sexta-feira, 23 de abril de 2021

As filas na minha sala de aula

        

        A escola estava dividida. A leste, ficava a parte das raparigas, a oeste a dos rapazes. No edifício, funcionam agora serviços da Câmara Municipal.

As meninas estavam divididas em três grandes grupos.  Nas filas de trás, ficavam as meninas pobres (algumas iam descalças para a escola) e com fracos resultados escolares; nas filas do meio, as meninas remediadas com mais sucesso em ler, escrever e contar; na primeira e única fila da frente, ficavam as meninas com mais posses, tivessem elas sucesso escolar ou não, e que iriam fazer o exame de admissão para continuarem a estudar no liceu ou na escola industrial e comercial.

Era assim na minha escola primária. Apesar de já ter sido há uma eternidade, ainda me revejo numa das filas do meio sentada de bata branca - eu gostava que tivesse entremeios bordados como as batas das meninas da frente, mas em casa diziam-me que os luxos eram para quem podia -  na minha carteira inclinada e com o tinteiro fresco de tinta. Era bastante boa aluna, mas não iria estudar, como as meninas da fila da frente. Ouvia que as raparigas eram necessárias em casa, mesmo quando vinha a correr para contar o que a D. Gracinda, a minha professora da 4ª classe, me tinha dito mais uma vez. Assim tinha sido, assim continuaria a ser.

Essas palavras da professora eram um estímulo e sempre me acompanharam: 'Tens de estudar, não podes ficar em casa sem estudar'. Não só por elas mas também, uns anos mais tarde continuei os estudos. Depois de aprender a bordar, a cozinhar, a limpar a casa, a costura (nunca tive jeito), de ler alguns livros, escrever uns poemas quase às escondidas, aprender um pouco de francês, recomecei a minha escolaridade com alguns constrangimentos. Se bem me lembro, um dos maiores foi o facto de os meus colegas serem bem mais novos do que eu.

As meninas das filas de trás da minha sala de aula da escola primária terão continuado na fila de trás da vida, apesar de sonharem igualmente; as das filas do meio terão lamentado muitas vezes não terem continuado a estudar; as da única fila da frente tiveram as portas abertas - umas aproveitaram, outras não.

Os mais céticos dirão que ainda há muitas discriminações, mas, para mim, um dos maiores bens já adquiridos foi a escolaridade obrigatória para todos. A educação é um dever e um direito. Esta conquista foi das mais importantes para Portugal pós-25 de Abril. Só pecou por tardia.

Para muitos jovens, este assunto é um não-assunto porque nem sequer admitem o contrário. Ainda bem que interiorizaram que a escolaridade é um bem a que todos têm direito.

Apesar deste grande avanço, existem ainda muitas divisões (e há quem as queira acentuar) de pessoas colocadas por filas, mas estou convencida de que a Educação e a melhoria de condições de vida para a desenvolver irão torná-la cada vez mais agregadora. Só assim o dia de amanhã pode ser melhor do que foi o dia de ontem.

 

14 comentários:

  1. Bom dia:- Filas a separar pobres, remediados, ricos? Inacreditável e lamentável. E ainda existem mentes retrogradas que elogiam o passado e criticam a liberdade e igualdade dos dias de hoje. Malditos eram aqueles que criavam essas divisões e desigualdades. Desculpe o meu nervosismo.
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    Cumprimentos poéticos
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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  2. Olá, Ricardo. Obrigada. O seu nervosismo tem razão de ser e ainda mais de viveu algumas das situações que muitos de nós vivemos antes do 25 de Abril. Agora tudo está bem? Não está. No entanto, naquele tempo era bem pior, na minha opinião.
    Um abraço

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  3. O teu texto é belíssimo e concordo inteiramente quando dizes que só pela educação as pessoas irão progredir, só pelo saber as pessoas saberão reivindicar os seus direitos, só pela cultura o cidadão saberá que exigir igualdade de oportunidades...

