sábado, 17 de abril de 2021

No casamento de Pepe e de Lupe ou o bâton ainda mais vermelho

 

Este texto resultou de uma proposta de trabalho individual, num atelier de escrita, com Francisco Rosa, na Lótus e Lírios, no Porto, há uns três anos. O narrador teria de ser um mexicano, no casamento de Pepe.
 

Apetece-me fugir daqui.  Já abracei os noivos, já saboreei nachos, tacos, tortillas..., já dancei sentindo as dunas macias da prima da Lupe, já tirei o casaco, já suei a camisa, já engoli muitos copos de tequila, já suguei bâton vermelho, já sequei o suor de mãos com o calor dos meus dedos...

Apetece-me fugir daqui. Não sou homem de quentes salas fechadas, de músicas que explodem nos meus ouvidos, de luzes que disparam nos meus olhos, de ares com perfumes mesclados até à náusea...

Apetece-me fugir daqui. Porém, o Pepe é um grande amigo de muitas estações e de muitos desertos. E de longas conversas ao sol, refrescadas pela sombra dos nossos chapéus. Fico feliz ao vê-lo feliz neste dia do seu casamento. E ao vê-lo sorrir muito mais do que quando estamos, entre o céu e a terra, a guardar as vacas.

Apetece-me fugir daqui. Apontados para Lupe, quantos dos meus olhares devoradores o meu sombrero encobriu. Sobretudo quando ela aparecia  com o vestido curto de folhos e no bâton vermelho cintilava o prazer dos lábios. Logo se retiravam e eu ficava a guardar as minhas vacas e as dele ou a fingir que dormia, mas sempre fixando o plano cada vez mais distante, o ponto que mantinha a cor do vestido de Lupe. Quando regressavam, ela retocava o bâton e afastava-se, sozinha. Ficávamos em silêncio naquele deserto da tarde.

Apetece-me fugir daqui, porque sei também que não muito longe arranham o chão as pesadas caravanas, cheias de sonhos americanos e parece-me ouvir gritos arremessados aos meus ouvidos.

Oh! Estão a atirar o ramo da noiva e é a prima da Lupe quem logo o agarra e vem pô-lo na abertura da minha camisa, quase cravando as flores no meu peito.

Ela, com um bâton ainda mais vermelho do que o veludo ondeado do vestido,  diz-me ao ouvido:

- Apetece-me fugir daqui!

 

8 comentários:

  1. Ora aí está um bonito texto que nos deixa a pensar no nascimento de uma relação amorosa e frutuosa!! Com essa semelhança de gostos, entre o narrador/convidado e a prima da noiva...outro casório entretento aconteceu.

    Quem me dera ter assim tão fértil imaginação, como a Dolores tem.
    E paciência, vá. Isto da escrita bem elaborada exige muita dedicação, criatividade e...transpiração. Como dizia o amigo Henrique Antunes.

    Um beijinho e votos de um excelente fim-de-semana.

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  2. Bonitas e boas são as suas palavras, Janita. Obrigada.
    Olha quem fala - sempre com ideias novas e giras!
    Beijinhos, Janita, e um fim de semana muito bom. Por aqui, está sol.

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  3. Um conto muito bonito.
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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    1. Obrigada, Elvira. Quando vou/ia a Londres, vamos/íamos de vez em quando a um restaurante mexicano. Aproveitei,por isso, para falar dos pratos que conheço.
      Um beijinho e um domingo muito feliz.

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  4. Hummmm que texto delicioso e curioso... Valeu a pena ir esperando.. :))

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    SINTO FALTA...
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    Beijos, e um excelente fim de semana.

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  5. Pois saiu-se muito bem que eu, se me pedissem uma história com um mexicano dentro, apenas saberia do sombrero. E a ideia de manter sempre a mesma frase no início de cada parágrafo, frase que afinal tem um sentido de remate à baliza e é golo, é algo original. Gostei.
    Boa noite.

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  6. Obrigada, Bea. Gostei da ideia do golo!
    Gosto destes desafios e, às vezes, trazem-me mais ideias do que se não os tivesse. Acho que sou um bocadinho preguiçosa e dispersa.
    Feliz domingo.

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