sexta-feira, 23 de abril de 2021

As filas na minha sala de aula

        

        A escola estava dividida. A leste, ficava a parte das raparigas, a oeste a dos rapazes. No edifício, funcionam agora serviços da Câmara Municipal.

As meninas estavam divididas em três grandes grupos.  Nas filas de trás, ficavam as meninas pobres (algumas iam descalças para a escola) e com fracos resultados escolares; nas filas do meio, as meninas remediadas com mais sucesso em ler, escrever e contar; na primeira e única fila da frente, ficavam as meninas com mais posses, tivessem elas sucesso escolar ou não, e que iriam fazer o exame de admissão para continuarem a estudar no liceu ou na escola industrial e comercial.

Era assim na minha escola primária. Apesar de já ter sido há uma eternidade, ainda me revejo numa das filas do meio sentada de bata branca - eu gostava que tivesse entremeios bordados como as batas das meninas da frente, mas em casa diziam-me que os luxos eram para quem podia -  na minha carteira inclinada e com o tinteiro fresco de tinta. Era bastante boa aluna, mas não iria estudar, como as meninas da fila da frente. Ouvia que as raparigas eram necessárias em casa, mesmo quando vinha a correr para contar o que a D. Gracinda, a minha professora da 4ª classe, me tinha dito mais uma vez. Assim tinha sido, assim continuaria a ser.

Essas palavras da professora eram um estímulo e sempre me acompanharam: 'Tens de estudar, não podes ficar em casa sem estudar'. Não só por elas mas também, uns anos mais tarde continuei os estudos. Depois de aprender a bordar, a cozinhar, a limpar a casa, a costura (nunca tive jeito), de ler alguns livros, escrever uns poemas quase às escondidas, aprender um pouco de francês, recomecei a minha escolaridade com alguns constrangimentos. Se bem me lembro, um dos maiores foi o facto de os meus colegas serem bem mais novos do que eu.

As meninas das filas de trás da minha sala de aula da escola primária terão continuado na fila de trás da vida, apesar de sonharem igualmente; as das filas do meio terão lamentado muitas vezes não terem continuado a estudar; as da única fila da frente tiveram as portas abertas - umas aproveitaram, outras não.

Os mais céticos dirão que ainda há muitas discriminações, mas, para mim, um dos maiores bens já adquiridos foi a escolaridade obrigatória para todos. A educação é um dever e um direito. Esta conquista foi das mais importantes para Portugal pós-25 de Abril. Só pecou por tardia.

Para muitos jovens, este assunto é um não-assunto porque nem sequer admitem o contrário. Ainda bem que interiorizaram que a escolaridade é um bem a que todos têm direito.

Apesar deste grande avanço, existem ainda muitas divisões (e há quem as queira acentuar) de pessoas colocadas por filas, mas estou convencida de que a Educação e a melhoria de condições de vida para a desenvolver irão torná-la cada vez mais agregadora. Só assim o dia de amanhã pode ser melhor do que foi o dia de ontem.

 

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Atividades que marcam!

 


Como já contei no passado dia 15, tive a alegria de ser convidada para trocar impressões com crianças do 1º ciclo do Agrupamento nº 1 de escolas de Gondomar, na Semana da Leitura que estava a decorrer. Um dos suportes do diálogo foi um livro que escrevi para crianças - Histórias da Clarinha, em formato de e-book.

Gostei muito da experiência, tal como já referi nesse post, e de receber um mail com alguns  marcadores. Não por estar lá o meu nome, mas porque marcam também o papel das bibliotecas escolares - lugares bonitos, coloridos, festivos, que mostram a criatividade de todas as crianças, as maravilhas da leitura, o carinhoso trabalho e acompanhamento dos professores, a importância de tarefas em conjunto, etc.

A partilha de atividades, como a Semana da Leitura (nem que seja por zoom ou fotos), e outras abrem as bibliotecas escolares à comunidade. As crianças não mais esquecerão os trabalhos que fizeram, os textos que escreveram, os desenhos que criaram, as palavras que ouviram, o reconhecimento que tiveram. As famílias, por sua vez, acompanham e valorizam a evolução das crianças. Todos ficam a saber mais e, de certeza, mais felizes. 

