domingo, 29 de agosto de 2021

O tão esperado dia

 

Chegou o dia do aniversário. O tão desejado dia. Seis aninhos. Os cinco anos tinham sido celebrados só com os pais em Londres; nos anos anteriores, antes da pandemia, sempre em Portugal, com a família mais alargada, com mar por perto e muita brincadeira.

Este ano, vieram duas amiguinhas. Outro dia virão outras duas  e assim a concentração dentro de casa é menor. A primeira menina a chegar veio com a mãe, de olhar sereno e olhos morenos, que usava hijab preto, túnica até aos pés e trazia máscara. Logo que chegou, tirou os sapatos e pediu para lavar as mãos. Tinha feito teste rápido em casa. Já nos conhecíamos do tempo em que as meninas andavam no infantário. Disse-me que eu estava mais magra e fiquei contente. E ainda mais ao conseguir manter um diálogo com ela em língua inglesa.

Depois, chegou a outra menina, nuns fortes e altos seis anos, de longos cabelos em rastas. Vinha também com a mãe, desta vez sem máscara.

Éramos cinco adultos e quatro nacionalidades. É Londres, pois então. Todos cantámos Happy Birthday. Depois disse à minha filha: vamos cantar em português. Não souberam acompanhar, mas a alegre empatia continuou. 


 

sábado, 28 de agosto de 2021

Tive pena de ser discreta

 

Quando passei pelo casal no parque, tive pena de ser discreta porque me apetecia olhar para eles mais longamente, enquanto caminhavam lado a lado.

E não é que se via logo que eram (e)namorados de fresco? Já teriam vivido muitos e muitos aniversários, festejados ou não, isso não sei. Aqueles sorrisos entre a alegria e  o enamoramento não são muito comuns em casais que vivem juntos há muito tempo. Infelizmente, of course.

Apetecia olhá-los sem lhes roubar ou diminuir o êxtase amoroso dos sorrisos e da cumplicidade. Para eles se aperceberem que tornavam o parque ainda mais bonito, embora os parques de Londres sejam do mais bonito que há.

Acho que, quando deparar com cenário semelhante, vou deixar de ser tão discreta. Deus queira que eles também.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

A chegada e os comeres da saudade

 

Até agora, quando eu ia a Londres, sempre apanhava o comboio depois do avião. Desta vez, apanhei um táxi por recomendação repetida: mãe, no comboio, andam sem máscara, não é conveniente. 

Depois de 18 meses de encontros só  pela net, finalmente podia estar com os meus amores de Londres. A menina estava mais crescidinha e de olhinhos radiantes. Eu nem queria acreditar que dávamos abracinhos (depois de tomar banho, mudar de roupa e... fazer teste rápido. Mãe, viajar de avião é das coisas mais perigosas! Claro, filha, eu sei, bora lá!).

Depois, foi o tirar de coisas da mala, umas mais tugas do que outras: lombinhos de bacalhau, marmelada, compota... Ah, e maracujás e figos do quintal.

Os presentes seriam abertos na celebração dos seis aninhos daí a dias.

Ao jantar, ele, com o seu sotaque americano, embora se esforce em falar comigo em português, falou de pataniscas e queria saber como se faziam. No dia seguinte, em modo de 24 Kitchen,  expliquei-lhe. Ele via e fazia também. 

Disse-lhe para juntar sal e logo ele: mas o bacalau é salted. Eu achava que já não estava. Afinal, ele tinha razão. Sorry. Mesmo assim, desapareceram todas. E falou-se também das bolinhos de bacalau. Fi-los num dos dias seguintes e ficaram bem bons. Estavam consolados a saboreá-los e eu consolada de os ver assim.

E quase não houve dias suficientes para os comeres da saudade.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Sete dias/mais páginas

 

Desta vez, foram sete dias. Na despedida, prometi: quando puder, volto e fico dez dias. Ela contou pelos dedos pequeninos, sorriu e deu-me mais um abracinho. Ainda estava com ela, mas já sentia saudades. Isso nem valia a pena tomar nota no meu caderninho. Impossível esquecer.


No primeiro dia, cheguei ao aeroporto Francisco Sá Carneiro, umas duas horas antes do voo da TAP Porto-Gatwick. Fila grande e demorada para entrega de bagagem, confirmação de teste covid e inquérito de localização preenchido. O meu stress de andar de avião aumentava.

