze anos quando o meu tio me ensinou a manejar a espingarda: nesse tempo, as crianças amadureciam cedo; com nove ou dez anos já ajudávamos no campo, nas obras, nas oficinas. Ao primeiro tiro, o coice da espingarda deixou-me uma nódoa negra no ombro e quase me atirou ao chão. Como seria de esperar, errei o alvo, e voltei-me para o meu tio, mortificado de vergonha. Esperava que zombasse de mim, mas não, não se riu, como eu temia; passou-me a mão pela cabeça, deu-me um piparote e disse-me: acabas de ganhar o poder de dar morte ao que está vivo, um poder que é na verdade uma desgraça, porque o verdadeiro poder – e esse ninguém o tem, nem mesmo Deus, porque aquela história de Lázaro é uma patranha – é devolver a vida ao que está morto. Tirar uma vida é fácil, qualquer um o pode fazer. Fazem-no todos os dias por esse mundo fora. Abre o jornal e logo vês. Até tu podes tirar uma vida, desde que melhores a pontaria, claro está (aqui, sim, sorriu, galhofeiro, semicerrando os olhos cinzentos e vivos que o bom humor rodeava de uma teia de aranha de pequeninas rugas). O homem, que é capaz de construir enormes edifícios, de fazer desaparecer montanhas inteiras, de abrir canais e erguer pontes sobre o mar, não consegue fazer com que uma criança morta volte a abrir as pálpebras. Por vezes, o maior e mais pesado é também o mais fácil de mover. Pedregulhos enormes na traseira de um camião, vagões carregados de metais pesados. Mas aquilo que guardas dentro de ti, os teus pensamentos e desejos, que aparentemente nada pesam, não há Hércules que consiga carregá-los aos ombros para outro lado. Não há camião que os transporte. Conseguir o amor de alguém que te despreza, ou a quem és indiferente, é uma tarefa bastante mais difícil do que atirá-lo ao chão com um murro. Os homens batem por impotência. Julgam conseguir por meio da força aquilo que não alcançam por meio da ternura e da inteligência. “

Rafael Chirbes, Entre Margens, 2015.


4 comentários:

  1. Para uma intensa e profunda reflexão...
    .
    Tenha uma semana feliz
    Cumprimentos poéticos

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  2. E, sobretudo, para pôr em prática, o que, muitas vezes, custa mais.
    Uma semana feliz também para si
    M.

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  3. Uma leitura forte e emotiva! 🌹
    ~~
    A Linha da Vida

    Beijo e uma excelente Semana.

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  4. Não conhecia o autor, mas deve valer a pena ler.
    Bom final de tarde.
    M.

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