Conhecer os trabalhos das bibliotecas escolares permite acreditar num mundo melhor. O brilhozinho dos olhos e o entusiasmo sorridente de tantas crianças construirão uma boa memória futura.



Obrigada e um beijinho para todos.


                                               

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Flowers

 

Sabe sempre bem olhar as flores. Seja sob que forma for. Vivam elas onde viverem em fértil primavera. Estas moram em Londres. 

Não é o caso destas, mas às vezes as flores surgem nos sítios mais improváveis. Tal como as pessoas.



segunda-feira, 19 de abril de 2021

Conversa sem veterinário dentro

 

- Mamã, e se a levássemos ao veterinário?

- Vai melhorar, vais ver.

- Deve estar muito doente. Está parada aqui no chão.

- Pode estar a descansar.

- Nunca vi nenhuma assim. Mamã, vamos ao veterinário.

- Ele trabalha com animais maiores.

- E por ser pequena não tem direito?

- Olha, olha, filha, já começou a voar.

- Que bom,  pousou agora naquela flor.

- Eu não te disse que a abelhinha ia melhorar?!

 

sábado, 17 de abril de 2021

No casamento de Pepe e de Lupe ou o bâton ainda mais vermelho

 

Este texto resultou de uma proposta de trabalho individual, num atelier de escrita, com Francisco Rosa, na Lótus e Lírios, no Porto, há uns três anos. O narrador teria de ser um mexicano, no casamento de Pepe.
 

Apetece-me fugir daqui.  Já abracei os noivos, já saboreei nachos, tacos, tortillas..., já dancei sentindo as dunas macias da prima da Lupe, já tirei o casaco, já suei a camisa, já engoli muitos copos de tequila, já suguei bâton vermelho, já sequei o suor de mãos com o calor dos meus dedos...

Apetece-me fugir daqui. Não sou homem de quentes salas fechadas, de músicas que explodem nos meus ouvidos, de luzes que disparam nos meus olhos, de ares com perfumes mesclados até à náusea...

Apetece-me fugir daqui. Porém, o Pepe é um grande amigo de muitas estações e de muitos desertos. E de longas conversas ao sol, refrescadas pela sombra dos nossos chapéus. Fico feliz ao vê-lo feliz neste dia do seu casamento. E ao vê-lo sorrir muito mais do que quando estamos, entre o céu e a terra, a guardar as vacas.

Apetece-me fugir daqui. Apontados para Lupe, quantos dos meus olhares devoradores o meu sombrero encobriu. Sobretudo quando ela aparecia  com o vestido curto de folhos e no bâton vermelho cintilava o prazer dos lábios. Logo se retiravam e eu ficava a guardar as minhas vacas e as dele ou a fingir que dormia, mas sempre fixando o plano cada vez mais distante, o ponto que mantinha a cor do vestido de Lupe. Quando regressavam, ela retocava o bâton e afastava-se, sozinha. Ficávamos em silêncio naquele deserto da tarde.

Apetece-me fugir daqui, porque sei também que não muito longe arranham o chão as pesadas caravanas, cheias de sonhos americanos e parece-me ouvir gritos arremessados aos meus ouvidos.

Oh! Estão a atirar o ramo da noiva e é a prima da Lupe quem logo o agarra e vem pô-lo na abertura da minha camisa, quase cravando as flores no meu peito.

Ela, com um bâton ainda mais vermelho do que o veludo ondeado do vestido,  diz-me ao ouvido:

- Apetece-me fugir daqui!

 

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Ser feliz durante 45 minutos

 

Hoje recebi uma mensagem de uma amiga: 'Está tudo bem contigo?' E a minha resposta foi, se calhar parva ou provocadora: 'Estou, obrigada. Ontem, fui feliz durante quarenta e cinco minutos'. Ela deve ter achado estranha a resposta, ainda que entre amigos não haja muito espaço para estranhezas. Como devia andar ocupada com o almoço para a família, com as galinhas que agora tem e que lhe dão ovos frescos e coradinhos, com o galo cujas cores, crista e cantar ela não se cansa de elogiar, e, para mais, o tempo escasseia para subir ao sossegado sótão para ler e escrever um bocadinho, não me perguntou porquê e escreveu: 'Espero que depois desses 45 minutos tenhas continuado feliz'. Sim, felizmente, tenho a felicidade de ter momentos de felicidade diversa (estou a aprender a não ser demasiado modesta!).