Finalmente: porta 11. Boa viagem.

Antes de chegar à porta 11, vi que já lá não havia ninguém. Uma senhora da groundforce vem na minha direção. Pergunta-me o nome. Tinha de me despachar. Acelerei o passo. O meu stress distraiu-se.

Coube-me um lugar junto de um casal e uma criança pequenina. Preferia não ir assim tão junta, apesar de todos usarmos máscara. Pedi para mudar. Sim, com certeza. Podia escolher, apesar de haver poucos lugares vagos. Numa fila, só estava um sujeito que dormia profundamente junto da janela. Fiquei mais à vontade e o casal também, de certeza.

Serviram bebidas e snacks. Tudo agora é pago. E com cartão de débito ou crédito. Pedi um copo de água. Perguntei se tinha de pagar. Não, só água é para comprimido, disse-me sorrindo o comissário de bordo (não sei por que não se diz hospedeiro, se elas são hospedeiras!) de cabelo grisalho e bonitos olhos azuis. O meu stress diminuiu.

O comandante anunciava a descida. Em breve, estaríamos em terra, que é onde gosto de estar, apesar de não ignorar o céu. O meu stress reduzia-se.

Aterrámos. Landed. 18 graus e alguns minutos depois das 11 h da manhã, a mesma hora que no Porto. 

Quando foi permitido, enviei mensagem rápida com emoji de sorriso.

Stress over. 

 

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Maresias

 

 

Quando vai a Mindelo, e já o faz há um bom par de dezenas de anos, percorre quase sempre o mesmo passeio à beira-mar, toma um café quase sempre no mesmo sítio, compra pão na mesma padaria, olha para o mar nas mesmas direções, etc.

Mas as pessoas vão mudando. A cigana que vende roupa todos os verões envelheceu ou  era outra familiar mais velha e o tempo confundiu-as. O cigano é que era de certeza o mesmo, mas menos direito e menos galã. 

Viu uma mulher que ainda há poucos verões era menina. 

A miúda do quiosque já lá não está e o quiosque também não. 

O dono do café, fervoroso adepto do F.C.P, que recebe gente de diferentes clubes, começou muito novo. Agora tem o cabelo grisalho e precisa de óculos para temperar as delícias que são servidas com a cerveja a borbulhar.

No mar é que não vê diferenças. Belo e incansável como sempre. E fica a olhá-lo como se o presente fosse duradoura maresia.

 

Mindelo - momentos de um dia

 





segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Hoje - na cidade com mar ao fundo

 

 

Hoje em Espinho, antes das dez da manhã, o sol estava tímido, grupos de jovens com pranchas de surf ainda preferiam o convívio no passadiço. As esplanadas estavam quase vazias. Pouca gente passeava. Várias pessoas olhavam o mar. Havia quem corresse e logo se via que não era só treino de agosto. Um casal de mão dada passou com ar de quem está feliz por ter tempo livre. Logo passou um homem de calças vermelhas e laca no cabelo esticado, parecendo vir arejar de perdas ou ganhos no casino. Muitas famílias iam chegando carregadinhas de defesas do sol, do vento, da fome, da sede, dos tempos mortos dos miúdos...

Vários surfistas, indiferentes a tudo isto, elevavam-se ou afundavam-se na crista da onda. Um fotógrafo esperava-lhes a melhor posição.

O dia aqueceria e a esta hora o verão será mais verão.

Não sei se o papagaio de papel continua a voar. Se sim, o bocadinho da praia por onde passa fica ainda mais bonito.



domingo, 8 de agosto de 2021

Que bom se fôssemos assim!

 

Hoje vi que uma das plantas que tenho dentro de casa estava triste e de folhas caídas de murchas. Já tinha reparado que lhe faltava alguma coisa, para além do ar e da luz. Só que quando eu passava, o tempo estava a passar depressa e logo pensava: venho daqui a pouco tratar de ti.

Só que demorei.

O estado de abatimento da planta já era grande. Há pouco, peguei no vaso, trouxe-o para a cozinha e dei-lhe a água de que precisava, pelos sinais mais do que evidentes de sede.

