sexta-feira, 9 de abril de 2021

O livro, o guarda-chuva e e o chocolate

 

Confesso que hoje não tinha assunto. Há dias que até tenho de os filtrar, porque são como as cerejas, outros nem cerejas há. Pois bem, como se prevê trovoada e desde pequena faz-me medo, lembrei-me de um texto que escrevi sobre o meu avô, que sabia tranquilizar quando havia relâmpagos e trovões. Não o encontrei, mas vi este que dediquei, há bastante tempo, a uma colega e amiga (Dulce Helena) que andava sempre com um livro na carteira. Hoje também será preciso guarda-chuva e um bocadinho de chocolate sabe sempre bem.

 

Durante duas semanas, quase não vi a luz do dia, apenas a espreitava quando  a Helena abria a carteira.

Ela anda sempre com um livro e, desta vez, coube-me a mim acompanhá-la. Só que entrei na vida dela em má altura. Quero dizer: quando entrei na sua carteira. Como passo a vida às escuras, fechado, sem quase nada para dar nem receber, oiço conversas de Helena.

- Ando a ler um livro de José Rodrigues Miguéis. Tem um conto fabuloso.

E, precisamente no momento em que ia mostrar o livro, a campainha tocou e Helena foi para a aula, porque é professora e não gosta de se atrasar. Nem que seja por uma boa causa, como é falar de um livro. E, neste caso, um bom livro. Pareço vaidoso, mas estou só a elogiar quem me pensou, quem me escreveu, quem me deu vida, podendo, assim, embelezar a vida dos outros.

O tempo em que tenho mais luz é quando Helena está a dar as aulas. Ela chega à sala, pousa a carteira e deixa-a ficar aberta. Como a mesa é junto à janela, eu olho para cima e vejo as nuvens, a palmeira do jardim, as árvores com flores… Uma vez até vi um arco-íris, numa aula em que os alunos estavam a fazer teste e mal se ouviam.

Uns dias depois, ouvi Helena dizer:

- Com tantos testes para corrigir nem há tempo para ler.

E eu logo pensei: pronto, já sei, mais uns dias nesta escuridão. É como se viajasse no porão de um avião, no meio de malas e outras mercadorias, sem ver os passageiros. O que vejo à minha volta é uma agenda, uma fatura da água, um chocolate que já vai a meio, um porta-moedas…

Um dia, a Helena entrou na Escola à pressa, porque já tinha tocado para dentro, e pôs o guarda-chuva molhado dentro da carteira, indo encostar-se mesmo ao meu rosto, isto é, à minha capa. Enregelei, senti alguma raiva e apetecia-me gritar:

- Helena, atiras o guarda-chuva para dentro da carteira e esqueces de quem está aqui! Eu podia dizer “do que” está aqui, mas acho que posso dizer “quem”, porque sinto-me humano, falo da vida mais profunda das pessoas, ajudo-as a pensar, a sentirem-se valorizadas… Mas a minha voz não se ouve do mesmo modo.. Eu falo em silêncio e só para quem me lê ou escuta através da voz de alguém.

Nesse dia de inverno, mas de muito calor na sala de aula, Helena pousou a carteira, sem a abrir. O guarda-chuva humedecia o meu corpo, isto é, as minhas páginas e o chocolate, que já estava a meio, começou a derreter e sujou-me todo.

A aula parecia interminável. Eu queria que a Helena me tirasse daquele mundo de cheiros húmidos e viscosos. Ouvia perguntas, respostas, a Helena a recordar que se diz “folhear” e não “desfolhar” um livro. E eu a pensar: estou feito, vou ser desfolhado sem haver tempo para ser de novo folheado!

Nisto, tocou para fora. Que alívio, pensei, Helena iria libertar-me? Porém, permaneci fechado até à noite. Quando ela me viu naquele estado, parecia, docemente, pedir-me desculpa. Se eu pudesse falar, diria:

- Não te preocupes, Helena, eu sei que, apesar de tudo, como livro que sou, para ti sou melhor do que chocolate.

 

8 comentários:

  1. Que conto simples e bonito, Maria. Só achei que o molhado, se faz frio, não derrete um chocolate. Mas talvez fosse verão e a chuva lhe viesse como acontece tanta vez. Não conheço nenhuma mulher que ande com chocolates na carteira. Mas, pensando nos cinco criados por Enid Blyton, eles usavam-no nos bolsos e não me parecia nada mal. Pensando que é um conto, provavelmente destinado a crianças, está mesmo certíssimo:). E chama a atenção para o valor dos livros. Gostei muito desse continho pequeno. E ainda bem que o tinha na manga e nem uma cereja lhe surgiu à conversa. Foi um prazer.

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    1. Hoje, levantei-me cedo e, ao ver os comentários, com a caneca de café quentinho ao meu lado, achei que o dia prometia. Obrigada, Bea.
      Quando escrevi este texto, era outono e julgo que a minha colega e amiga às vezes tirava chocolate da carteira. Eu também não me atreveria a tê-lo lá, porque às vezes é tanta a mistura que se houvesse chocolate, ainda era pior.
      Abraço e um dia bom, Bea, com ou sem chocolate.

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  2. Muito bonito... O título é muito sugestivo e tentador:))

    -
    Beijos, e um bom fim de semana!

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    1. Obrigada, Cidália. E como tem chocolate, fica mais docinho!!!
      Um beijinho e sábado feliz.

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  3. Obrigada, Elvira. Fico contente.
    Um abraço e um sábado feliz.

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  4. Um lindo conto que se lê com muito prazer. :)

    Um beijinho e um bom Domingo, Dolores.

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