Mas voltemos ao assunto. No fundo, no fundo, eu queria falar dos meus 45 minutos de ontem em que fui muito feliz. Pois bem, sem mais delongas: está a decorrer a Semana da Leitura com atividades promovidas por bibliotecas escolares. O meu livro para crianças, Histórias da Clarinha, foi lido, em forma de e-book, em aulas do 1º ciclo. Ontem, durante 45 minutos, houve uma sessão conjunta on-line para escolas do agrupamento nº 1 de Gondomar.

Em casa, preparei até um pequeno cenário com alguns trabalhos feitos por Cristina Pinto, a ilustradora do livro, como as bonecas clarinhas, que foram usadas no dia de lançamento, e os marcadores que foram ilustrados nesse dia e em muitos mais momentos por diferentes crianças. 

Ontem, os meninos estavam em sala de aula, fizeram perguntas, eu respondi com muito gosto, foram lidas algumas (poucas) das minhas histórias porque as perguntas eram bastantes e o tempo era pouco e foram, de facto, 45 minutos que passaram a correr e que me deixaram muito feliz por várias coisas: ter reentrado em ambiente escolar, ter revisto amigos, ver a empatia dos miúdos com os professores, dialogar sobre o prazer da escrita e da leitura, sentir o pujante entusiasmo da infância, etc.

Ah, a minha amiga mandou-me agora outra mensagem, dizendo que estava curiosa sobre os meus 45 minutos de felicidade.  Ela conhece bem momentos semelhantes.

E todos precisamos tanto de momentos bons e felizes, sejam eles quais forem, durem eles o que durarem.


quarta-feira, 14 de abril de 2021

Uma bicicleta no espaço

        Ontem em Sevilha: FCP- Chelsea. A 'bicicleta' do golo foi de Maremi (FCP).



segunda-feira, 12 de abril de 2021

Diz-me, consolo meu, ...

 


 

Desde que tive covid 19, já lá vai mais de um ano, o meu olfato não voltou a ser o que era. Apesar disso, a primavera está a oferecer tal profusão de flores que tenho o prazer de lhes sentir algum perfume. Bastaria olhá-las para algum consolo, mas, assim, o consolo é maior.

 

domingo, 11 de abril de 2021

'Fala com ela' - Não, não é o filme, mas também é muito bom.

 

Descobri-o há pouco tempo, mas, na minha opinião, vale mesmo a pena ouvir ao sábado, às 13 h, na RDP, antena 1, o programa 'fala com ela', de Inês Maria de Menezes. Os episódios estão também disponíveis em 

https://falacomela.podbean.com/

Todas as semanas há um entrevistado das mais diferentes áreas. Ontem, foi entrevistada Luisa Sobral, cantora e compositora. Há poucas semanas, foi a vez de Isabel do Carmo, médica endocrinologista. Para além de muitas coisas de interesse, registei a vantagem de não ter doces em casa, o que pensa sobre o jejum intermitente de que agora se fala bastante, etc, porque ando com vontade de emagrecer um bocadito.

Gostei imenso de a ouvir falar do trabalho dela, da vida dela, do mundo em que todos vivemos, etc. E fiquei surpreendida ao saber que tem 80 anos.

A última pergunta que a entrevistadora faz aos seus entrevistados é: 'Para si, o que é um dia bom'? Se bem me lembro, a resposta de Isabel do Carmo foi: um dia com sol, poder trabalhar, poder ler'.

 

Um domingo bom para todos! Vivido cada um à sua maneira, é claro, embora os cuidados tenham de ser comuns.

 

 

sexta-feira, 9 de abril de 2021

O livro, o guarda-chuva e e o chocolate

 

Confesso que hoje não tinha assunto. Há dias que até tenho de os filtrar, porque são como as cerejas, outros nem cerejas há. Pois bem, como se prevê trovoada e desde pequena faz-me medo, lembrei-me de um texto que escrevi sobre o meu avô, que sabia tranquilizar quando havia relâmpagos e trovões. Não o encontrei, mas vi este que dediquei, há bastante tempo, a uma colega e amiga (Dulce Helena) que andava sempre com um livro na carteira. Hoje também será preciso guarda-chuva e um bocadinho de chocolate sabe sempre bem.