E não é que, passados alguns minutos, a planta ganhou a postura e viço iniciais? 

De fazer inveja aos humanos. Será que a planta queria dizer que basta o essencial para se ganhar novas forças? 

O que tenho de aprender!


sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Nem só diferenças

 





 

Desta vez, foram as flores que me chamaram na casa materna - minha e delas.

 

 

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Ternura 2 em 1

 

          

 Foto tirada hoje na casa materna - minha, e dos gatos!!!



quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Mina

 

Há muito tempo que o grupo tinha o hábito de se encontrar à hora do almoço. Todos trabalhavam nas imediações e foram-se conhecendo em circunstâncias várias. À hora do costume, chegavam, sentavam-se e havia sempre peripécias do dia para contar. Os empregados do restaurante já lhes conheciam os hábitos.

Naquele dia, a conversa foi para casos de família. Como já sentiam à vontade uns com os outros, Mina não se ficou pelo anedótico. Também não fazia muito o seu género. Falou do pai. Que nunca tinha ouvido um elogio da boca dele. E que lhe dizia com frequência e com ar recriminatório que era uma desajeitada, ao contrário das filhas dos amigos. A sua mágoa era grande.

Os dias sucederam-se. Também os almoços e as conversas. Um dia, Mina, num estender do braço, partiu um copo. A água jorrou sobre as calças da colega do lado que, perante o incidente, logo disse: o teu pai tinha razão, és mesmo desajeitada.

Mina nunca mais foi almoçar com o grupo.


terça-feira, 3 de agosto de 2021

O sabonete

 

Sempre que os vejo em prateleiras do supermercado, não resisto a olhar e muitas vezes a comprar. E então quando os vi numa loja Ach. Brito bem apelativa, o fascínio foi ainda maior. Refiro-me aos sabonetes Patti. Cheiram a bocados bastante felizes da minha infância. 

Na casa de banho das minhas tias - viviam numa casa de lavoura, grande e antiga - nunca conheci outro cheiro. Sempre que ia a casa delas, gostava de ir lavar as mãos para que o perfume do sabonete Patti ficasse entranhado na minha pele durante algum tempo. Os sabonetes eram pequeninos e verdes - via-os sempre sem o papel de fora.

Havia uma janela de vidros pequenos que estava sempre aberta para os campos, mas o perfume do sabonete Patti nunca desaparecia.

Na última vez que fui à casa das minhas tias, há um par de meses, antes de a última delas falecer, lembrei-me apenas do cheiro do sabonete Patti. O mais certo era já não existir. Assim, continua a perfumar bocados bastante felizes da minha infância.

 

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

O campo de férias

 

Hoje era o primeiro dia do campo de férias. A menina estava felicíssima. A mãe, perante o entusiasmo dela, sorriu-lhe. 

- Também acho que vai ser bom o campo de férias. 

- Para mim, vai ser bom por duas coisas importantes.

- E quais são?

- Uma delas é porque duas amigas da minha sala também vão.

- Que bom. E a outra, filha? 

- Estou feliz por levar a minha lancheira.

Despediram-se.  Saboreando a maravilha de uma simples lancheira também o poder ser.

 

 

domingo, 1 de agosto de 2021

O sorriso namorador

 

Ela não lhe chama ritual. Apenas o dia de domingo.

Ao fim da tarde de sábado, prepara a roupa que quer usar no dia seguinte. Não é que a variedade seja muita, mas como não engorda nem emagrece, a roupa dura-lhe muitos anos. Vai à caixinha das joias e escolhe os adereços a condizer: brincos, anéis, um alfinete, pulseiras e um fio de ouro com uma medalha. Fora o fio, é tudo pechisbeque, mas acha tudo lindo e colorido, assim como a caixinha que comprou numa excursão a Aveiro. Pega nela com muito jeito para não partir, nem cair nada, porque já lhe custa vergar-se.

Depois é só esperar pelo domingo. Antes das nove horas da manhã, já está feliz e esmerada na paragem da camioneta que a leva ao Porto, onde se encontra com as amigas, no mesmo Centro Comercial. 

São sempre as mesmas e os vizinhos de mesa também. Um deles namora-a com o olhar e sorri-lhe. Um dia, arranjou coragem para lhe dizer que ela era bonita e que gostava muito do cabelo dela aos caracóis. 

