sexta-feira, 24 de julho de 2020

Leituras partilhadas - Gostei logo do título da obra


Obrigada, Idalina, pela partilha de mais algumas leituras.
Estes excertos, para além do prazer do texto, são uma boa lição de escrita
e também de apreciação crítica.

Oxalá gostem. Eu gostei muito e vou tentar ler o livro.


Kirmen Uribe, O Dois Amigos, 2011, Planeta


Este primeiro excerto é o início do romance. No terceiro excerto, explica os passos que deu até chegar a ele.


"Os peixes e as árvores assemelham-se.
Assemelham-se nos anéis. Se fizéssemos um corte horizontal numa árvore, veríamos os seus anéis no tronco. Um anel por cada ano transcorrido: é assim que se sabe a idade da árvore. Os peixes também têm anéis, mas nas escamas. E, da mesma forma que acontece com as árvores, graças a eles sabemos quantos anos tem o animal.
Os peixes nunca deixam de crescer. Nós não, nós minguamos a partir da idade madura. O nosso crescimento detém-se e os ossos começam a juntar-se. O corpo encolhe. Os peixes, porém, crescem até morrer. Mais depressa quando são jovens e, a partir de certa idade, mais lentamente, mas sem nunca deixarem de crescer. E por isso têm anéis nas escamas.
O anel dos peixes é criado pelo Inverno. O Inverno é a altura em que o peixe come menos e a fome deixa uma marca escura nas suas escamas, porque o seu crescimento é menor durante esta época. Ao contrário do que acontece no Verão. Quando os peixes não passam fome, não permanece qualquer rasto nas suas escamas.
O anel dos peixes é microscópico, não se vê à primeira vista, mas está lá. Como se fosse uma ferida. Uma ferida que não sarou bem. E, como os anéis dos peixes, os momentos mais difíceis vão marcando as nossas vidas, até se converterem na medida do nosso tempo. Os dias felizes, pelo contrário, passam depressa, demasiado depressa e, em seguida, desvanecem-se.
Aquilo que para os peixes é o Inverno é a perda para as pessoas. As perdas delimitam o nosso tempo; o final de uma relação, a morte de um ser querido.
Cada perda é um anel escuro no nosso interior".
                                                                                                                 (pp. 15/16)




"O escritor precisa de protecção. Sobretudo no princípio. Deseja que lhe dêem confiança, ouvir dos outros que vai pelo bom caminho e que não se enganou no último cruzamento. O escritor precisa de protecção quando começa. Por isso, perguntei a opinião ao meu pai, quando publiquei a primeira coluna na imprensa, esperando receber a sua aprovação. Essas colunas eram as minhas primeiras publicações, naquele distante ano de 1998. Eram os meus inícios. Aquela primeira coluna, elaborei-a bastante e dediquei longas horas à sua redacção. Tentei que o estilo fosse o mais literário possível e saiu-me algo parecido com um breve conto. Com o tempo, aprendi que as colunas têm de ser colunas e os contos, contos. As colunas exigem uma condição que os contos não requerem: o imediato.
A resposta do meu pai foi deliberada. Não recebi o seu aplauso, mas, em compensação, respondeu-me através de uma história. Quando ele era pequeno, havia dois padres na aldeia. Cada um deles tinha a sua maneira própria de predicar a homilia. Um, Don Manuel, era próximo e as pessoas percebiam sem dificuldade o sermão que pronunciava. No entanto, o estilo do segundo cura, Don Jesús, era retórico. Não se percebia nada. Dirigia a sua homilia aos ricaços que se acomodavam nos bancos da frente da igreja. Pois bem, eu escrevia como esse cura, explicou-me o meu pai, como Don Jesús.
Sempre agradeci ao meu pai a sua franqueza. Por um lado, mostrou-me que a minha coluna era demasiado literária para um jornal. E, por outro, não deu sentenças, não proclamou «a coluna é boa», ou «é má». Socorreu-se de uma história para desenvolver o seu argumento, sem qualificações. E foi isso precisamente do que mais gostei, que um breve relato lhe bastasse para que eu compreendesse com clareza a sua lição. De facto, as histórias recolhem os matizes da realidade. E os matizes são o mais importante na vida".
                                                                                                      (pp. 43/44)



"Em Dezembro de 2002, escrevi a primeira frase do romance.
Queria uma frase com força para o princípio, como a do romance de Carson McCullers O Coração É Um Caçador Solitário. «Na cidade havia dois mudos e estavam sempre juntos.» Essa frase diz muito. Primeiro, que o romance trata de dois mudos, mas também indica a exclusão que sofrem e transparece a amizade que os une.
Ou a do romance A Campânula de Vidro, de Sylvia Plath".


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