 

Durante duas semanas, quase não vi a luz do dia, apenas a espreitava quando  a Helena abria a carteira.

Ela anda sempre com um livro e, desta vez, coube-me a mim acompanhá-la. Só que entrei na vida dela em má altura. Quero dizer: quando entrei na sua carteira. Como passo a vida às escuras, fechado, sem quase nada para dar nem receber, oiço conversas de Helena.

- Ando a ler um livro de José Rodrigues Miguéis. Tem um conto fabuloso.

E, precisamente no momento em que ia mostrar o livro, a campainha tocou e Helena foi para a aula, porque é professora e não gosta de se atrasar. Nem que seja por uma boa causa, como é falar de um livro. E, neste caso, um bom livro. Pareço vaidoso, mas estou só a elogiar quem me pensou, quem me escreveu, quem me deu vida, podendo, assim, embelezar a vida dos outros.

O tempo em que tenho mais luz é quando Helena está a dar as aulas. Ela chega à sala, pousa a carteira e deixa-a ficar aberta. Como a mesa é junto à janela, eu olho para cima e vejo as nuvens, a palmeira do jardim, as árvores com flores… Uma vez até vi um arco-íris, numa aula em que os alunos estavam a fazer teste e mal se ouviam.

Uns dias depois, ouvi Helena dizer:

- Com tantos testes para corrigir nem há tempo para ler.

E eu logo pensei: pronto, já sei, mais uns dias nesta escuridão. É como se viajasse no porão de um avião, no meio de malas e outras mercadorias, sem ver os passageiros. O que vejo à minha volta é uma agenda, uma fatura da água, um chocolate que já vai a meio, um porta-moedas…

Um dia, a Helena entrou na Escola à pressa, porque já tinha tocado para dentro, e pôs o guarda-chuva molhado dentro da carteira, indo encostar-se mesmo ao meu rosto, isto é, à minha capa. Enregelei, senti alguma raiva e apetecia-me gritar:

- Helena, atiras o guarda-chuva para dentro da carteira e esqueces de quem está aqui! Eu podia dizer “do que” está aqui, mas acho que posso dizer “quem”, porque sinto-me humano, falo da vida mais profunda das pessoas, ajudo-as a pensar, a sentirem-se valorizadas… Mas a minha voz não se ouve do mesmo modo.. Eu falo em silêncio e só para quem me lê ou escuta através da voz de alguém.

Nesse dia de inverno, mas de muito calor na sala de aula, Helena pousou a carteira, sem a abrir. O guarda-chuva humedecia o meu corpo, isto é, as minhas páginas e o chocolate, que já estava a meio, começou a derreter e sujou-me todo.

A aula parecia interminável. Eu queria que a Helena me tirasse daquele mundo de cheiros húmidos e viscosos. Ouvia perguntas, respostas, a Helena a recordar que se diz “folhear” e não “desfolhar” um livro. E eu a pensar: estou feito, vou ser desfolhado sem haver tempo para ser de novo folheado!

Nisto, tocou para fora. Que alívio, pensei, Helena iria libertar-me? Porém, permaneci fechado até à noite. Quando ela me viu naquele estado, parecia, docemente, pedir-me desculpa. Se eu pudesse falar, diria:

- Não te preocupes, Helena, eu sei que, apesar de tudo, como livro que sou, para ti sou melhor do que chocolate.

 

terça-feira, 6 de abril de 2021

Os Filhos da Madrugada na RTP 3

 

Eu ainda não tinha visto, mas uma amiga chamou-me a atenção para esta série com entrevistas de Anabela Mota Ribeiro. O programa passa todos os dias pelas dez da noite, na RTP 3, até ao próximo dia 25 de abril. Os entrevistados - pelo menos até agora assim aconteceu e o título também o revela - nasceram depois do 25 de Abril. São pessoas jovens que se tornaram conhecidas nos mais diferentes ramos de atividade. Vale a pena ver. Para além das suas vidas, dão também testemunho da época em que viveram, vivem, e da dos seus progenitores.

Gostei imenso, por exemplo, da entrevista a Tiago Rodrigues, diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II. Fala de tantas dimensões da vida: teatro, literatura, gastronomia, afetos, família... É muito bonita a história de uma avó que queria saber um livro de cor.