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    1. Obrigada, Justine, és sempre simpática. Sim, defendo cada vez mais o valor da educação e da cultura.
      Um beijinho

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  4. A fotografia de capa são rosinhas de Santa Teresa, não são? Acabei de receber um ramo enorme delas e já as distribuí por 4 jarras, inundando a casa de perfume de antigamente! E nos meus passeios pelos campos à volta da aldeia fico fascinada com a profusão de cores das flores silvestres, as azuis são lindas - como as que mostras nas fotografias do lado direito!
    Bom fim de semana

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    1. Também me parecem rosinhas de Santa Teresinha (costumo dizer o diminutivo), mas não sei ao certo. A foto da 'minha entrada' e as das flores azuis vieram de Londres, enviadas pela minha filha.
      Imagino o ramo que recebeste - também as tenho no meu quintal e gosto imenso.
      Bons passeios, Justine, através dos bonitos caminhos floridos.

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  5. Bom, bom...na minha escola éramos todos muito iguais e a altura é que era o elemento de seriação. Mas as distinções vão existir sempre. Fui das que conseguiu subir, nem sei bem como, mas consegui, e não por mérito próprio. Mais de trinta garotos na escola e só três estudaram. Mas atenção, a distância está sempre lá, não morre. Podes ser uma universitária brilhante, profissional briosa, mas não pertences, a tua estrutura é outra, vens de outro meio, com outras necessidades e és permeável à vida de outra forma. Nunca pertences às elites, serás sempre diferentes delas e não chamada à convivência. O ponto é que também não a desejas. São mundos distintos e um não interessa ao outro. E isto é um facto natural e acontece quase inadvertidamente. O que o povo deseja não é a pertença a uma elite de manda chuvas onde se sentiria deslocado, o povo quer melhorar de vida, deixar de temer o futuro, ter casa e emprego que o sustente.
    E viva o 25 de Abril. E a escola pública pela qual, dado o andar da carruagem, temo cada dia mais.
    O que for, soará.
    BFS, Maria.

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    1. Esse critério, Bea, era bem mais democrático e assim os mais altos não tapavam os mais baixos.
      Conheço vários casos de pessoas que viveram frustradas e de mal com a vida porque não puderam estudar, ainda que não lhes faltassem capacidades.
      Boa síntese, Bea, da distância que existe sempre entre as pessoas vindas de meios diferentes, ainda que cheguem a patamares semelhantes.
      Também defendo a escola pública e espero bem que o ânimo de alguns vá diminuindo o desânimo de muitos mais.
      Bom fim de semana, Bea, e viva o 25 de Abril.

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  6. Gostei de ler.
    Na Telha não havia escola. Então de uma vacaria desativada, fizeram as escola. Criaram um cubículo com uma porta onde havia vários potes largos de barro que faziam de sanita. Quando as aulas acabavam vinha uma camioneta da Câmara a que chamávamos "A Pipa" onde eram despejados os potes, que eram lavados no chafariz que havia no largo, antes de voltaram para o cubículo que nós chamávamos "A casinha". Só havia aquela sala, e uma professora que ensinava em simultâneos da 1ª à 3ª classe, rapazes e raparigas. Não havia diferenças ali eram todos muito pobres, e os que não iam descalços levavam tamancos de madeira e pneu de bicicleta, feitos pelos pais. A quarta classe para os poucos que a faziam era no barreiro a três quilómetros de distância. A maioria ficava-se pela terceira classe, a quarta fizeram-na depois de adultos.
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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    1. Meu Deus, Elvira, que condições tão más para as crianças e para a professora. Um testemunho que devia ser lido pelos saudosos desse tempo. A Elvira fez-se à vida e hoje é uma vencedora; porém, muitas pessoas não tiveram a mesma força.
      Um abraço e uma noite bem descansada.

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  7. Que relato importante na historia da educação, deveria-se ser posto aos estudantes portugueses, para entenderem a importância de se manter o foco nos estudos, nas ações sociais e culturais, e que essas divisões sejam de fato repensadas, e a equidade valorizada.
    Forte abraço

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  8. Obrigada, Calebe, tudo bem? Para muitos jovens, estes assuntos estão a milhões de anos luz e, por um lado, é bom porque já nasceram em liberdade. Oxalá todos nós a saibamos viver e preservar.
    Outro abraço, Calebe.

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  9. Um texto interessante! As coisas vão progredindo! :)
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    Gotículas celestiais ...
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    Beijo e um excelente fim de semana.

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  10. Olá, Cidália.
    Sim, felizmente, as coisas vão melhorando.
    Um beijinho e bom sábado.

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