Quando ouve elogios, ela sorri com sorriso namorador, porque não os ouviu durante longos anos.

Nem quer pensar no tempo em que o Centro Comercial esteve fechado por causa da pandemia. Um dia, nervosa, quase deixou cair a caixinha das suas joias a limpar o pó. O que vale é que se lembrou do elogio namorador, quando viu os caracóis grisalhos, mas ainda juvenis do seu cabelo. Até são bonitos, pensou, namorando a sua imagem refletida. 

Há muito que voltaram as manhãs de domingo passadas no Centro Comercial. Hoje, antes das nove da manhã, já estava ela à espera da camioneta. Acenei-lhe e parecia feliz. Talvez à espera do sorriso namorador no Centro Comercial.


 

sábado, 31 de julho de 2021

Tirar o dia para si. Leia-se para mim

 

Hoje resolvi tirar o dia para mim, sem tirar o carro da garagem. Levantei-me cedo e o pequeno almoço foi o do costume, mas talvez mais devagar. Reforcei a caneca do café várias vezes e a minha compota de framboesa no pão escuro soube-me bem.

Fui regar o jardim e o quintal. Já não o fazia há uns dias. À hora em que o sol aquece menos, tenho tido outras coisas para fazer. Não sei se mais importantes, mas que, para mim, tinham de ser feitas. Neste momento, as plantas estarão a saborear a frescura da água que lhes dei a beber pela fresca.

Depois a mangueira deu sinais de o precioso líquido ter esgotado por umas horas. Desliguei o interrutor. Descansa, recupera o fresco alento, pensei eu. Hoje não te canso mais. Mereces o descanso. Sei que amanhã voltarás, água do meu poço tão antigo e tão presente. E cada vez mais necessário.

Agora escrevo as minhas coisas, que serão pequenas, mas que sem elas a minha vida não seria a mesma coisa. E não me posso queixar. Isso seria uma afronta e desrespeito para tanta gente com tanta carência e tanto sofrimento. 

E também quero ler. Avançar nas páginas do livro que ando a ler de Afonso Cruz - um escritor-poeta-ilustrador-músico... De corpo grande e largo. E também o sorriso. Parece quase ingénuo, mas não é de certeza. Deve é conhecer verdades que muitos desconhecem.

Também a mim - eu que não sou nada disso (a não ser no corpo) - já me chamaram lírica várias vezes. E também ingénua. Se calhar, até sou, embora ache que não sou, mas, neste momento, não estou preocupada em pensar se o sou ou não sou.

Pronto, estou a tirar o dia para mim. Tirar um dia para si também pode saber bem.

Bom sábado e que seja um sábado que a todos saiba bem. 

 

 

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Dunas


        de azur

                           ar

                                     Azurara - Vila do Conde



 

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Olga de seu nome

 

Às vezes, passava aqui à minha porta na caminhada que fazia diariamente. Sempre apressada em andar quase nervoso no seu corpo grande e ossudo. Também o rosto era magro e os olhos pareciam mais negros e fundos. Um dia, eu ia a sair e perguntei-lhe como estava. Mal, respondeu, e foi dizendo: antes da pandemia, chegava à noite cansada de trabalhar, agora chego à noite cansada e desanimada de não ter trabalho. O que me vale são as caminhadas para arejar a cabeça. 

E a cena repetiu-se mais duas ou três vezes. Depois, achei que o melhor era dizer só olá, sorrir-lhe e deixá-la seguir no seu passo largo e decidido. Também nunca tido sido de muitas falas, para além do essencial.

Hoje, reencontrei-a na empresa onde sempre trabalhou e que, durante largos meses, quase deixou de laborar por falta de encomendas. Sorriu-me. Vejo que agora anda mais contente. Ai não, disse ela, continuando apressada, agora para a banca de trabalho onde os seus dedos traquejados 'enchiam' as peças de filigrana, desenhando e cortando os finos fios de prata.

 

terça-feira, 27 de julho de 2021

'Diz o avô' - Luísa Ducla Soares

 

Gosto muito da escrita de Luísa Ducla Soares - uma escritora para crianças, como é conhecida. Haverá, porém, barreiras na escrita? Julgo que não, apesar de necessárias diferenças.