Deixo aqui o link:
https://www.rtp.pt/play/p8721/e534944/os-filhos-da-madrugada





Também fui e já vi gente na praia

 

Ontem, dia de reabertura das esplanadas, sentei-me à beira-rio com duas amigas para tomar um café e falar de mil e uma coisas das nossas vidas. Só havia uma mesa livre e quase toda ao sol. A mesa só tinha duas cadeiras e nós éramos três. Vi uma cadeira vazia numa mesa vizinha. Perguntei se podia pegar. Está ocupada - disse alguém, sem muita convicção. Acho que não estava e o alguém queria a cadeira para pôr os pés. Ali ao fundo, há muitas cadeiras - apontou o mesmo alguém. Eu disse um obrigada pequenino. Logo outras pessoas nos ofereceram uma cadeira. Dissemos um obrigada grande.

Gosto muito de sol, mas não gosto muito de estar ao sol quente. Como são minhas amigas e não se importam com o sol, deram-me a sombra. Fomos ficando - porque a conversa é como as cerejas -  e, daí a pouco, o guarda-sol já nos guardava a todas do sol.

O início da tarde ia iluminando e aquecendo. Placidamente, entraram dois polícias. Andavam, por certo, a controlar o número de pessoas por mesa. E placidamente saíram, sem paragem nem registo.

À nossa frente, o rio também corria plácido. A não ser quando motas de água faziam piruetas de encher os ouvidos muito mais do que os olhos. Do outro lado, Gaia e, no areal bem perto, pessoas dispersas a trabalhar para o bronze. Quem estava na esplanada, quem passava em caminhada apressada ou lenta, quem se sentava relaxadamente nos muros... todos pareciam desconfinar a tarde como se  fosse mesmo a primeira do resto das suas vidas.

Depois de bastante tempo de conversa: está na hora. Vamos? E se combinássemos novo café? Boa ideia. Isto faz bem à vista e ainda melhor à alma.





segunda-feira, 5 de abril de 2021

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Um ovo, o nascimento, outro ovo, o som das gaivotas e Feliz Páscoa!

 

Nasci há poucos dias. Sim, nasci na madrugada do dia 29 de março de 2021. Enquanto crescia na barriga da minha mãe, perguntavam-lhe se estava tudo a correr bem e faziam-me festas. Eu gostava imenso do calor da mão que era macio e bom. Cheguei a ouvir a minha bisavó a dizer: 'De mansinho, para não magoar'. A minha mãe ria-se e a mão dela continuava a passear com carinho pelo ovo redondo onde me encontrava. Nas visitas ao médico, eu ia sabendo coisas sobre mim: 'Tem cabelo grande, lá está a pilinha, olhem as mãozinhas'... Uma vez, a minha avó perguntou à minha mãe depois da ecografia: 'Filha, viste os dedinhos todos?' A essa hora, o meu pai já tinha mandado as minhas imagens em três dimensões para a família. Eu devia parecer um fantasminha dentro de um frasco, mas a família dizia: 'Que giro!' e todos encontravam parecenças com a minha mãe e com o meu pai. Quando nasci e pude abrir os olhos, via tudo branco e a respirar à minha volta. Parecia que tinha saído de um ovo de sombra para outro muito maior, com muitas dimensões e cheio de luz.

No berço, com a minha mãe deitada na cama ao meu lado, sentia-lhe o olhar à espera do meu sorriso e se eu respirava e se eu estava tranquilo... O meu pai também me olhava com muita ternura e trata de mim com tanto jeito que a enfermeira pensou que já estivesse habituado. Depois de me mudar a fralda, pega em mim com as mãos grandes e sinto-me muito seguro. Quando tenho fome, desato a chorar, a minha mãe faz tudo para eu mamar, mas vejo que tem muita pena porque ainda se desprende pouco leite. Depois de muito esforço e de muitas posições, dão-me biberão, mas gosto mais do leite da minha mãe, embora não tenha muita paciência para esperar que corra. Do biberão, corre melhor e fico tão satisfeito que adormeço logo.

