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Lurdes Castro
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"Para a minha mulher e
para a minha filha
Deixo-vos esta carta porque
preciso de vos dizer algumas coisas que me atormentam a alma há muito tempo.
Maria, passas os teus dias calada a tratar da
casa e do jardim, eu, a ver filmes. A Natércia anda mais triste desde a
separação do Fernando. Às vezes penso que é infeliz nesta casa. Nunca trocamos
sorrisos, nem falamos abertamente dos nossos problemas. Fazemos cerimónia uns
com os outros e parece que temos medo de ser felizes ou fomo-nos convencendo de
que só os outros têm esse direito. Parecemos o menino triste da lágrima. Como
gostei de o ver coberto com as flores que a Natércia desenhou. Foi pena ter
sido por tão pouco tempo.
Maria, foste a pessoa que
mais amei em toda a minha vida. Sei que nem sempre fui o marido que desejavas.
Tinhas razão em ter ciúmes, porque eu elogiava mulheres bonitas e a ti
apontava-te defeitos.
Natércia, quero dizer-te, talvez pela primeira
e última vez: amo-te muito e tenho imenso orgulho em ti. Sei que já é demasiado
tarde para mudar a nossa vida, mas não quero morrer sem te dizer isto que já te
devia ter dito muitas vezes. Se o tivesse feito, de certeza que eras mais feliz
e eu também o seria agora!
Ando a sentir-me pior e julgo
que não passarei deste Natal. E olhem que não é conversa de velho. Quero escrever
esta carta enquanto posso e vou guardá-la até ao dia em que sinta que é o
último.
Amo-vos, querida mulher e
querida filha.
Por que raio passamos uma
vida juntos sem nunca dizer que gostamos uns dos outros? E isso faz tanta falta.
Só quando pensamos que vamos
morrer é que ganhamos coragem para dizer o que devíamos ter repetido ao longo
da nossa vida.
Tentem ser mais felizes que,
esteja onde eu estiver, também serei.
Beijos. Adeus.
José"
Natércia saltou a leitura do
final da carta e foi a correr ao quarto dos pais. A mãe ainda dormia e o pai,
aparentemente, estava já sem vida, o que foi confirmado pelo 112, minutos
depois.
No dia a seguir ao Natal,
despediram-se, tristemente, de José.
Dezembro ia terminando ameno.
Numa tarde de sol, mãe e filha sentaram-se num banquinho do jardim em conversa
mais longa do que o usual. Natércia
desenhava flores numa cartolina para substituir o menino da lágrima do fundo do
corredor, agora a pedido da mãe.
Nesse momento, passaram na
rua as vizinhas com a loura criança ao colo. O brinquedo eletrónico tinha
avariado e, numa das faces rosadas do menino, corria uma lágrima.
Natércia e Maria sorriram-lhe, o menino acenou-lhes
com a mãozinha papuda e, de repente, deixou de chorar.
Maria Dolores Garrido
Este conto foi publicado em Lugares e Palavras do Natal, Editora Lugar da Palavra, 2020
Nota:
Talvez a história seja um pouco triste, mas espero que o final traga um pouco de alegria e de esperança.