 Por estes dias, tem-se falado mais dos avós. Bem merecem. E que a atenção continue, é claro. 

 

'Tens cabelos brancos.
Mas porquê, avô?
Caiu muita neve
na estrada onde vou.

Tens rugas na face.
Mas porquê, avô?
Bateu muito sol
na estrada onde vou.

Tens olhos baços.
Mas porquê, avô?
Pousou nevoeiro
na estrada onde vou.

Tens calos nas mãos.
Mas porquê, avô?
Parti muita pedra
na estrada onde vou.

Tens coração grande.
Mas porquê, avô?
Nele mora a gente
que por mim passou'.

 

Luísa Ducla Soares in A Cavalo no Tempo


 

segunda-feira, 26 de julho de 2021

A língua francesa, os gatos e je t'aime.

 

Todos estranhámos. Uns mais do que outros, é verdade. Ela entrou na reunião a falar francês e assim continuou até ao fim. No início, as pessoas entreolharam-se, sorriram, e alguém perguntou até por que não falava português como toda a gente. Ela respondeu, convicta, que naquele dia preferia usar a língua francesa e assim continuámos. Todos nós que estamos aqui sabemos francês, acrescentou, para pôr ponto final ao assunto.

Toda a gente sabia que ela era excêntrica, que vivia só e rodeada de gatos. Tinha-os às dezenas no quintal e como a porta da cozinha estava sempre aberta, os bichanos circulavam pela casa toda à vontade. Dormiam onde queriam, saltavam onde podiam e brincavam com tudo o que encontravam que era quase tudo porque tudo estava à mão, ou melhor, ao alcance da patita. Era assim que se sentia bem. Já feliz, não sabia bem se era, porque preferia tratar dos gatos a pensar nisso. O pensamento ficava para o trabalho.

Pois bem, os assuntos agendados para a reunião foram tratados e no final ela despediu-se, usando sempre a língua francesa: au revoir, je vous aime.

Como se afastou logo, não ouviu um comentário: 

Gostava de saber se alguma vez esta mulher ouviu um 'Je t'aime'. 

                   Sabia, no entanto, que ela nunca lho diria.

 

domingo, 25 de julho de 2021

O tanque, a água e as gotas do oceano

 

Era eu adolescente quando nos mudámos para a casa onde a minha mãe continua a viver. É aldeia, mas onde nós morávamos era mais aldeia ainda, apesar de ser a mesma aldeia. Havia muitos campos à volta e os lavradores deslocavam-se com os seus carros de bois que passavam ronceiros.

Ora, alguns desses campos tinham nascentes que eram aproveitadas para tanques onde as mulheres iam lavar a roupa e, tantas vezes, limpar a alma do pó duro das suas vidas, enquanto ensaboavam, esfregavam, espremiam, torciam a roupa.

Como não havia máquinas de lavar, também a minha mãe lá ia. E muitas vezes eu ou a minha irmã. O meu irmão não, porque era mais novo e esses sítios eram como o chorar, isto é, não eram para homens.

Como a nova casa ficava um pouco mais distante, foi feito um tanque para lavarmos a roupa. A minha mãe queria-o grande, porque estava habituada a larguezas de água. Com o tempo, foi vendo que havia muito desperdício do líquido que viria a fazer muita falta - dizia ela, mesmo sem se ouvir ainda falar do assunto. Por isso, algum tempo depois, mandou fazer uma parede, reduzindo o tanque em mais de metade. Quando agora o uso para lavar algumas peças de roupa mais sujas ou mais delicadas, recordo essa mudança e os alertas da minha mãe, tão atuais e necessários agora.

E sempre a vi a aproveitar água da chuva para regar as plantas ou para lavagem de alguns espaços. Também as águas de lavar legumes não iam pelo cano abaixo. Louvo-lhe esses cuidados que mais pareciam nascer dela, porque nunca foi de passar muito tempo a ouvir rádio ou a ver televisão.

Não sei como estará esse lavadouro da minha infância, agora que já ninguém lá vai. Deus queira que a nascente não tenha secado. Parece que não tem nada a ver, mas não me posso esquecer de fechar a torneira enquanto lavo os dentes. A gente às vezes esquece-se de que o oceano é feito de muitas gotas.