Como eu tinha sido muito desejado pelos meus pais e pela família, julgava que ia receber visitas quando nascesse, mas não e as pessoas que vêm em trabalho usam máscara,  tal como os meus pais, afastam-se umas das outras, lavam e desinfetam as mãos muitas vezes e dizem: 'Temos de ter cuidado'. Também já tinha ouvido isso enquanto estava na barriga da minha mãe, sem  compreender o que se passava. Como estávamos só os três no hospital, os meus pais olhavam para mim com todo o tempo do mundo, pegavam-me na mão devagarinho, diziam baixinho e com doçura: 'Então, então'... para me consolarem quando eu chorava e tiravam-me fotos que enviavam com mensagens. E também recebiam muitas. Algumas eram lidas em voz alta. Numa delas, a minha tia dizia para a minha mãe tirar a máscara de vez em quando para eu ver os rostos completos e começar a reconhecê-los. Não sei se foi por isso, mas abri os olhos e vi que os meus pais eram muito bonitos, sorriam, estavam sempre a olhar para mim, e diziam: 'É tão bonito e perfeitinho'. Uma bênção! Fiquei muito contente de ouvir isso e ainda mais de os ver e de começar a conhecer o ovo grande que é o mundo. Ah, a minha tia também disse para a minha mãe me pôr sobre o peito dela, só com a fraldinha e pele com pele. Foi tão bom e confortável. Eu acho que a família e os amigos me querem ver. Só  me conhecem por fotografias e sei que dizem: 'Que lindo. Parece sossegadinho. Olha que lourinho'. Até ouvi que o meu cabelo era loiro acobreado. E também: 'É todo pai, a boquinha é da mãe'... Eu compreendo as reações porque só agora saí do ovo. Deve ser por isso que a minha prima, que tem cinco anos e vive longe, olha para as fotos, sorri e parece dizer: 'Cresce, que assim não posso brincar contigo!'

Já chegámos a casa e acho que vi uma gaivota no rio. Só as conhecia pela voz enquanto crescia na barriga da minha mãe. 

A minha avó já me visitou e dizia muita encantada: 'Que riqueza! Que maravilha'. Ouvi-a falar com a minha mãe sobre a Páscoa - que cada um vai passar em sua casa - e diziam que eu era o melhor que podia acontecer para a celebrar. E fiquei mais uma vez muito feliz por ter nascido.

A minha vida é ainda muito curtinha, mas  gostava de desejar a todos muito boa Páscoa! 

E a minha avó também!


terça-feira, 30 de março de 2021

O autocarro e o postal grande

 

Quando as minhas filhas estavam no início da adolescência, fizemos, em família, uma viagem à Bretanha e fomos por uma Agência de Viagens. Quando cresceram mais, convenceram-nos a viajar com roteiro e horário feitos por nós. E tinham muita razão, mas não foi isso que me levou a escrever este texto.

Ora, nessa viagem, seguimos de Paris de autocarro até à Bretanha, região francesa de cidadezinhas maravilhosas e de mar tão encrespado quanto belo. O autocarro tinha lugares marcados e à minha filha mais nova coube uma bonita senhora já idosa como companheira de lugar durante esses dias. Viajava sozinha, era muito discreta e muito simpática com toda a gente. Nunca falava da vida pessoal, só de viagens e se o tema vinha a propósito. Havia muitas vezes espetáculos ao jantar, mas ela nunca estava presente. Uma vez, disse que ficava no quarto a fazer puzzles, que era um dos seus passatempos favoritos, e que gostava de fazer sobre os sítios por onde viajava.

Porém, com a minha filha, sobretudo nos tempos de viagem no autocarro, havia sempre assunto. Conversavam sobre leituras, sobre a região, sobre filmes, sobre a escola, etc. Eu digo conversavam, embora a minha filha fosse mais ouvinte, ainda que sempre interessada (nesse tempo, ainda não havia telemóveis). Quando saíamos do autocarro para uma visita, a minha filha juntava-se a nós e a senhora integrava-se no grande grupo, sem nunca perder a discrição e o ar solitário.

Durante esses dias, foi-se criando uma grande empatia entre ambas, embora só falassem enquanto viajavam lado a lado no autocarro. No último dia e na despedida, pediu o nome e morada à minha filha para lhe mandar um postal. E assim foi. Passados alguns dias, recebemos em casa um postal enorme em que a senhora dizia que lhe queria agradecer a boa companhia durante a viagem. Julgo que guardámos o postal durante muito tempo, mas não sei se a minha filha chegou a responder-lhe. Sei, contudo, que nunca se esqueceu de D. Clotilde, sua companheira de autocarro através da Bretanha.